30.9.23

#2917

Tira 

a gola da alta da angústia

afinal, 

é Outono com ares 

de Verão.

29.9.23

Disco riscado

Veja-se como é

um disco riscado:

a iteração exaustiva

um gaguejar apoplético

o síndrome

do cão que corre atrás da cauda

a beleza extinta do silêncio ausente

uma teimosia que desassossega

os acrobatas públicos que se repetem

à exaustão

a matança da criatividade

sem pena a preceito.

O disco riscado

que vai e vem sem sair do sítio

miragem de um patíbulo fingido

e gente em forma de farsa

ou farsas ocupando o lugar de gente

e uma loucura incandescente

tomando conta do chão

subindo pelas paredes

ciciando no rosto desprevenido

colonizando as raízes onde se esteia

o pensamento

– o pensamento:

esgotado por dentro

um enorme vazio vacinado e contínuo

contra os outros.

O disco riscado

em surdina

com-pa-ssa-da-men-te

de três em três segundos

esvaindo a loucura.

Injustiças indocumentadas (193)

Motivo

de força menor.

#2916

A meação 

de duas verdades

faz uma mentira 

completa.

28.9.23

#2915

Sete são os cães

um só o osso

já rabos de palha

contam-se aos milhares.

Bolo mármore

Pólvora húmida

a rabear entre as folhas caducas

(sim, é Outono)

farejando o mijo das divindades

como se houvesse carestia de epifanias.

Se outros Moscovos viessem em barda

os passaportes não precisavam de validade.

Cumpriam-se no luar extático

e as pessoas

em imoderado encantamento

seriam lúdicos aprendentes de idiomas

e, peritas em diplomacia sem ardis,

apanhariam o vento marmoreado

na passerelle sobre o rio habitado.

Não se assustem os gentios:

não é um terramoto

é só o barman

a abanar o shaker.

Injustiças indocumentadas (192)

Disseram-lhe

és um diamante em bruto.

Levou a mal

e cobrou em moeda bruta

(ao tresler que era 

um diamante bruto).

Injustiças indocumentadas (191)

É igual ao litro

mas

não é igual ao quilo.

 

[Apologia da diferença]

#2914

Apadrinhas

o miradouro do tempo

para não caíres 

nas suas más graças.

27.9.23

Furacão

O poente

deixa de soar o dia

abriga um porto esconderijo. 

Tudo é falado em surdina

as paredes travam as palavras

que emudecem 

na fronteira da casa. 

É o tempo preferido dos sortilégios

que assentam coreografias

com o estuque dos vultos arrematados 

a argamassa retirada ao anonimato

preparando de véspera 

a urdidura do dia consecutivo. 

Sucessivamente

num ritual que não veste regras

sem autoria determinada,

até ao momento em que escrevo. 

É o dia que vai contar o futuro

ornamentando a gramática com entorses

assim como os dias madrastos

que compõem um palco a que os pés não subiriam

se soubessem do futuro antes do tempo. 

Deposto o medo

o idioma fica como testemunha. 

O úbere da memória não tem paradeiro certo

os procuradores da angústia foram demitidos

e as preces dos desafortunados foram decantadas

tudo se compondo numa mirifica paisagem

onde se combinam urze e mel

chuva teimosa e fertilidade

os rostos que irradiam leveza

e as montanhas escarpadas 

onde a vida se leva difícil. 

Não se exorcize o olhar estremunhado:

o sangue pulsa nas paredes das veias

arrebata as bandeiras que são uma farsa

e o corpo insubmisso atira-se ao precipício

sabe que o pode domar. 

Dizem-se palavras avulsas 

– o auge da autenticidade

como se fosse preciso mostrar credenciais

como os embaixadores da lucidez. 

