12.5.08

Olhos fechados, uma fortaleza

Só uns olhos fechados
no dealbar da escuridão
onde se joga toda a confiança.

Na penumbra que se insinua
repousam os olhos
resguardam-se em seu colo de ternura:
um ombro, seu ancoradouro gentil.

Não queria
tecer a luz que irrompe na alvorada;
não queria
destruir a escuridão onde tudo se esconde
sobretudo o que não merece atenção dos olhos.

Queria ter assim,
toda a noite,
o ombro protector
contra as investidas de todos os demónios.
Por os demónios possuídos de malvadez
adejarem na luz do dia
vindos de esconsos promontórios
onde vigiam os desassossegados espíritos,
as vítimas que se seguem.

Ao menos no remanso da escuridão nocturna
cegam-se, os demónios.
Só então deixam de ser inevitáveis
só então
exangues da força sobre-humana.

Aos olhos cerrados pela espessa camada da noite
vem o refúgio.
O refúgio
das conturbadas ondas do dia
as que semeiam a desordem e o medo
e apagam vestígios de bondade.

Os olhos fechados num sono iludido
o tear onde ondeiam plácidas águas
lá que a maresia tranquila povoa o sossego,
o tão breu sossego.

À noite dormem os demónios
no seu contrário de morcegos noctívagos.
Os segredos da serrania intensa
nos seus contrafortes escondidos do luar.
Os olhos vagueiam nas ondas circulantes
ciciam o seu esplendor
imersos na profundidade de sonhos cheios de cores.
As cores
que só a imersão num banho de trevas
revela.

Os olhos permanecem belos
de uma serenidade tão estranhamente bela.
Pelos olhos assim cerrados
repousados no meu ombro
as ameias mais altas da confiança:
todo um mapa que tacteio

e em que confias.

4.3.08

Heliocêntrico

A cabeça pousada entre as mãos
fita a escuridão que se projecta no chão.
Não são fantasmas
nem ventos empoeirados
ou aves de rapina que cerceiam a voz;
uma espessa nuvem
clarividente na antítese do negrume
distingue-se nos olhos cerrados.
Uma lança afiada tomba,
estrepitosa,
deixando o seu gume ponto cardeal.

O desassossego providencial
resgata o corpo da inerte função,
já sem a embaciada luz
de onde tanta incerteza se incensou.
As pontas dispersas
as páginas soltas
quadros cavernosos
um uivo de palavras indefesas:
tudo no seu amplexo desassombro
cada golfada de ar
um ruminar em pastos estéreis.

Uma misericórdia lentidão
por onde os ossos se acotovelavam, imensos
e uma covardia de só recusar a letargia indigente.
Havia a cabeça repousado na escuridão
metida entre os quadris
escondida da sua própria fúria avassaladora.
O mergulho aos confins de si
inesgotável, febril manancial de se saber ser
ser
importunado pelas certezas incómodas
mas certezas, porém.

Recentrava os eixos que se geravam em seu equilíbrio:
não era fuga da amálgama revelada pelos olhos
nem a dolorosa ascensão
ao castelo que encerrava curativo exílio.
Ao contrário:
a urgência de ter os olhos bem abertos
perenemente bem abertos
guerreiros ao sono envenenado
que trazia,
com a alvorada,
o adocicado sabor das pétalas embutidas em veneno.

Queria muitas vezes repousar a cabeça nos quadris
remetê-la à escuridão forçada:
não eram as algemas do pensamento a esbarrar,
indomáveis,
contra o peito sangrado;
era como se o navio recolhesse âncora
sulcasse águas jamais tragadas
com a espuma a salpicar
o altar onde tudo renascia.
Deixava de contar tudo o que fosse
inteligível, sensorial, colorido.

Havia uma suave neblina
a escotilha das portas tentadoras
por onde o cêntrico lugar
temperava desbragadas emoções.
Um pináculo tão nítido
ascendendo entre as gotículas que resguardavam a neblina.

