30.11.22

A paz sem disfarce

Os dedos correm em simultâneo

sobre as cortinas que escondem

a fúria que amaldiçoa estes lugares.

São eles que servem o antídoto

passeando generosamente pela pele

onde a desarrumação das almas

se agiganta.

Mãos quiméricas

em vez de armas que se terçam

na inviolável condição dos estultos

que são os perspicazes mastins do caos.

Hoje

as notícias mandaram boas novas

aos que continuam a acreditar 

que o otimismo vai derrotar o pessimismo:

as mãos 

foram agraciadas com uma comenda

muito mais do que honorífica

uma espécie de Nobel 

à paz que não faz de conta.

#2601

Se morrer é para sempre

e viver o seu contrário

faça-se do viver 

a perene condição da vida.

29.11.22

Injustiças indocumentadas (45)

Laurear a pevide

sem se saber

a proeza da pevide.

Um oásis, vírgula

Um salto depois

Paris ou Istambul

Berlim ou Budapeste

extinto o sentido das fronteiras

os idiomas deixam de ser embaraço

e um caldo de cultura

feito de fusão

do sangue e da carne que não falam idiomas

nem são paradas em fronteiras

vem no lugar da roda sobressalente. 

As bandeiras hasteadas são todas brancas

nelas esvoaçam os vincos das palavras

nelas se sucedendo os idiomas amostra

desenhando 

a tinta da China 

o músculo da concórdia

o ecumenismo de diferentes

que só o são nas convenções arrumadas

no parapeito da banalidade. 

Somos 

os nomes que se dizem

em todos os idiomas

as bocas que se cruzam 

no desmedo das diferenças

os corpos cosmopolitas que aprendem a sê-lo

na vertigem do corpo sempre outro

seja qual for a sua linhagem. 

Numa eutopia militante

onde se jogam dedos em forma de pétalas

armas sem munições

as palavras mosqueadas em poemas espontâneos

bebendo a inspiração em marés untuosas

maresias anestesiantes

esboços de sonhos não proibidos por lei

nem desdenhados por tributos variegados. 

Esse lugar 

onde habitam os sonhos

não vem no mapa. 

É imarcescível na fusão das falas

no ditado dos corpos

na recusa das pertenças que disfarçam prisões. 

O lado escondido

abriga-se 

nos segredos

e em páginas de livros

sem inventário nas bibliotecas. 

Assim seja,

em Budapeste ou Paris,

em Istanbul ou Berlim,

à espera que um sinal funda as algemas

à espera

das sílabas com a raiz funda

onde os ossos encontram 

a lava adormecida.

#2600

Uma corda

no sapato rombo

desmentindo o desfalque

que envelhece a carne.

28.11.22

Herdeiro

Tingidas as folhas

o desencanto arrumado:

pelo andar dos boémios

a noite respira o eterno

e só os que se dobram 

é que confirmam o efémero. 

Agigantam-se 

os deuses nada óbvios:

as estrofes que esbracejam

vingam a cor sobre os vultos madraços

e todas as páginas

todos os parágrafos

são como as folhas 

herdadas do Outono.

#2599

A clepsidra estilhaçada

perpetuava

a tirania do tempo. 

27.11.22

Margens

A margem incendeia a pele

por a tocha centrípeta

acenar da margem outra. 

 

A lava ascende

por súplica do magma

a pele não capitula na demanda. 

 

Por ser tanto o desejo

inventa-se uma ponte

e as margens coalescem numa só. 

 

Não se extinguem as margens 

no sulfuroso atear das mãos

que se desfazem da sede recíproca. 

 

Entre as margens testemunhas

corre a caudalosa redenção

a poesia colocada entre os sexos intensos.  

Injustiças indocumentadas (44)

Terra 

seria o nome do planeta

se mares fossem só sete.

#2598

Faz-se o verbo

do jasmim disfarçado

de estandarte. 

26.11.22

Oriental

Já às margens correm

artesanais

por conta de evidentes notas de rodapé

ainda o sol não espreitou às costas da noite

enquanto se ouve 

apenas 

o murmúrio dos apressados emergentes

naquele pressentimento da exoneração da noite

e os olhos

na intenção de abandonarem o estremunhado

encantam-se com a luz inaugural. 

