25.5.06

Afecto ausente

Desconhecia os encantos escondidos
mesmo ali, ao lado das ruelas por onde passava.
Absorto na modorra existencial
na atracção pelo precipício que as coisas contêm,
desmembrado de corpo e mente.

Aliás
por vezes
desconfiava que tudo em si
era desmembramento
– como se as pernas andassem para lados diferentes,
a cabeça ao contrário do tronco
a mão direita acima do cotovelo
as orelhas no fundo das costas.
Achava-se a pessoa mais ridícula do mundo.
E definhava
na lentidão dos assomos de esquizofrenia
por entre os passos trocados de uma dança ignóbil
nos abraços que nunca dera.
Esboçava esgares de cinismo
ao ver afectos trocados entre anónimos transeuntes.
Por andar distante de si a necessidade dos afectos.

Aliás
por vezes
desconfiava que a chacota dos afectos
era mais uma doença que o visitara:
a inveja por viver fora da casa dos afectos.
Desdenhava-os
ria-se para dentro,
gargalhadas que só ele ouvia,
ao testemunhar
uma mãe acariciando o filho
os namorados abraçados com ímanes
o padeiro e a familiaridade com o cliente
o velhinho entregando afectos a um cão vadio
o simples “boa dia” cortês do jornaleiro.
Mortificava-se
por sempre ter fugido dos afectos
encerrado nas masmorras onde se refugiou.
Delas não se conseguia libertar
como se um pêndulo pairasse, sem parar,
sobre a sua cabeça
no hipnotismo da perene ausência dos afectos.
No isolamento propositado
sabia-se consumido por desconhecer os afectos
as sensações não experimentadas
mas que ele augurava boas,
a julgar pela entrega das pessoas aos afectos.

Aliás
por vezes
queria-se emancipar das altas ameias
de onde a vista nada alcançava.
Em momentos de lucidez
– que confundia com ensandecimento precoce –
só desejava sair à rua,
sorver o odor das pedras da calçada
das flores acabadas de romper dos seus botões juvenis
e olhar nos olhos dos desconhecidos
entregar-se em beijos retemperadores
abraços apertados
presentes às crianças que as fariam mais felizes.

As masmorras acabam sempre por vencer,
a sua tenebrosa escuridão
que esconde os afectos
embrutece o esquálido desiludido da vida.
Resta-lhe esconder-se,
dormir muito;
que nos sonhos, ao menos,
pressente o toque mágico dos afectos com os outros.

Aliás
por vezes
Apetece-lhe jamais acordar
daqueles sonhos frondosos que,
no púlpito da alvorada,
trazem o amargo sabor da vereda espinhosa do resto do dia.

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