30.5.06

O labirinto sem saída

Os caminhos do labirinto
adocicam o desafio que é ser.
Na combustão lenta
o pavio consome-se em marcha repousada,
indelével.

São as intermitências que contam
não a lhaneza que irrompe, feérica.
Pode vir o fósforo, aceso,
acendalha da fogueira que se há-de consumir.
Pode vir, espevitado,
que as impurezas lhe não dão guarida:
as faúlhas tardam
escondidas no véu escuro
que demora na combustão.
Emparedado no vácuo latejante
nem com sopros alongados desperta.
Se, por instantes,
umas fagulhas esboçam espreitar
entre o negrume da lenha
assoma a humidade imperatriz a cercear a fonte.

O labirinto, insondável.
Nas encruzilhadas que se sucedem
nem o fogo altivo se distingue.
Houvera ele de aparecer a escurecer o horizonte
e uma pista teria para a saída.

Dorme ainda a fogueira
manietada pela humidade malsã.
Lá fora
na colina vizinha do labirinto
as cinzas não se libertam da letargia.
E enquanto o fogo não levitar a candeia do fumo
o labirinto permanece
prisão sem saída.

25.5.06

Afecto ausente

Desconhecia os encantos escondidos
mesmo ali, ao lado das ruelas por onde passava.
Absorto na modorra existencial
na atracção pelo precipício que as coisas contêm,
desmembrado de corpo e mente.

Aliás
por vezes
desconfiava que tudo em si
era desmembramento
– como se as pernas andassem para lados diferentes,
a cabeça ao contrário do tronco
a mão direita acima do cotovelo
as orelhas no fundo das costas.
Achava-se a pessoa mais ridícula do mundo.
E definhava
na lentidão dos assomos de esquizofrenia
por entre os passos trocados de uma dança ignóbil
nos abraços que nunca dera.
Esboçava esgares de cinismo
ao ver afectos trocados entre anónimos transeuntes.
Por andar distante de si a necessidade dos afectos.

Aliás
por vezes
desconfiava que a chacota dos afectos
era mais uma doença que o visitara:
a inveja por viver fora da casa dos afectos.
Desdenhava-os
ria-se para dentro,
gargalhadas que só ele ouvia,
ao testemunhar
uma mãe acariciando o filho
os namorados abraçados com ímanes
o padeiro e a familiaridade com o cliente
o velhinho entregando afectos a um cão vadio
o simples “boa dia” cortês do jornaleiro.
Mortificava-se
por sempre ter fugido dos afectos
encerrado nas masmorras onde se refugiou.
Delas não se conseguia libertar
como se um pêndulo pairasse, sem parar,
sobre a sua cabeça
no hipnotismo da perene ausência dos afectos.
No isolamento propositado
sabia-se consumido por desconhecer os afectos
as sensações não experimentadas
mas que ele augurava boas,
a julgar pela entrega das pessoas aos afectos.

Aliás
por vezes
queria-se emancipar das altas ameias
de onde a vista nada alcançava.
Em momentos de lucidez
– que confundia com ensandecimento precoce –
só desejava sair à rua,
sorver o odor das pedras da calçada
das flores acabadas de romper dos seus botões juvenis
e olhar nos olhos dos desconhecidos
entregar-se em beijos retemperadores
abraços apertados
presentes às crianças que as fariam mais felizes.

As masmorras acabam sempre por vencer,
a sua tenebrosa escuridão
que esconde os afectos
embrutece o esquálido desiludido da vida.
Resta-lhe esconder-se,
dormir muito;
que nos sonhos, ao menos,
pressente o toque mágico dos afectos com os outros.

Aliás
por vezes
Apetece-lhe jamais acordar
daqueles sonhos frondosos que,
no púlpito da alvorada,
trazem o amargo sabor da vereda espinhosa do resto do dia.

Velho adormecido

Descansa na esplanada
enquanto o tempo de esvai
como as águas do rio, lânguidas, para a foz.

Contempla a ponte
feita das pedras gastas
tão gastas como a sua pele tomada pelas rugas.