Mas não é de lucidez que se cuida;

o vento que assobia o desmedo

desafia a angústia que procurava atestado

os ossos são a matéria que não se transaciona

assumem os esteios que uma identidade afigura

antes que deuses assassinos colonizem o bem,

assim disfarçado, 

e todos nós,

distraidamente 

(ou apenas sitiados pela letargia)

sejamos matéria fungível

um longo bocejo refém do acaso.  

Injustiças indocumentadas (190)

Raspadinha

já que não se raspam

para paradeiro certo.

#2913

No abismo do carrossel,

quando a respiração se avessa

e as dioptrias se exacerbam,

celebramos a vertigem.

Injustiças indocumentadas (189)

Dar a palavra

pode não ser 

o vértice da bondade.

26.9.23

Com as letras todas

E como se ameaça dizer

com as letras todas

ninguém contesta a possibilidade

de as letras todas 

ser um manancial de fortuna

a irradiação do alfabeto

a petição da suprema igualdade

a abnegação de um letrado

que não suprime letras à existência

e ensina

a quem interessado estiver

que usar as letras todas

não contém uma ameaça bélica

antes pelo contrário

encerra a riqueza das palavras

que procuram 

pelo alfabeto inteiro.

#2912

Fala

panteão

sobre a têmpera

de um país.

25.9.23

Arnês

Eu 

não acreditava 

em quimeras.

Desde 

que conto 

os teus aniversários,

converti-me.

Diluente

Não se cumpre o ocaso 

a não ser 

que digamos aurora boreal, 

e chamemos

a vontade sem adjetivos, 

a pele recíproca que se funde, 

os lugares avulsos à nossa espera. 

Não se cumpre o acaso, 

porque somos 

os arquitetos do ocaso. 

Injustiças indocumentadas (188)

Palavra

de 

desonra.

#2911

A autoestrada desfila

impulsiva,

como os sonhos.

A direito

Da manhã 

que se levanta nos rostos, 

rejeitamos a bruma 

que adia a impaciência. 

 

Fazemos a manhã 

com o aval

dos nossos dedos. 

 

Já não somos apenas 

silhuetas.

Projetos em estiradores 

que se confundem 

com estilhaços. 

 

Somos suseranos 

do que quisermos ser. 

 

À espera 

de um dia qualquer, 

porque não devemos nada 

ao futuro.

24.9.23

#2910

Desalojada a sentinela

a rua ficou deserta

e as vozes ouviam-se

em constantes murmúrios.

23.9.23

Injustiças indocumentadas (187)

Ninguém

jura o juro

que há de estar.

#2909

O tigre no papel:

a demolidora lente

que dilata as rugas inválidas.

22.9.23

Injustiças indocumentadas (186)

Aos amanhãs que cantam

prefiro

as manhãs que encantam. 

Os sabres desmentidos

Violinos como coldre

a matéria funda que se funda

e um beijo equinócio

a tradução que nidifica no nada

braços contra braços e no fim

ganham os indigentes sem passaporte.

 

Mastros que perscrutam o horizonte

derrotam a finitude

os espécimes literatos 

que do mar fazem moradia perene

eles e toda a fauna submersa

quase adormecem perante o eclipse.

 

Não se avisem os entendidos

que soa a ignorância o atrevimento

não é preciso a advertência

que mal seria feito se os demais

privados fossem de um módico circense

que não se mede em braçadas o tédio.

 

Não se encontra procurador para os eruditos

é pena, não há quem queira a embaixada

e os cocktails molotov em surdina

parecem destinados a um museu

que (ó boa nova) os mastins foram presos

e ainda se pode esperar por belos amanhãs.

 

Dispensadas as pitonisas da diplomacia

ao palco sobem personagens diletas

sereias, poetas, mendigos, apátridas das ideias

e as pessoas não escondem o arrebatamento

esperam agora (do substantivo esperança)

que tudo venha caiado com as palavras tónicas.

Injustiças indocumentadas (185)

Quem não tem barbas

não as deita de molho.

Injustiças indocumentadas (184)

Recriação;

ou recreação.

