28.2.18

#491

Já não
protestos sobre sonhos dissolvidos:
só versos amplos,
santuário da alma desembainhada.

Nadador-salvador

O incendiário
atento à fogueira que cresta
nado-morto deposto na clareira
onde as lágrimas se usam para extinguir
o fogo.

Ao fundo
depois da alcantilada ladeira
onde o vale recebe os sedimentos
o vagaroso rio traz nas mãos
as lágrimas do incendiário.
Mistura-as com os minerais volúveis
parafraseando os alquimistas:
“a fórmula certa não existe,
apenas um palpite
uma bala disparada na câmara escura.”

O incendiário foge:
corre sem parar
atravessa os vales
à espera de novos vales
desprende-se das lágrimas
nos muitos caudais banhado.
Foge dele mesmo
à espera de um fogo possante
que desfaça em cinzas
a vergonha impiedosa
em que seu sono se consome,
que liquefaça nos caudais dos rios
o façanhudo esgar melancólico.

O incendiário
despojado das suas artes
vê-se atirado
para os braços salvíficos
do nadador-salvador.

#490

Cobro do futuro
os juros sem jura
e conto com a lente desembaciada.

27.2.18

Amotinado

Motim dado em combustão
negação do gelo fundido
serventia improvável na gesta intrínseca
como obituário sem lavra notória.

Dos montes mais altos
vozes em forma de esgar
à falta de audiência
à falta de lucidez.

As esporas da montanha
trespassam cicatrizes nas costas do futuro
e os animais seguem indomáveis
na frutuosa liberdade.

Compõem-se pontes estéreis
e nos dedos cresce o aroma sem meças
enquanto as palavras dançam na tela
e os olhos se soltam das amarras.

Talvez esteja amotinado
ou um sonho desenfreado levanta-se da fonte
mas sei que das sabidas coisas
não guardo vestígios e colheitas.

Talvez seja apenas uma quimera
e desabotoe as juras guardadas
no lamento entretecido
no limiar de desfiladeiros medonhos.

Motim ou não
nos esteios das reverberações
meãs estruturas em cimento baço
e um asceta em protesto contra sua severidade.

#489

Dei de mim ao desterro
o fundo onde as trevas se aninhavam
e ganhei caução para o ocaso bucólico.

26.2.18

#488

Não olhes
não são as sombras
o prefácio da contaminação:
são as divindades malsãs.

Opostos

Sem a noite
vejo os gatos vadios
uma trova no mosto das uvas colhidas
contra as trevas militantes.
Jogo os cordões desatados
na infinita parede ao acaso:
tiro do rosto rugas sem nome
e sento-me no convés frio
– talvez à espera da lua caiada
ou apenas da alvorada. 

Não trago as armas dos outros;
não canto nem danço
nem me entrego à teatral função
(mesmo sabendo ser o fingimento
a fingir-se a si mesmo):
contemplo os frutos maduros
quase pendidos em véspera de senescência,
dir-se-ia
do olhar propositadamente demorado
à espera da decadência dos frutos. 

Os mundanos pesares jogam-se no vazio
onde os espera o acaso. 
Não aprendem com o ocaso das coisas
e empenham-se na insentida refrega
no labirinto medular
o inexistente êxtase sem sufrágio. 

Fujo da noite quando quero o dia
e encontro a noite quando cansa o dia. 

Disto é feita minha carne
no sangue constante
conciliábulo dos opostos.

#487

Nesta paliçada
o penhor que obnubila a ira
candeia que doa a luz ao dia.

25.2.18

#486

Tragam-me o mar
as mãos imersas em ouro
e faço do dia sua haste.

Piloto automático

Do nome sem paradeiro:
a antítese da noite
no inventário dos tutores da cidade
em novelos acamados na janela propositada.
Cuidados os degraus
o improvável ganho dispara na sombra
e sei dos nomes sem paradeiro.
Estamos em piloto automático:
sabemos
que do tudo sabemos nada.
Por isso
piloto automático.
As cortinas entreabertas cobrem a poeira
e o olhar não se cansa
não adia o sufrágio nos socalcos estimados
nem se amedronta
com os estilhaços prometidos.

24.2.18

#485

Aqui chegado
só com a bênção da maré
as mãos banhadas no fogo.

À pátria salgada

Quem resolve a eutanásia de Portugal?
Ardósia espinhosa
condomínio privado
ganga gongórica
genuflexão imperativa em selo de casta
impropério constante ao estatuído
fenda entre teoria e prática
concurso de vaidades
adulteração em estado puro
ilusão que enfeitiça o olhar
anestesia larvar
farsa sem remédio
eloquência frívola
intransigência em glória sem caudal
tiranetes disfarçados
(salazarentos em conserva)
apedeutas disfarçados de catedráticos
tudólogos em profusão
prolixos na inanidade.
Quem lhe encomenda a autópsia?