Os cabelos brancos que esvoaçam
dizem-lhe que houve tempo
em que a juventude foi rainha.

Agora, enquanto o tempo se demora,
bate-lhe à porta a nostalgia
povoada pelas recordações que ungem o presente.

Entrelaça os dedos das mãos
e sente a pele rugosa
a batuta das adversidades semeadas vida fora.

Refugia-se nos claustros da nostalgia
o impulso para a solidão em si
olhando a constelação de coisas pequenas de tanto dizer.

Por entre as memórias
as mais recentes, funerais de amigos que partiram,
o tremor que se apodera ao pressentir que a porta se fecha.

Apela à memória mais longínqua
iludindo o que o espera – e atormenta;
descerra imagens frondosas, sem rugas ou cabelos brancos.

Nesses tempos
o coração palpitava com força
e tragava com vigor todos os segundos do dia.

Uma gaivota com silvo estridente
desperta o velho para o dia de hoje
e vê, com os olhos cansados, as crianças que rejubilam.

Erro fatal invejá-las
que cada coisa tem a sua idade
e o tempo é o reduto do que já foi gasto, irrecuperável.

Por todo o lado
a brisa fresca arrefece as ilusões.
Sabe o velho que lhe resta esperar.

20.5.06

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Manifesto da rebeldia militante

Amotinados
rebelam-se no ardor das causas.
Entregam-se às faíscantes lutas
desenfreadas bebedeiras
ideia emproada em razão só,
sem contestação.
Rebeldes
feridas por cicatrizar
pela relutante caminhada
por janelas com vidros quebrados
cravados na pele rija das palmas dos pés.
Ensandecidos parecem
ao puxar o lustro à razão das ideias.
Cegados por uma vara lancinante
andam aquém do discernimento,
fugazes entre as constelações do ser.
Emparedados no rigor da doutrina
agrilhoados a estreitos túneis escuros
onde a luz não ousa penetrar
tão pesados os muros
tão densa e fétida a atmosfera.
Amotinados
no suave apascentar da modorra
protestam,
a voz alta,
contra a acalmia anestesiante.
Tudo o que querem
é romper com as águas paradas
que se abeiram da estagnação letal;
outro quadro sem dóceis consentimentos
pessoas falantes sem o estigma do rebanho
que segue,
ordeiro,
pastores aviltantes.
Domina-os o método:
não o admitem,
acaso a pardacenta existência mudasse
e almas recobrassem o hélice enérgico,
eles iriam em busca de outro paradigma
outro furioso desencontro com a normalidade.
Eternamente insatisfeitos
neles
(e por eles)
fermenta o desprazer.

16.5.06

Gato atropelado

O gato morto
preto
a ser retirado da estrada.
Um homem
papel na mão
pega o gato pela cauda.
Sepulta-o na relva imunda
de beira de estrada.
Desfaz-se do papel
cospe para o chão
o ritual no nojo do acto.
O cadáver
ao menos
descansa do esquartejamento
por apressados automóveis.
Não será um enojado e indiferenciado
amontoado de carne triturada
a esvanecer-se com os rodados
que martirizam o que já nem cadáver seria.
O destino fatal do gato:
mais honroso
na coragem daquele homem
que dignou o apodrecimento final
do cadáver do infeliz gato.
A desdita tem momentos de sorte.
E vale alguma sorte
quando
cadáver já feito
ao bicho
a indiferença dos despojos?

