31.8.23

A alma-casa

A casa não é o bolor

as paredes não se descumprem

e as janelas são vantagem

sobre o exterior.

Caso sejam inquiridos

os alicerces dirão em ata

os maiores encómios.

As suas habitantes almas

são o arnês expedito

o aval à prova de abalos telúricos

o atestado que suplanta

os melhores cálculos engenheiros.

Injustiças indocumentadas (160)

O Direito

é tão torto.

#2882

A página amarrotada

um canto escondido da lua

a mão caiada, 

à espera.

30.8.23

Injustiças indocumentadas (159)

Andamos a viver

abaixo da nossa felicidade.

 

[Inspirado no Butão]

Produtividade

Os fórceps diários

eletrocardiograma previsível do mundo

as golas derruídas esbatendo as vozes malsãs

à míngua de arquitetos salvíficos,

extintas as epifanias. 

 

Mergulhas no rio matinal

e sabes 

que a pele ruge pelo frio que a trespassa;

os homens querem-se audazes,

ouviste pela vida fora,

sem ser preciso frequentar quartéis

e convenções de nostálgicos

(onde a boçalidade é o verbo farto):

é ao contrário,

arregimenta-se o fino nervo que serve à pele,

a sensibilidade (dizem)

que levita sobre as coisas brutas da vida

emprestando beleza à vida de outra forma bruta. 

 

Tudo é um império de fingimentos

e está é a adversativa que soma uma contusão

às maiores esperanças adivinhadas 

para memória futura. 

Os rostos são colonizados por disfarces

e nem precisam de máscaras. 

As pessoas parecem mortos antes do tempo 

ficam paradas à espera da tabuada dos mistérios

como se fossem pescadores

pacientemente aguardando um sinal místico:

a prescrição da anestesia que não pediram. 

 

Juras que não sabes

de que dores é feito o mundo. 

Se te dessem para a mão a agulha de tricotar

não darias ao mundo 

um emaranhado paradoxal como formato

nem saberias do que serias doador. 

 

Mas não juras nada. 

A experiência ensinou-te 

a lei geral da inverosimilhança

o pudor estatutário que refreia o ânimo

o contrabandear das almas que se vestem do avesso

a obediência arcaica que coage a liberdade 

o impensável como critério cautelar

a colossal humildade de quem é indiferente

o arsenal destituído devolvido à arma da palavra

o fogo apalavrado que ateia o futuro

em toda a carne sangrado

matéria-prima incandescente da vontade

o esteio incorruptível

à prova de provações

privado do medo que nega a pessoa.

Injustiças indocumentadas (158)

Macacos me mordam

que me esqueci 

de perguntar aos macacos 

se me querem morder.

Injustiças indocumentadas (157)

Ferro velho, ferro velho

que sucata chama por ti?

#2881

Nadar em forma de concha

o pé arriscado um passo atrás

arrematar o futuro

antes que ele seja pacto.

29.8.23

Aperfeiçoamento

Mandatado pela tatuagem que debitava vanidades

parei diante do estuário

o amplo parque de estacionamento de navios

e senti que as palavras queriam lava

os dotes avulsos subindo à boca de cena

antes que as omissões se tornassem olvido.

Era o chão fértil dos grandes escapistas,

tortuosa a espera pelo ontem havido,

enquanto no apeadeiro se falava um idioma caro.

O amurado cear não tinha o luar por companhia

mas não fazia mal:

há almas que substituem a angústia por centelhas

trazem em mão as suas próprias centelhas

e recusam a luz fabricada.

Depois de amanhã

voltaria ao lugar de anteontem.

Suspeito que os dias não combinam

e tudo se fará farta colheita nos bolsos revezados.

#2880

Se por dardo entenderes

o dia nascente, plúmbeo,

tuas serão as cortinas puídas

que se abatem 

sobre o dorso alquebrado.

28.8.23

Injustiças indocumentadas (156)

Não precisas de ser um espantalho

para espantares os espantalhos.

Injustiças indocumentadas (155)

Ninguém sabe

que a desculpa é de mau pagador

se não se souber que o pagador 

tem o nome no Banco de Portugal.

#2879

O vinco do vento

entre os poros da pele

a pentear as dores do medo.

27.8.23

Laboratório

La-

bora-

tório.

Labor-

a-

tó-

rio.

Labora-

tor-

io.

Lab-

oratório.

Laboratório.

26.8.23

Precoce

O que perguntas ao futuro

se o futuro ainda procura

um paradeiro?

 

Que parágrafo estabeleces

entre as ameias do tempo

para consoar no sangue-frio?

 

A que demónios dás coutada,

aos poéticos ou aos políticos?

23.8.23

Um presidente na Polónia

Espalhafatoso. 

Espalha factos. 

Espalha fatos

 

(em trincheiras

devidamente documentadas

só para fazer de conta

que é 

como na Primeira Guerra).

Injustiças indocumentadas (154)

À fina força

antes

que a força 

seja grossa

(e mal-educada). 