#2908

O rosto visceral fala do medo

como quem o arranca

da faina tumultuosa.

21.9.23

Cem fronteiras

Um natal avulso

contratado à pressa:

os aprendizes

com trauma verificado

protestam compensação.

O que melhor se arranja

é um natal a destempo.

Não há agasalhos

que o outono nem arrimou

e os publicitários ainda estão

a uma enorme légua mental.

Os aprendizes assentam as cicatrizes

prantam por parvulez

candidatos à eterna puerilidade

a serem

gente a menos para corpo a mais.

Uma nova modalidade

de discriminação positiva.

Só falta reverenciar

os didatas da indulgência

e perguntar-lhes

(não vá ser importuno)

por que é devida aos aprendizes

uma compensação

se ainda nem tiveram tempo

para aprender a sofrer o mundo.

Estas alfândegas sem passaporte

ainda vão matar

e antes do tempo

gerações por haver.

#2907

O riso exuberante,

a drenar as entranhas

do mundo mau.

20.9.23

Congruência

Percebes a luz inaugural que desmata o dia. 

O refúgio prometido aloja-se no silêncio

o silêncio por enquanto. 

Ouves 

o bramido das folhas acorrentadas ao vento

o leve ciciar do vento

que desassossega já o porvir próximo. 

Sentes-te como as raízes das árvores 

– não há nada que cause uma razia

e a razão dirá se se compõe em teu tesouro. 

Ao longe

onde o horizonte põe termo ao olhar

levanta-se um leve torpor

como se o mar estivesse vigilante

o viável fundamento que aconselha. 

Os contratempos arrumam-se na fila de espera. 

Sem se darem à visibilidade

pondo os cotovelos em cima da mesa

fruindo a angústia de quem sabe

o que é uma rasteira dada por um contratempo. 

Desvias o olhar

empurras o horizonte 

inventas as tuas próprias impossibilidades. 

Um esboço de luz espreita pelas mãos

deixas o papel deitado no estirador

e adormeces a alma

sufragada pelo sonho que entreteces. 

Às vezes

os domínios que ocupas remoçam

emprestam ao dia um dia inteiro

sem recusar a sublevação dos ossos

apátrida

generoso. 

Se pudesse ser

fazias um poema 

na tela que espera as aguarelas. 

Encurralavas os dentes furtivos da noite

para fingires a solidão

para fugires das multidões. 

Não foges de ti. 

Toma-lo como compensação 

contra os solavancos

o autêntico terramoto

que fragiliza a imensidão do mar 

em que habitas.

Injustiças indocumentadas (183)

Se aos gauleses encomendassem

“rua”

eles aprovariam, 

com prazer,

a interpelação.

#2906

Atira os dados

mas antes

passa os dedos pelo mel

não vá a lotaria fugir.

19.9.23

Arrelias (ou avarias)

É voz corrente

o mundo está arreliado. 

Ele são dignos suseranos

que explicam terramotos

com as alterações do clima

outros que carregam 

o estigma da pederastia

e por aí fora

numa procissão de conspirações

que levitam em forma de teoria

no mais profundo insulto 

à teoria das teorias

uma boémia demencial

em que grotescos clérigos 

escondem a inveja da boémia

e inadvertidos dignitários 

bolçam uma espuma pútrida

que almeja disfarçar 

um não saber. 

Não

o mundo não está arreliado:

se estivesse 

tinha de vomitar para dentro

a arreliação de si mesmo

como se desencavilhasse uma granada

para dentro do próprio bolso. 

E se o palco for virado do avesso

depressa se intuí

que o mundo não pode estar arreliado

ao parir tão risíveis personagens. 

O mundo

nisso é dileto

pródigo nos momentos circenses

e nas distrações com que nos habilita.

#2905

As vozes em vão

caladas pelo silêncio 

que invade a sala vazia.

Injustiças indocumentadas (182)

Espelho mau

espelho mau...