14.5.06

Violinos dançantes

Canta-me a tua voz
o som melodioso
das cordas de um violino
debruado a ouro.
Os sussurros que entoam no ouvido
a mágica melodia da voz convicta
voz cálida que aquece os sentidos.
Vale a voz por mil instrumentos
como se orquestra fosse.
Uma afinada orquestra
que povoa o imaginário
com paisagens verdejantes
o céu pontuado por nuvens arquitectónicas
os montes que anunciam
férteis vales onde se descobre o rio
que retempera os sentidos.
Lá, onde as rãs coaxam
e os pintassilgos vivificam melodias piadas
onde a tua voz
me conta as coisas que quero ouvir.
Os acordes soltam-se
na finura das palavras selvagens.
Escoam-se com o tempo;
pudessem emoldurar o tempo
quando elas faziam acreditar
que vivíamos numa fotografia do tempo.
As ilusões são isso mesmo:
enganos dos afectos
emoção que deslumbra os sentidos.
A musicalidade da voz,
na entoação sublime das cordas dos violinos,
apenas uma dança imaginada
no tempo em que as ilusões eram reais.
Guardo na memória
a melodiosa voz que pertencia às ilusões.
Retenho comigo
o violino de onde essa voz se soltava.
E se a frieza de um coração empedernido
repôs a ilusão no quarto das recordações
tenho em mim o violino harmonioso;
não vá dele necessitar
por as ilusões reclamarem espaço
algures
num destes dias.

9.5.06

Sagração da alvorada

Os primeiros raios de sol
anunciam a luz clara.
Tonifica-se a alma
tinge-se o espírito com a frescura matinal.
Há na alvorada uma magia incomensurável.
Quando chega, discreta,
rouba a noite escura.
As cores e os odores renovam-se no que são.
Ganham vida
e emprestam-se ao ambiente
sequiosos da simplicidade da luz solar.

Primavera.
Amanhece mais cedo.
Os olhos estremunhados acordam
bebem a renovada luz do dia
pespegando o sol que,
breve,
alto vai cintilar.
Quando a alvorada gentil cedo se levanta
há um canto do dia escondido
na penumbra nocturna que ficou atrás,
derrotada na luz triunfante.
Vaga imparável
esquadrinha os cadinhos do céu.
Pinta-o de azul.
Antes há-de tingi-lo,
por instantes,
no alaranjado rubor do sol
que trespassou o breu nocturno.

Os pássaros acordam primeiro.
Deliciam-se com a mágica alvorada
no chilrear exuberante nas copas das árvores.
Pressentindo a luz caridosa
as flores soltam-se do resguardo nocturno.
Pássaros e flores
mão dada com a alvorada,
hospedam os transeuntes
(ainda a sair da letargia do sono)
para o dia frenético na cidade desassossegada.

Quando o sol se põe alto
já adolescente,
a alvorada despede-se na manhã.
Sem o encanto da alvorada branca
nem o sossego das ruas desertas.
Fina-se a alvorada
quando as ocupadas almas
batem a porta de casa e saem.
Vigorosas ou contrariadas,
apressadas ou lânguidas ainda,
para a rua já fremente.

Outra alvorada à espera
ciosa da luz
primeiro trémula, depois refulgente.
A saciar o apetite dos fogosos e indomáveis
amantes do bodo da vida.

8.5.06

Sapiência dolorosa

Unges a tua erudição,
pérolas agraciadas aos incultos permanentes.
Colocas-te no Olimpo dos sapientes
tradutor da instrução dos asnos impenitentes.

Deambulas nas danças insondáveis
pequenos os passos incompreensíveis.
É na erudição tão elevada que te refugias.
Até de ti mesmo.

Um dia,
tão inebriado
com assanhado conhecimento
esqueces-te de pôr o olhar em ti mesmo.

Ao despertares das incuráveis tarefas
da sapiência que espalhas,
vês ao espelho quem não reconheces.
Já não és tu, apoderado pela criatura em que te tornaste.

Virá o tempo da redenção.
Livros, enciclopédias,
mais os dicionários,
estulta matéria-prima de um desassossego.

Virás a tempo de recuperar o tempo?
Emancipação do castelo onde te aprisionaste
tocar nas pessoas, ora de caras belas
ora horrendas faces com verrugas e tudo mais.

Falar, sair do altar, caminhar
andar por sítios escondidos da tua torre de Babel
e saber que a ignorância que foi teu combate
é a aura de um povo tão feliz.

Só não saberás:
se renascido estarás
ou endemoninhado pela cruz que te crava
chaga ardente bem fundo.