22.8.23

Rigor mortis

Sabendo 

que “deus está no meio de nós”

descobri 

que o ateísmo se deve

a um de nós

e não é em ti que o mal reside. 

Injustiças indocumentadas (153)

O lugar

onde as certidões de óbito

prescreviam. 

21.8.23

Preâmbulo

Olha

por dentro dos olhos

alcatifa o verbo tardio

desmata o Inverno sensato

e espera

pela tardança respirável

o assunto válido que se entretece

a rede de onde saem os peixes em roda-viva

sabendo das dores que desdoem 

o desafio que se incensa numa pira de medos. 

Atira

para dentro do preâmbulo

as falas inteiras que abrigam

a estória toda. 

20.8.23

Desmatemática

Não contes comigo

essa 

é matemática 

que não conheço. 

18.8.23

Bar de praia

As pessoas bem

que dizem bué

e tratam os filhos

por você

só vão almoçar

às duas e meia. 

Aguaceiro tropical

Foi chuva

de pouca dura. 

Déspotas em extinção (um sonho)

Escureci as facas com que se compõe o juro. 

No último dia

agravei a medida por que se tomam os déspotas

e perguntei

quando é o último dia

o dia

da extinção do último déspota. 

16.8.23

O acrobata

O desembaraço com que o acrobata saltava

fazia lembrar aquelas palavras órfãs

errantes na planura da página

como errantes são as mãos que as tutelam

uma lava irredutível que ascende pelas veias

e se desamarra das vulgatas. 

O cais não serve de refúgio:

é a casa da partida

antes que seja reduzido a uma salina

e à saliva subam as miragens. 

O acrobata tinha um esqueleto de borracha

e nós sabíamos

que a borracha não nasce apenas de uma árvore. 

#2878

Nos veios da vontade

o calcário desinfeta o medo.

15.8.23

#2877

No emaranhado 

que foste buscar ao passado

precisas de uma didascália,

uma memória futura

para te perderes.

Injustiças indocumentadas (152)

O lugar

onde se tomava

Eros por erros.

 

[Meta-castrações]

14.8.23

Lágrimas

Disse 

às lágrimas

para serem caudal próprio.

Elas 

a medo

(que a galhardia dos costumes

ainda está trespassada 

pelos marialvas preceitos)

precipitaram 

com modéstia. 

Alguém

talvez perito em prantos

encorajou as lágrimas

deu-lhes o mapa

para se fazerem

aos rostos macios. 

Nunca mais 

houve fugitivos às almas 

que torpedeiam

a mentira

enquanto ela se habitua

a ser mentora 

da mentira a si própria.

#2876

Como amoras que adoçam a boca

o dia fugitivo a suar a opulência.

13.8.23

#2875

O entontecido caudal do dia

avança contra a dilação do medo

no irreparável viver sob custódia.

12.8.23

#2874

O murmúrio contínuo

o fulgurante desmatar das vozes

a venda colada aos censores.

11.8.23

O naufrágio da arca de Noé

Sabes de cor as horas

e eu ainda sondo os relógios.

A matéria sufragada

deixou de contar

e são os idiomas forasteiros

os que arrematam a inteligência.

 

(Já alguém disse

que falar alemão

ajuda a ser filósofo.)

 

A amálgama de falas

não cobre o entendimento das gentes:

por mais que um grupo sanguíneo

fale o mesmo idioma 

 

(biológico)

 

os Homens insistem em apartar

como se as fronteiras fizessem

Homens diferentes.

Injustiças indocumentadas (151)

Arroz malandrinho

não é da conveniência

do clero. 

#2873

O sangue desbotado

crepita na abóbada dos reis,

a tatuagem indiscreta

à porta parada.

10.8.23

Manual da improcedência

Este é o casino solene

a quimera que ateia os déspotas

entre eles e a providência

uns gramas de indigência

que pesam as toneladas do desabamento.

Por força de decreto

as avulsas ordenanças caem sobre o palco

vítimas todos nós

reféns de uma anestesia

(que devia estar destinada à improcedência)

a vulgata enformada em traje protocolar.

Injustiças indocumentadas (150)

Os créditos em mãos alheias

pois então,

a generosidade não é crime. 

#2872

Desacontecimentos, 

as efemérides inverosímeis 

milagres para crente acreditar.

9.8.23

Quase claridade

Ólafur Arnalds, “Near Light” (Living Room Songs), in https://www.youtube.com/watch?v=UHVh_L_kv1Q


Deito-me na lava que deixei à minha frente

os corsários que avulsos intimidam o sono

trovejam as pedras atiradas sobre as abóbadas

e de mim não sei se não a constelação inaugural

uma boca extintor servida nos melhores banquetes

braços e pernas presidentes

pendidas como tentáculos

generosamente

o melhor do pior

antítese.

 

Confiro a métrica dos medos deixada em rodapé

convoco a audácia dos demónios

entre marés providenciais e páginas esquecidas

desdobrando as fotografias sonolentas

o lume da manhã arrefecendo a carne acordada

o sufoco das tempestades sem bainha

desde o miradouro hasteado

até ao aqueduto dos cruzados.