 

[Colóquio do anti-narcisismo]

18.9.23

Boas maneiras

O escansão não foge da ardósia

disseram-lhe que é velho

para a ardósia o querer como fóssil.

Não quer saber.

Do escansão

depende uma turba:

apurado, o seu legítimo palato,

oferece mandamentos

seguidos por uma caterva de aficionados.

Antes de se saber

o escansão foi o primeiro dos influencers.

Injustiças indocumentadas (181)

Ditador.

Dita dor.

Dita a dor.

 

[O da Coreia do Norte, a subir ao comboio, dizendo adeus à Rússia]

#2904

Tinha voz AM

era pena

as pilhas serem

de longa duração.

#2903

Não é 

por indulgência

que se adia 

o passado.

17.9.23

Injustiças indocumentadas (180)

Fotossíntese.

Foto.

Síntese.

Injustiças indocumentadas (179)

Se são outros quinhentos

façam-me o obséquio de revelar

onde estão os primeiros quinhentos.

#2902

Escudeiros adestrados

acordam de véspera:

apanham os despojos

da boémia dos senhores. 

Injustiças indocumentadas (178)

Dedos são dois

de uma conversa que pedia

(“eu sei lá”)

quinhentos, “assim” por defeito.

16.9.23

#2901

Voltamos

ao colo do outono,

que o verão está esgotado.

15.9.23

Injustiças indocumentadas (177)

Nunca edil

foi tão contíguo

evil.

 

[O Dr. Moreira queria armazenar uma estátua de Camilo e Ana Plácido porque esta estava nua]

A corda do basalto

O basalto contorce-se com o suor da noite.

Desprende-se das faúlhas e povoa o vinhedo

e as pessoas

ao longe

confiam no desespero

atestam o desespero:

já pressentem as vozes periciais

já as pressentem

a atirar a semente do remanso póstumo:

o basalto 

será o rosto físico 

de um vulcão cansado

entretanto adormecido

e, arrefecido,

receberá em seus poros a quimera depois:

as sementeiras serão consagradas

num parapeito inóspito do mundo

onde as lágrimas se converteram em suor físico.

Tempos depois

já a lava ficara esquecida entre as folhas frondosas

os pecados ficaram por arrematar

(segundo os pobres anciãos

reféns do paganismo ancestral:

o vulcão tirado ao sono

é a vingança dos deuses enfurecidos):

a ira dos deuses sem nome conhecido

escolheu aquele lugar

a paisagem acrisolada nos novelos de basalto

nos cachos de lava tornada pedra

entre dentes de leão e acácias

entre os bagos das uvas milagrosas

e o vinho repatriado das balsas da lava estática.

Injustiças indocumentadas (176)

Copérnico estava errado

pois tanto se evocam

os quatro cantos do mundo.

#2900

O dia fêmea

come a fome de miséria

deixa na boca

um odor a framboesa e maresia.

14.9.23

Voltagem

Insisto nos frutos maduros

que na boca arrumam lucidez.

Contrasto a fala amansada

com os lampejos de outrora

e contradigo os impulsos febris

a matéria volúvel que depressa

de extinguia:

são válidas as águas de agora

e os barcos navegam sem pesar.

Não falo para deuses inventados

nem para o futuro onde só estão

os anciãos.

Arrumo as perdas

como se não houvesse contabilidade.

No ábaco perene

as palavras são parentes dos algarismos

e não há equação distante

que fuja dos estábulos onde tudo fermenta.

#2899

Os rostos vertiginosos

a vertigem do silêncio

a multidão ensurdecedora.

Injustiças indocumentadas (175)

Se é selva

não tem lei.

13.9.23

Como aprender a ser algoz em cinco lições

Numa correria

como se tudo estivesse

em vias de extinção

e quase só sobrassem

memórias do futuro

não sabemos

se somos nós a passar 

supersonicamente

pelos acontecimentos

ou se é o tempo às talhadas

impronunciável e ascético

que nos condena à matriz da irrelevância. 