23.2.18

Heurístico

O xisto sem dono
candeia em que lanço âncora
reinado intemporal
caudalosa frágua no apetite ímpar
de onde nascem árvores sem semente
árvores com a raiz à mostra
bebendo nas veias do xisto lúgubre.
Não são as cidades
esteio que espera
nem o cimento amontoado pede água;
pode ser lúgubre o xisto
e ainda assim
mata a fome à fome avulsa
nas suas veias suculentas
e todavia escondidas.
O sol consome-se no tubular nevoeiro
impaciente
para se servir da paisagem
o manjar esperado
condimento ostensivo na garrafa embaciada.
Sem o tirocínio dos homens da terra
que o xisto generoso abre suas pétalas
e as mãos famintas trespassam a aspereza
tornando-se macios
(mãos e xisto)
na quimera dos paradoxos.
Ensina-se aos ascetas
os pródigos novelos em cascata
que ascendem desde o vale até ao entardecer.
Um milhafre longínquo
dança os ossos cansados contra a falésia;
a presa não chegou a ser presa
e o milhafre adiou a fome,
à falta de olhar cuidadoso
sobre a paisagem sem algemas.
Os camponeses
desatentos por cuidarem da lavoura
esquecem os inviáveis acessos de fúria;
não reza a história
de homens presas de milhafres.
Nunca fiando:
antes de os tempos
romperem o véu da sua véspera
ninguém adivinhava o xisto
manancial de árvores e de frutos.
Os livros
estão cheios de inesperado.
Agora se percebe
que haja seguros de vida.

#484

Preciso.
Preciso de ser preciso.
Preciso,
matematicamente impuro.

22.2.18

Califórnia

Neste ermo lugar
onde navios sem velas dançam
e as luas se enamoram da alvorada
procuro uma Califórnia amuralhada.
Persevero
entre o musgo larvar
as palavras mal ditas
e as pessoas que não são malditas
à espera de um chapéu amarelo
onde façam ninho ideias sem freio
onde medre a bondade sem juros.
Costumam
as areias límpidas ajudar a estilhaçar
os embaraços escondidos
entre as linhas amarrotadas
nas entrelinhas do possante muro
de onde se lamentam preces e fingimentos.
Não sei se a Califórnia chega
ou se preciso de um califado:
sei,
ao menos,
que não há insalubre fado
onde de estorno fermente uma sorte.
As velas agora hasteadas
chegam fogo ao navio,
que se move devagar:
talvez ao anoitecer
as luas se fundam numa só
e Califórnias não sejam demandadas
por ausente serventia:
no fio do luar
uma marca de água
a sublime tinta-da-china
escreve as estrofes que devolvem o sono.

#483

Como vem ao conhecimento
que baça é a lente
e treslidas as palavras?

#482

Seja baça a lente
e as palavras treslidas
confiáveis são as intuições?

21.2.18

#481

Sobre a lenha fria
despenha-se o corpo furtivo
no rumor de sua grandeza.

O corsário desarmado

Sinto-me corsário de mim mesmo:
trono visível das ideias
que depois se evaporam
na sua negação.
Corsário:
as roupas do avesso
as horas vividas em contramão
as palavras vertidas em antónimos
sem purgas malsãs
apenas o furibundo artesão das escolhas.
Corsário:
mas não farsante
na inviolável descerteza de tudo
penhor dos penedos perenes
fautor das mais frágeis escadas
no estertor dos compêndios sem audiência.
Conheço os rostos sem nome
e sei que dos nomes vertidos
sobram fingimentos
personagens
apenas personagens
(e as personagens são ardis)
inverosímeis enredos no escol estulto.
Serei corsário.
Ao menos,
corsário.

#480

Demissão.
De missão.
De missa.
Demi (comme en français).
São.

20.2.18

#479

Tumulto em erupção
e eu tatuo a indiferença
tanto o céu sereno por teto.

Violino


A corda sem água
abraça os pastores. 

Na cumeeira da onda
medram flores exaltadas. 

O coldre sem mãos
é provimento da pólvora seca. 

Nos arbustos hostis
mel desenhando um sortilégio. 

A cura estudada
nos néctares matinais. 

Na saia gasta
uma poeira nómada. 

O estridente trovão
na clareira sem mapa. 

No porão inundado
o sangue da tempestade.

Os vitrais desenhados
na controversa espada sem bainha. 

Vilões denodados
terçam contra a bondade inata. 

Lenços noturnos
vogam na combustão das palavras. 