6.5.06

Sonho, loucura

O sol de rompante tingido de vermelho.
A ruborizada cara da tímida desmascarada.
Máscara dos foliões do Carnaval das ilusões.
O desengano acometido aos passionais militantes.
A crença cega: ideias, pessoas, superstições.
O gato preto escondido dos que o esconjuram.
A ignorância que fermenta com a bonomia dos incautos.
Olhos fechados ao mundo, acríticos seres que vegetam.
Anomia interior que desagua num árido deserto.
Pisam areais escaldantes,
as areias que espalham miragens encantadoras.
Ensaiam sonhos do que não são.
Em miragens mais se revolvem
como se as areias crepitantes fossem
os lençóis que os aquecem.
Contemplam estátuas grandiosas
que só aparecem diante dos seus olhos.
Estátuas que enobrecem feitos impossíveis.
Quando acordam
assustam-se com a exiguidade do quarto que os aprisiona.
Amordaçados,
sem acesso à palavra que chama por socorro,
das amarras da camisa-de-forças já não se libertam.
Quando beijam a acalmia
percebem a ilusão dos sonhos que os mantêm ligados à vida.
Apetece cerrar os olhos
mergulhar no profundo sono,
sorver os sonhos idílicos,
paisagens brancas,
onde tudo é alvura
(o céu, as estrelas, o mar, a relva).
Como branca é a nuvem onde levita a liberdade esquizofrénica,
apenas uma liberdade onírica
fantasiosa
nua
na crueza do nada que bafeja bem alto
quando os sonhos já estão a pedir para serem sonhados
outra vez.
Aí sabem que levitam
na leveza que jamais os visitara,
passos lentos que pousam em nuvens almofadas.
Lá, onde as pessoas têm faces límpidas
olhos encantados pela luz pura;
onde os dedos se entrelaçam no afecto irreprimível.
Com o tempo
aprendem a viver espoliados do discernimento,
a droga vital e adorável
lenitivo da aquietação compulsiva.
A tranquilidade exasperante que nunca incomoda,
trajecto sem curvas nem encruzilhadas,
cumprido a eito, sem esgares,
ou um mar nunca encapelado
nem quando o vento fresco se deita
no mar que teima em ser chão.

Fogem,
fogem das coisas que são
das pessoas que existem
fogem deles mesmos quando fantoches alheios se tornam.
Ou apenas fantasmas propositados que se ensimesmam.

2.5.06

Ode à vida

Há almas que encontram paz na morte.

Sei que virás.
E sei que preparado não estarei
para te receber.
Pintam-te de negro.
Esconjuram-te, ensandecida és,
por desapertares os nós da vida.
Doentia e fatal
chegas um dia e ceifas a respiração.
Saltitas entre a penumbra,
para que ninguém te veja quando,
traiçoeira,
sorves ingénua alma para o alçapão.

Tu chegas a todos os mortais
que o são,
terrena e frágil condição,
por tu seres o que és.
Vestes de negro
quem chora a perda de quem levaste,
antecipando o choro invisível
da sua própria partida,
quando decidirdes que o indómito dia chegou.

Por tua culpa
vilipendiam o preto,
tu que cobres com manto de tristeza
os que sofrem com a despedida de quem levas
contigo.
Desapiedada,
dizes-te fiel da balança,
penhoras o equilíbrio da espécie.
Dizes-te
cultora da demografia aceitável.
E contudo
és cega quando tomas em teus braços
os mortais que o deixam de ser
quando se despedem dessa condição.
Será por isso que te dizem traiçoeira?

Por mim podes vir quando quiseres.
Convenço-me que sim,
que podes vir quando quiseres.
De preferência,
sem hora nem dia marcados.
Cá estarei,
não de braços abertos,
na jactante luta contra ti.
Há vida tanta por viver
que um sopro resoluto te afastará
Para algures,
um sítio que nem sei onde.

Virás,
as vezes que vieres,
e terás um obstinado amante da vida
insaciável no apego das coisas,
das pessoas, dos afectos.
Insaciado ainda por tanta vida haver.
Esse é o bolor que te incomoda,
ó morte tenebrosa:
para longe,
longe do horizonte.