 

Confundimos tempo e modo

e por tanto sermos a esquadria de uma forma 

numa anestesia total dos sentidos

esquecemos das desconvenções

a fala arquétipo que condensa a maturidade. 

Esquecemos 

há um ser em nós

que não se resume a um eu

esse eu é uma fortuna sem valor

esquecido por nós 

arrematado num leilão de inconveniências. 

 

Os rios emagrecidos açambarcam o olhar

desfazem-se no mar que os coloniza

como se fosse uma clepsidra que anula a luz. 

 

Sabemos o que não sabemos

tanta a perícia costurada 

na reivindicação do fogo 

que acende o pensamento. 

Não sabemos

do caudal do tempo

esgotado no esquecimento;

não sabemos

da nitidez das silhuetas

que oferecem redenção;

só sabemos

desnatar os ossos

calar a fala funda

obliterar o desassossego 

– para sermos matéria domada

olhos pacientemente vendados

carne puída arrancada aos palcos amotinados

sitiados pelo torpor

ingénuas vítimas do despensar voluntário

nós,

os nossos maiores algozes.

Injustiças indocumentadas (174)

Gostava

mesmo

era de estar

quadradamente enganado.

Injustiças indocumentadas (173)

As ovelhas ranhosas

estão constipadas.

#2898

Estas fraturas

nem com gesso

se curam.

12.9.23

O militante perene

Esconjuros à parte

os confrades ofereciam 

pusilanimidade,

artesãos 

de sonoros amanhãs cantados

insistindo no logro

ou acreditavam sob o jugo da carne própria

na enciclopédia que repetiam 

como se fossem atores em cena

diligentemente repetindo o guião da peça

sem tergiversar

religiosamente.

O seu vaticano

era um museu de saudades

onde o frio do inverno

crestava à boca da melancolia.

#2897

Em cada sílaba amotinada

em cada corpo sitiado

as minas prometem-se

como flores audíveis

como dádivas lancinantes.

Injustiças indocumentadas (172)

Deixa

para amanhã

o que não podes fazer

hoje.

11.9.23

O elogio da imortalidade

O ocaso nunca é tardio

é um acaso que conspira 

com a ordem da contingência.

Como se houvesse manhãs

a fugir do entardecer

e, mudas, soubessem

o cantar das sereias refugiadas

num lugar que está atrás do horizonte.

Não contamos por módico

o inventário de que somos peões.

Antes fôssemos

generais sem comenda

os favoritos da desmedida

um magma feito de sangue sem cicatrizes

caóticos devido à linhagem da medula

e sintomaticamente imortais.

 

Somos imortais,

dentro de uma medida do tempo.

#2896

Houvesse 

martelos pneumáticos

ou um sortido de bombas

para esquecer o futuro.

Injustiças indocumentadas (171)

Tentativa

e ferro.

10.9.23

Do futuro como matéria gasta

Travámos guerras esquecidas.

Colámos

com a saliva que desonra

as cicatrizes para sempre puídas

que quimera alguma há de apagar.

E um idiota

diz de si mesmo

ministro do futuro.

 

(Salva-o, in extremis,

por não fazer alarde

em causa própria

de ser o ministro do futuro.)

 

E ninguém se desfaz

do segredo tão simples

de dizer:

travamos 

as guerras esquecidas.

 

[Agradecendo a Timothy Morton, “ministro do futuro”]

Injustiças indocumentadas (170)

Es-croque 

monsieur.

 

[Precaução

para não ser processado

pelo empresário dos barquitos.]

#2895

Lamentavelmente estacionado

num lugar ermo

o automóvel espera

pelo canibalismo do sucateiro.

9.9.23

#2894

A boca ferve

no sangue que se atiça

na febre furtiva.

8.9.23

#2893

Farias um poema

com a palavra

saraiva.