Oxalá 

se deuses houvesse

essa luz ficasse eterna

emoldurada num bola de cristal. 

#2597

O espelho

é o pior imitador.

25.11.22

#2596

Servisse de atalho

a instigação permanente

ao desassossego.

24.11.22

Trigonometria

Da pele em alvoroço

a lava tingida de branco

e o beijo em aval de poesia

sem os emolumentos do mal

só uma maresia que toca a boca

no pressentimento maior

que deus nenhum adivinha.

 

A roca do medo

extinta

e a maré que entra no rio

a caudalosa maré que enche o rio

desfeita a noite em mil pedaços de pele

e as estrofes que asfaltam a estrada

nos braços enlaçados

que voejam a manhã que arde.

Injustiças indocumentadas (43)

Autoridades competentes,

o prefácio e o posfácio

a um oxímoro.

#2595

À condição de um senão

para não arrematar

a hostilidade.

23.11.22

Desaviso

Cortar

a eito

sem esperar

pela porta aberta:

insiste

a destemperança

no rosto febril

de quem se desencanta

no êxodo da noite

no refúgio do luar.

#2594

Entregue como arrás

a agonia sine die.

22.11.22

Esclarecimento

O laço apertado

adorna a jugular

e a levitação dos sentidos

como se fosse lisérgica

enfeita as luzes bastardas.

 

Não se julgue

precipitadamente

o principesco abotoar da goela

que isto não é 

a matança dos galináceos.

#2593

Entre dois dedos de conversa

o encargo e a filosofia

“o dever de falar”.

Injustiças indocumentadas (42)

(Ter) culpa no notário

é fazer um golpe de Estado

à lei.

21.11.22

E assim sucessivamente

Se o mar não fosse fundo;

se as lágrimas tivessem nascente;

se a lava não amanhecesse irascível;

se os lados do mundo fossem fungíveis;

se as bocas não se embebessem em falso mel;

se os países não tivessem bandeira;

se o luto fosse anulado por decreto;

se a lua tivesse paradeiro na orla do dia;

se os peões soubessem que são peões;

se a lucidez não fosse emparcelada;

se os condutores de almas fossem para o diabo;

se os regentes não rimassem com mitomania;

se os corpos não mentissem ao tempo

(ou será o tempo que mente aos corpos?);

se todas as coisas válidas se extinguissem;

se não deixássemos de lado as palavras por dizer;

se não fôssemos reféns de um labirinto;

se nós adiássemos no passado sem causas;

se não fosse perda toda a matéria venal;

se não houvesse carestia de sermos nós;

se os disfarces não ocupassem o palco;

se os versos não se fizessem desacompanhar de mãos;

se a maresia tombasse sobre o entardecer;

se os rostos dos filhos fossem sempre pueris;

se as pernas não tergiversassem ao menor sinal do medo;

se a raiz quadrada de tudo fosse o sangue combustível;

“e assim sucessivamente”.

Injustiças indocumentadas (41)

Dar o braço a torcer

causa uma dor

excruciante.

#2592

Não é 

à conta de esperança

que se contam mentiras

ao futuro.

20.11.22

O palimpsesto de cada dia

O palimpsesto de cada dia:

aqui há um século,

aqui há um século.

#2591

Entoava as sílabas

com o mesmo vagar 

das folhas sem sono

e esperava

que um arco-íris tendesse

a gramática do tempo.

19.11.22

#2590

Não é 

a volumetria das costas

que mede 

o tamanho da culpa.

18.11.22

Nonetheless

É um acaso

a porta opaca

escrita com a maresia. 

Sobram os olhares

uma sombra de xisto

sentada sobre os socalcos

a desafiar o tempo. 

Um acaso

e por nada que seja

provável

ensinam-se as páginas decorativas;

se não se hasteassem 

tantos

no entanto

desertas ficariam as perguntas

e à maré entediada

seriam conferidos os saberes

afastada a humildade metódica

e a matemática precisa. 

Pela porta fundeada

o basalto cimeiro 

dá um ar de sua graça:

o chão limpo

é o passe social para desfeitear

a soberba 

– e, no entanto,

ninguém desiste 

de dar segunda hipótese

aos prováveis fautores 

de tantos caminhos sobrepostos. 