E nem que o navio julgasse vogar em círculos
em perpétua revisitação dos gastos lugares;
nem que os olhos
se demorassem num firmamento tão familiar;
ou as palavras, sempre as mesmas palavras,
entoando os cânticos que se esgotam em seus acordes;
podiam até os pés lacerados
de tantas pedras pontiagudas
consumir-se nas suas feridas ensanguentadas;
E nem que os dias em contemplação
inaugurassem a solidão;

Nada
nada por conta do retempero interior
das águas contagiantes
em palpitante trajecto desde as entranhas
lavando as veias das cores que as tingiram
torrente varrendo todas as impurezas.

Até que tudo sobrava na sua nitidez refulgente
numa cor não substantivável.
Um coro ecoava ao longe
melodias de trato encantador.
Levitava, por fim
na sua heliocêntrica condição.

14.1.08

Os bárbaros devastadores

Das catacumbas
ascendem pelos poros humedecidos
rastejam, insinuantes,
amensendam com a boçalidade impante.
Gargarejam alarvidades
sorrisos canhestros
gargalhadas logo vomitadas
toda a babugem repelente
osgas fugidas das profundezas onde o breu
e só o breu
tem trono.

Passeiam-se pela juventude
esbelta e frenética.
Pela juventude antitética de ansiolíticos
desvario constante
atropelos sem cessar
gritaria,
muita gritaria
e desdém em redor.

Mas não:
venho, ao arrepio das convenções,
transigir uma geração;
militante recusa
em esboçar moralidades bafientas
que crucificam levas de adolescentes
e já não adolescentes
no muito sangue fervente na guelra.
Espectador anónimo, apenas
como se do promontório
(e seguro)
andasse testemunha,
fiel dos arroubos intempestivos
do desinteresse lancinante
da vozearia inconsequente.
Ou talvez não:
da vozearia
grito de alma
despedaçado porvir
que fermenta a dissonância do mundo.

A dedo erguido:
os mais velhos
culpados pelo estado de coisas.
Os mais velhos:
deixando os fragmentos
que hoje são o firmamento dos novos;
fautores dos bancos de ensaio
onde deitaram, cobaias, os novos;
sacerdotes do experimentalismo perene
de desastre em desastre
todo um oceano
– um vasto oceano –
de devastação
sementeira de pessimismo loquaz
onde o céu se demora na sua escuridão
o sol emoldurado num museu que sagra o passado.

Os mais novos
nada desaproveitam.
Ciciam os ciúmes de outrora
de um qualquer outrora mais fértil
dos idos que lavraram a métrica do empenhamento.
Hão-de protestar moralistas encartados:
que os novos são todo um oceano
de incultura e desconhecimento,
a pá que levanta a terra da sepultura
a sepultura da bárbara condição que arremete.
E dirão:
os novos tingem as convenções
com os dedos retorcidos
desalinhando puro egoísmo atroz
cicuta que tudo consome à sua passagem.

Eu
niilista sem remédio
desminto-o por instantes:
retemperado das caves imundas que me acolhem
desconfio
que os novos são o contrário da sua imagem dantesca.
Por momentos
é neles que revejo a minha redenção.
Que interessa a estética ininteligível
a língua assassinada
a abúlica expressão diante do mundo,
como se fossem as pedras inertes
recebendo de braços abertos
as ondas que nelas se despedaçam.
E que interessa
ajuizar gerações pelo diapasão hermético
das idades diferentes,
houvesse um compasso acertado
misterioso caudal por onde vogam as águas separadas
os velhos e os novos em camadas distintas.

Resisto:
os novos não são bárbaros implausíveis
bandeiras hasteadas da boçalidade grotesca;
nem criaturas disformes
pérfidas existências onde nidifica o nada
ou placentas mal digeridas
que resguardam maldade e ignorância.
Desenganem-se os que os olham
simples espuma que se esvai ao leve sopro.

Às vezes
deslaço-me do pessimismo antropológico.
Pela mão dos novos
hediondos
sarcásticos
intragáveis
incompreensíveis
retrógrados
impensáveis,
violentos, até;
mas novos, porém.
A longa aura diante dos olhos
os campos que vão até ao horizonte.
Ou, porventura,
apenas inveja pela idade ainda imberbe
da inocente imaturidade
um assomo de nostalgia elevando-se
ciente que o tempo na sua abundância
pertence aos mais novos.

Porventura
o optimismo antropológico datado.