 

[Anátema de um poema]

Injustiças indocumentadas (169)

Simulação do tédio geral:

rabo escondido

com o gato de fora.

#2892

Admita-se a concurso

a esbelta forma da provocação

antes que tudo seja tomado

pelo fantasma do sopitamento.

7.9.23

Lotaria

A pele estremunhada

testemunhava o exílio dos deuses

aprisionados num labirinto. 

A legião acusava os conspiradores

sem saberem erguer por um dedo sequaz

nomes e rostos. 

Os deuses

de rastos

eram consumidos numa pira improvável

e nem sacudiam da pele os vestígios das chamas

distraídos pelo pasmo. 

Do outro lado da cidade

as ruas exultavam

e, não por acaso,

(de acordo com uma possível festa de conspiradores)

as árvores estavam floridas

como se batessem recordes. 

Esta era a litania dos subjugados

o avantajado sofrer pedagógico

fonte de sacrifícios em nome da redenção

de repente

tudo levado ao banco dos réus

sob os auspícios de juízes desconhecidos. 

O resto já é sabido:

a justiça ajuizada como convém

profanação dos parâmetros habituais 

segundo a legião, 

ou a diligente justeza

como se fosse avalizada

pelas divindades ora contestadas. 

Injustiças indocumentadas (168)

Ainda ninguém descobriu

onde é a fábrica 

de fazer conversa.

Injustiças indocumentadas (167)

Convencido.

Com o vencido.

#2891

Rasuras 

com perícia

os escombros protestados

convencido então

do aval pendente.

6.9.23

O poeta também tem alma e não parece

A gramática perfumada contava o precedente:

“soul flowers”

era o apanhado da métrica desembaraçada

entre o assoreamento matinal

e a ginástica verbal.

O poeta

esse

fingia que dormia.

Os versos tingiam a penumbra

e ele estava próprio do dia derruído

antes do tempo.

#2890

A frase

terminada

em vírgula,

ou num sucessão

interminável

de dois pontos.

5.9.23

Prometeus

As estrelas jogavam esgrima

e não bolçavam violência:

era uma espécie de circo

um circo dos bons

e no céu acenderam-se metáforas

uma aurora prometida

contra os mastins que povoam pesadelos.

As estrelas em esgrima

subiram à medalha de ouro

e abrigámos na fonte dos desejos

olimpíadas com esta silhueta.

Injustiças indocumentadas (166)

Sunday, bloody Sunday

depois de tantos e arrastados

domingueiros na estrada.

#2889

Verte os garfos desassisados

sobre o sal do dia

e respira

com os olhos bem abertos

a alma que irradia.

4.9.23

Injustiças indocumentadas (165)

Dar 

as balas ao peito

é suicida

ou genocida.

Desdenhado

Antes se dissolvesse numa solução alcalina

essa ideia anã que amadurece 

com o viço dos analfabetos.

Antes fosses astronauta de doca seca

partidário visível,

daqueles que se ufanam

por darem o peito às balas

tartufo desmedido de circense veia

e as palavras

bolorentas

entronizadas no carvão atávico

dos que se ensimesmam na vaidade vã.

Antes fosses 

calado

e em teu calado nascessem vesgos atributos

e tu soubesses da tua desdita

e calado

no calado de quem se sabe grotescamente pilhérico

atiras a fala à parede

só para a ver liquidada

(a fala,

não a parede).

#2888

O futuro 

já aconteceu

quando ler 

esta linha.

#2887

Portfolio tácito,

fotografias sem critério

à espera de porta a condizer.

3.9.23

#2886

O sexo masculino

já teve dias melhores.

#2885

Borla

é tão próximo

de burla.

2.9.23

Excomunhão

O posto postiço

soletra um salitre umbilical

coalhado na coação do dia

faz-se ente de estimação

entra nas apostas do dia

e adormece

triunfal

nas alvissaras de um travesseiro.