Na demissão arrefecida
o desejo em forma de segredo. 

A garrafa no sopro da maresia
em mundos inteiros à mercê no areal. 

A madeira estouvada
e o bando sem quartel. 

O colo carregado
na prolixa sensibilidade. 

O embaraço encomendado
na singular loucura. 

Um grito à espera
do mote vencido.

#478

O parto do orvalho
as gotas escorregando
vagarosamente
sobre o dorso do dia.

19.2.18

Amostra

Verto no copo alto
esta maré que transborda
dos círios de braços abertos.
Nos abetos há musgo infante
e eu sei tomar as asas de um pássaro
bebendo a paisagem com olhos desaforados.
Pudessem as molduras sair do sítio
ganhar tempo ao tempo
para as crianças serem perenes.
Pudessem as fronteiras escutar a música
precipitando-se contra si mesmas
no aceite de serem farsa.

E da boca quente
em sílabas não contadas
as palavras-âmago
servas
entoadas sozinhas
no cruo silêncio da noite.

O ritmo acelera no contrarrelógio
mais depressa do que o tempo
e as horas são o pavio de nada.
Nas guitarras distantes
atiro os dados à sorte
sei soletrar de trás para a frente
o compêndio desatualizado
onde estão sânscritos versos,
mitómanos.

Oxalá aprendêssemos:
os oráculos
refutam-se em suas profecias.

#477

Escolhe uma palavra
e poetiza-a.
Redesenha-a.

18.2.18

#476

Confisco as flores
demissionário o punho:
sou um ariete faustoso.

Fusão

O espólio em estilhaços
no corpo do forasteiro,
minados os campos em redor.
“Sou candidato ao futuro”,
protestou de mão dada
com sonora sonoplastia.
“Prefiro as orquídeas de cores fundidas”,
ouviu em refutação.
E o palco desmontou-se
na avidez das bocas famintas.

17.2.18

#475

Condomínio.
Com domínio.
Condo mínimo.
Com do mínio.

16.2.18

Valsa

É uma valsa?
Ouve:
perdi a vergonha
e ganhei juízo,
o juízo da lucidez
na sedutora balsa da ilusão.

É uma valsa?
Tens a certeza:
dormimos ao mesmo tempo
e açambarcamos as palavras
as palavras que bebemos
na lareira aberta pelos nossos olhos.

É uma valsa?
Mesmo:
na indiferença dos vetustos
raiando neles o sol da sabedoria
já não os sobressaltos.

É uma valsa?
São teus pés:
mnemónica diretora
regaço cingido ao meu peito
o sangue aplacado.

É uma valsa?
Se dizes que sim
não sou ninguém para opor.

#474

Hoje
apetece-me
dizer o seguinte:

15.2.18

Viável

Ter na haste
o sabor do tempo
na variada seara promitente.
Ter no bolso
sementes de sobra
na indulgência arrematada.
Ter no modo
critério assisado
na assinatura perene da história.
Ter nas preces
as telúricas palavras
na indomável fatia do mundo.
Ter na mão
as rédeas do impossível
na congeminação dos sonhos em sonho.

#473

Este é o magma de que sou feito
medula fecunda
o cais de onde sou inamovível.

14.2.18

#472

Um fósforo emaciado
acende chama timorata:
a noite encontra seu eclipse.

Interrogatório (?)

E se fosse esta a arena
onde as cartas se jogam
na mudez do orvalho matinal?

E se as ondas abertas
não se fundissem na véspera do areal
invadindo (alegoricamente) as janelas?

E se frondosas sereias
lograssem as distantes montanhas
recolhendo dos arbustos frutos silvestres?

E se a lua comprida
se mascarasse de aurora boreal
e as espadas diuturnas aguardassem veludo?

E se as crianças emancipadas
não fossem obedientes
nem aos seus próprios vultos?

E se as letras de um alfabeto diferente
fossem desenhos impressionistas
por dentro da tela rasgada que fere os olhos?

E se a noite emudecesse
e só sobrassem páginas brancas
à espera de escrita?

A sagração do amor

O amor
fábrica de cumplicidade
fervendo na erupção dos sentidos
um amor
sino centrípeto na casa
combustão em degelo noturno.
O amor
às nossas mãos
na entrega ímpar
em empolgantes coreografias
com a lua por testemunha
na varanda sobranceira ao palco do mundo.
O amor sereno
o amor insubmisso
o amor matricial
deixando às estrofes seu hino
deixando ao desejo sua estirpe
deixando à uníssona voz seu lacre.
O amor fértil
o amor sem algemas
o amor semente
multiplicando por mil
a colheita que vem às mãos
na sagração do dia.