#2589

Maldito

eu 

conflito

o frete em bodo.

17.11.22

Betão armado contra espátula

As veias tornadas paredes

na sumptuosa enseada

à prova de juras

abjuram o medo consular 

a matéria funda que bolça

sobre a inocência.

A inocência,

ah!

como rima com incoerência

 

(a proscrita, hélas! incoerência)

 

como são remotos os paladares

as virgens que nunca o foram

as estantes destinadas ao vazio

as fábricas sem operários

um pouco

como aqueles comboios modernos

que viajam sem condutor.

As veias

congeminadas por dentro de vulcões

imperatrizes da sua própria lava

não se intimidam:

atirem-se os mastins a elas

para serem derrotados sem remissão

num remoinho nuclear que tudo dilacera

até a palavra estilhaços

banida do dicionário

banida das convenções outorgadas

banida de

banida de...

banida.

Os modos perderam-se

ainda a tempo

de serem desmentidos.

E todo o sangue devolvido às veias

tradução válida de um corpo inamovível

avisa os destemidos que tinham de o ser

contra a avassaladora tempestade sideral

o céu a fugir por entre os dedos da alma

e um copo de água

singelamente

derramado 

para avivar as sementes

para memória futura.

#2588

O ativamente conservador

rasgou o futuro,

tatuado 

nas paredes do passado.

16.11.22

Má fama

Não se diga

da má fama

que é uma fama 

a desproveito;

pois de uma fama

não se dirá

ser de má rés

ou fama não será.

#2587

Desse à chave um destino

soubesse do paradeiro 

da porta.

15.11.22

Azulejo

A ave espacial

esbarrou

à nascença

com a nave especial. 

 

Os fundos conjunturais

afinal têm fundo

pois o fundo que as fundeia

tem um forro de anteparo. 

 

Os senescentes não têm medo do futuro

o futuro é que se inquieta

ao saber que o será

sem a companhia dos senescentes. 

 

As estrelas fugiram do dia

confirmando

que o jogo que interessa

se joga à noite.

#2586

Devia haver 

na toponímia da cidade alvar

a avenida do presente imperfeito.

14.11.22

As flores e os nomes

Os nomes

escritos sobre as fotografias

como se as palavras evocassem

flores

flores contíguas ao sangue contínuo

e os nomes

apenas uma distância vaga

entre os despojos do dia

e a maresia do amanhã.

#2585

O sal sulca o suor

o sol síndico

dos sonhos.

13.11.22

Injustiças indocumentadas (40)

O dedo mindinho

como metáfora da adivinhação

é a revolta dos pequenos

a revolução

sem inventário nos compêndios.

Metafísica às metades

Chegou a mim 

a descoberta

que deus não existe

porque tem joanetes.

#2584

Uma ponte sem alfândega

uma pertença sem limites.

12.11.22

#2583

São estas palavras

o nome do sangue

em sacrifício do passado.

11.11.22

Certificado

Dizias

que o peito se enche de alma

quando a noite se disfarça

de um verbo que não esconde

o desejo. 

Dizias

com o olhar desembaraçado

que as palavras emprestam o sal

que se tornou rarefeito

neste lugar composto por gente meã

neste lugar

onde todos calçam as galochas do videirinho

e afocinham no juízo sumário

à custa de ordenanças gozadas por preconceito. 

Dizias

como se fosse preciso fazê-lo

que lugares destes são poços inválidos

cidades órfãs de mapa

idiomas que põem as pessoas a desentenderem-se. 

Dizias

que estás cansado deste desentendimento

que toma partido dos vãos

e que extinguem os voos largos

que asas decepadas não deixam embainhar.

#2582

Não é do futuro

que se alimenta 

o medo;

é do passado.

Cabalística (2)

11+11=22.

10.11.22

#2581

Cada um devia ter o direito

à revisão constitucional

e isso devia fazer parte

da revisão constitucional.

9.11.22

Triunvirato

Registo a patente

antes 

que a preguiça me tente

e em brancos dentes

se afogueie um tenente.