8.1.08

E tu serias

Dizias

haver abraços irrepetíveis

beijos só no instante em que se esvaem

um rosto amolecido pelos afagos

uma cintilante avenida diante dos olhos

- olhos teus

que por mirarem os meus

faziam de mim

miradouro do mundo.


Dizias

que só há uma entrega

as mãos dadas, o combustível dos corpos

e os corpos sedentos

fogueira dos seus complexos desejos

- os corpos na sua síntese

os corpos em coreografias sensuais

alimento e altar

da combustão estrelar.


Pela manhã dizias

que o mundo podia acabar hoje.

E eu

perplexo

sem saber se por metáfora falavas.

Doce a água do regato

O regato escorre entre o musgo

planam as águas frias

sob o testemunho das nuvens

onde ecoa o sussurro das águas.


À noite

só sobra o sussurro

o sinal da ténue água

imparável, mas lenta.


São as pedras, imóveis,

que indagam o destino das águas

fugindo pelas fragas

rompendo entre as rochas que as acamam.


As pedras, estáticas,

diante das águas que rumorejam

os dias ausentes

na sua imóvel condição.


Oxalá se movessem

nadassem pelo leito perfurado

andassem com as águas lentas

até um desfiladeiro, ou estuário, aportarem.


Desenganam-se, as pedras

presas à sua imóvel condição

amordaçadas pela raiz inerte

seu esteio inamovível.


Só sonham, presas ao lugar

sonham com viagens fantásticas

levadas ao colo pela água transparente

só para conhecerem destino outro.


Como se, pedras estáticas,

se tornassem gélidos seixos

abraçados ao rumo das águas esquivas

colina abaixo até algures.


O algures em que militam

um lugar qualquer

quebrando monótona impassibilidade

diante dos dias sucessivos.


Nem que seja

para esbarrarem no precipício

onde a cascata se despenha

na espuma da raiva contida.


Ou que seja

para se deitarem no fundo

de um imenso lago

onde as águas, cansadas, repousam.


E que seja

o lugar de outra sepultura

o algures prometido

nos sonhos acordados.

2.1.08

O poema combustível

Os aplausos ensanguentam as mãos.

Não se cansam

diante da gloriosa expressão das palavras

ecoando

insinuando-se

entranhando-se

onde nem cirurgiões levam bisturis.

Há uma magia das palavras

vomitadas no seu fogo

as palavras-alimento

melodias graúdas que escorrem pelo ouvido

e levitam nas paredes da garganta.

Vêm aquecidas no seu fogo:

são a combustão do espírito

a depuração até das gelificadas armaduras

jamais orgulhosas da sua insensibilidade

- perdida.

As cores admiráveis

consagram os aplausos:

tecido aveludado

onde o poema incendiado repousa,

complacente.

No veludo onde as chamas se aquietam

o poema redobra a sua grandeza

cavalga nas ondas sopradas por um vento vadio

cresce

e mergulha sobre os corpos.

Na combustão audível

desfaz a nostalgia dormente

traz os corpos da sua letargia.

É o poema

combustão dos corpos

a centelha dos músculos apiedados.

E os corpos

entregam-se numa furiosa peregrinação:

batem às portas do pensamento

expelem as lavas das interrogações

incomodam-se com a placidez.

Arremetem sono dentro

e despedem o sossego

- imparáveis na excitação do conhecimento.

E o poema,

intemporal.

O poema dito e lido

legado perene com as cintilantes âncoras

do navio museu sempre ancorado no cais.

Intemporal

como o feixe de luz,

irradiação das chamas que latejam

a armadura onde se recolhem as estrofes do poema.

O poema lancinante,

poema matriz:

nas palavras entoadas

tudo seria ilusão

(a ilusão, ao menos)

dos fragmentos da bondade indescritível.

As pessoas seriam felizes

os rostos irradiando uma alvura leve

as mãos sem as suas rugas

os corpos alindados

despidos de maleitas.

Só haveria tempo e lugar

para esboços da plenitude interior;

a sua antítese

logo fulminada por um raio cósmico

que chegaria,

alado,

dizendo que os felizes estavam garantidos.

O poema

a combustão de toda esta frenética bondade.

Pelo poema

tudo tingido

com as cores que embelezam os dias

sempre uma luz clara

o farol arquétipo.

Nos vastos campos habitados pelo poema

até a tristeza seria vestida

com as cores da beleza.