28.3.06

Perfume

Na tua pele
o aroma exaltado das amoras.
Fragmentos,
alva ou ruborizada
apetece tragar as pétalas perfumadas
soltadas de cada poro.

Às vezes adormeço sobre ela.

No vento soprado
vem o hálito que reconheço na tua pele.
Ou nas velas que incendeiam a noite escura
o odor roubado à tez esbranquiçada.
Um percurso sem espinhos,
aveludada avenida,
tactear vagarosamente os centímetros da tua pele.

Ungida pelos dedos extasiados
com a fragrância de morangos silvestres,
tágide que recobras os sentidos.
A pele adormece
saciada nos sentidos
e a cabeça repousa no leito que ela oferece.
Vertem-se as lágrimas enxutas
e a tua pele é o santuário onde os dedos
sabem dançar.
Esboçam estátuas imaginárias
contornam as curvilíneas dobras
que escondem mais mistérios.

Na repetição dos dias
há sempre novos segredos
resguardados na tua pele.

21.3.06

Dez minutos

Dez minutos
para dizer poesia.
Para estender a mão.
Olhar bem fundo, nos olhos de alguém.
Dez minutos chegam
para cativar a temperança.
Pequenos gestos
fortuitos ou pensados
espontâneos ou provocados.
Nos dez minutos
em que a nuvem passa
encobre-se o sol
e as cores tingem-se de sombra.
Nem assim,
dez minutos algures e depois,
o rasto da luz se perde no sempre.
Dez minutos
Hão-de tardar senão
em derrotar a sombria obstinação.
Tarefa singela:
Só, e só apenas,
dez minutos de contemplação.

14.3.06

Lampejos da primavera

As cores enrijecem
no troar da cálida temperatura;
anúncio da invernia que se despede,
em breve.

O cansaço do frio que torce os ossos
e da chuva-sempre-demais
– mesmo quando rareia –
apregoa outro hemisfério.

Pássaros
em voos inebriantes
cantam a alegria de contágio às pessoas,
em breve.

Das árvores
desponta um tímido, mas alegre, bouquet
o perfume que abre a porta
do armazém dos pesados agasalhos.

As pessoas soltam-se do acabrunhamento
no aligeirar dos corpos
que querem respirar
por todos os poros abafados pela invernia.

7.3.06

Desintoxicar

Fugir
no tempo que há
longe da matilha palavrosa
sem saber onde
é o refúgio.

Cura de desintoxicação
e demanda do belo
que rareia
como volúvel é o ar na altitude
da montanha.

A singeleza de pequenos passos
como se o terreno
pudesse ser dedilhado
e todas as pequenas pedras
apanhadas do solo.

Em todas elas
a impureza escrita
do solo pedregoso e sujo;
retiradas ao solo
purificadas na mão hospedeira.

Pequenas pedras
disformes, angulosas,
disfarce da putrescência
que clama o refúgio,
pedras agora debruadas a ouro.

5.3.06

O outro lado do espelho

Os olhos retratam o que vês
deste lado do espelho?
Será um sonho, a visão
deste lado do espelho?
Seja a fantasmagoria
que te acompanha;
ou a fuga do cenário medonho
que te leva a ver as coisas
deste lado do espelho
– quando, afinal, estás do outro lado do espelho.

O corpo não te deixa passar a linha
deste para o outro lado do espelho.
Quando cerras os olhos
e mergulhas no denso sono
duvidas de que lado do espelho
te encontras.
Tudo, apenas,
uma miríade de incógnitas.
Se certeza há é a ausência
da certeza.
És dois hemisférios,
dividido entre ambos os lados do espelho.

Ponhas o pé de um lado ou do outro
inquietam-te as sombras doentias
de te saberes abandonado do lado fugidio.
Percebes as vozes que gritam
do lado de lá do espelho,
a confusão de palavras que se atropelam
a absurda linguagem sem sentido.
No lado em que ficas
só há silêncio
um silêncio que ensurdece
os ouvidos repletos de loucas vozes
que vozeiam palavras vãs.

No sono
a moldura de um pesadelo:
a encenação do que acreditas ser
na vida em que estás acordado.
Quando a aurora te resgata do sono
a inércia da desrazão fala alto:
se quando sonhas
não são apenas sonhos de que sonhas
um turbilhão que te sufoca
em camadas mais densas
de te não saberes existência.

De olhos no espelho
sempre com a inquietante lucubração
de que outros olhos,
porém teus também,
te fitam
do lado de lá do espelho.
Na louca ansiedade loquaz
levantas o espelho:
só parede.
Nem o reverso do espelho
alguma coisa esconde,
a não ser uma tela acastanhada
o biombo do outro lado do espelho
um mistério por revelar.