 

Vejo com desdém as pontes

e arrumo

antes que tu os contes

os anéis que cuido com aprumo

no balcão que guarda os dotes.

 

Das mãos verto este sumo

alteroso

e remedeio sem medo do fumo

o miado medroso

a que não me acostumo.

#2580

O acento

toma assento

na tónica

que não é água.

Os espanhóis

Os espanhóis

precisam de quem lhes faça 

desenhos 

no pecúlio da gramática;

de outro modo 

não teriam

pontos de exclamação

e pontos de interrogação

a prefaciar as frases. 

8.11.22

O elefante não saiu do jardim zoológico

Afinal

o elefante esteve 

este tempo todo

no jardim zoológico. 

Injustas foram as injunções

sobre o seu parco estatuto diplomático

em metáfora que mexia

com porcelanas de fino calibre

e salões onde solenes salamaleques

decorriam a preceito 

– os senhores 

pressurosamente 

desfazendo-se em cortesias hipócritas

e as senhoras

contrafeitas

reprimindo fantasias nas ameias da mente. 

Ao elefante

vítima de injustificada injustiça

devia ser reconhecido o direito de reparação

que hoje quadra tanto com os modismos

que às vítimas de outrora

assiste a reposição da justiça a seu favor

para que possam descansar 

no sossego da consciência dos outros. 

O mundo inteiro

(concessão ao rigor: 

o mundo quase inteiro

que não se impetra o consenso forçado

tão próprio de um centralismo democrático

de má memória)

devia saldar uma interrogação:

como foi possível

passar tanto tempo agrilhoado

à metáfora do elefante na loja de porcelanas

se o elefante

tão paquidérmica criatura

nem sequer cabia na loja?

Ninguém 

dera conta

que o elefante

não tinha saído do jardim zoológico.

Injustiças indocumentadas (39)

É 

manifesto exagero de patente

falar-se

de um general Inverno.

#2579

Desfilam

em passerelles sem Outono

os modelos à procura de ímpar. 

7.11.22

#2578

Quero do luar

a mesma fortuna

que traz o mar.

6.11.22

#2577

Sem o juízo a juízo

nada sobra de um siso.

5.11.22

#2576

Os fazedores de tendências

os engenheiros de mercados:

biltres, 

papalvos,

ou exibicionistas?

4.11.22

#2575

Coleção

de absurdos gramaticais

a rimar 

com a imperícia dos regentes.

3.11.22

Menos que noite

É o superlativo embate

na onda que se agiganta

desde o magma lancinante:

nada se oferece em vão

e os mármores sublimam

uma opulência que é disfarce.

Nas mangas da incerteza

gravitam as constelações sem freio

e os pés que sentem a falta de chão

não se desordenam

não encaixam no caos aparente.

Deixem-nos à sua sorte

que eles 

sabem procurá-la.

#2574

Não somos corsários

e não damos resposta

a convocatórias de zaragata.

2.11.22

O jogo sem fim

Sexto sentido:

as covas da estrada

desamortecem os contratempos

em que se prevê o tempo por andar. 

 

Vão as janelas, os contemporâneos:

assustam as nuvens malvadas

que fazem coro com a tempestade,

sabem que forte é a sua têmpera

quando porfiam contra o mar levantado. 

O corte válido

é aquele que resgata os sentidos

que nunca chegam a ser velhos. 

Se o fuso horário não enganar

e o rio arrematar a nostalgia dos forasteiros

das barcas trôpegas desembarca

uma gesta de virtuosos,

aqueles que trazem no bolso

resposta afivelada para qualquer pergunta. 

 

O miradouro tira as teimas:

no lugarejo conhecido como mentira

desaprovam-se todas as palavras. 

Mal se desencanta um lugar assim

que toma as dúvidas por mentiras

e isenta de culpa as mentiras que o são,

legítimas.

#2573

Se os sonhos 

enfraquecem

as páginas restantes

tornam-se bastardas.

1.11.22

Sinalética

Do sol

até ao sul

do sono sanado

em vez do sal segado.

 

O sabre

sobre o santuário

sinaliza o sábio

servido de sentinela.

 

O sal servido

singra o sono sagaz

que no Sul

se sagra no solstício.

#2572

O mundo

está cheio

de varizes.