 

Dou-me inteiro à tua posse

e tu

a sereia que arranca os versos

à minha boca prodigiosa

contemplas a rebeldia dos insubmissos

como sabes de cor cada centímetro de pele

e eu

sem pressa do passado

arremato dos leilões sem paradeiro

a argamassa onde tudo se ampara

onde tudo se compõe 

na efémera câmara transparente

no friso puído que soletra de cor

o magma inquieto

que não tarda

é musicado em lava incandescente.

 

Para dizermos então

que os dicionários correm no sangue

e toda a literatura se escondeu

nos poros da pele que irradia o luar cessante

em furnas vertiginosas fugindo do crepúsculo

caiadas nos braços centrípetos da árvore-favor.

 

Deixo a lava onde me sentei futuramente

o sumo da lima vertido na pele cicatrizada

e sei que da lava que lavou a alma 

agora acrisolada

agora

nesse preparo que é um tempo dedicado

morada em que à tua, maior, alma

se ofereceu.

Injustiças indocumentadas (149)

Mau, Maria.

O paramento

de um erro gramatical.

#2871

Trago as galáxias na boca

tanta era a sede

e o medo 

de perder o paradeiro do dia.

Injustiças indocumentadas (148)

Mordeu a língua 

– e não foi por fome.

8.8.23

Injustiças indocumentadas (147)

Falta ainda determinar

com que peso

o animo deixa de ser leve.

#2870

Sob o peso da aurora

o juízo deposto na maré-baixa 

de um sonho rebelde.

7.8.23

Conclave (epifania coletiva)

Pirómano dos sentidos

denunciou o equinócio das almas

alegremente vãs

em procissões

também elas vãs

no fingimento do seu fingimento absoluto.

Oxalá fosse cimento

sussurravam as almas contra o pecado

enquanto ao céu descia

em apoplexia cortante

um Ícaro mendaz

a súmula do alarido montado

em campo térreo

e abonado de unções presunçosas.

Do estado de negação

ninguém teceu observações alusivas.

É da espécie

a especialidade de varrer o lixo

para debaixo do tapete

e fingir,

assobiando lérias,

que podiam não ser como os avestruzes.

#2869

Os dentes à mostra

o passaporte não escondido

que ecoa a trégua como sangue.

6.8.23

#2868

Janelas

muitas e escancaradas

precisas são

para da letargia 

não sermos moradores.

5.8.23

#2867

A cidade

navega nas veias,

encontra-se forasteira.

4.8.23

Perdão dos náufragos

O fogo desce ao céu

esfria a pele urdida nas fontes invernais

conspira 

a distração contracenada

com os espíritos benignos que ascendem,

vultos de si mesmos,

no improvável hastear de poemas incendiados. 

 

Combinam-se os rios modestos

com a intercessão da chuva antecipada

ao inverno: 

as águas sobem ao céu 

encomendadas ao ímpar murmúrio noturno:

não se esperem selas adestradas

nem vozes domesticadas;

espere-se um vulcão desamordaçado

infrene na insubmissão

colheita abastada do investimento pressentido

nas silhuetas vagas que se desenham

nas nuvens à margem.

 

O fogo retorna à nascente,

erupção virada do avesso. 

Do perdão 

não há xisto que o emoldure.

Injustiças indocumentadas (146)

O terço 

que se ora 

– fica 

apenas 

pela terça parte.

#2866

Trespasso a noite boreal,

o ânimo sufragado no miradouro

fatura à pele os juros da avidez.

3.8.23

O homem que apanhava furacões

Era pelas ideias tresmalhadas.

Não esperassem elegância

vinho sumptuoso

mineração da angústia

votos pírricos

ou ideias lajeadas a purpurina

nem um módico de petróleo

 

só para amostra.

 

Era pelos ventos arcanos

aqueles que murmuram o halo vindouro

e muito embora acreditasse em anjos

(anjinhos, para melhor se expressar)

não seria vítima dos algozes avulsos:

ele era só

 

o homem que apanhava furacões.

#2865

O turismo

não tem

férias.

 

[Servidão]

2.8.23

Morgados

O corsário desmatado cobra os juros por junto

e o rosto remoça no orvalho ditoso

que aveluda a pele massacrada. 

Os dedos agarram-se ao vento mendaz

não se importam que seja mendaz

desenham a geometria das curvas

como se de retas fosse a estrada. 

Os impossíveis confundem-se com farsas

o fardamento circunstancial do dia vetusto

como se fossem andrajos condecorados 

e as assíduas personagens puídas 

em pose agonicamente importante

insultando o momento 

com pose de superioridade

(ah! os procuradores da república). 

Levanta-se a ira fermentada na lente baça

o areal enfastiado pelas marés rotineiras

o tempo, que parece imóvel,

uma sucessão de pesadelos hauridos

os roteiros excretados por figuras boçais

que lavram a sala pútrida com falas malsãs

e nós, intencionalmente indiferentes,

medramos por dentro do luar poético

uma biblioteca quimérica que cabe na alma

enquanto esperamos

que o sangue 

destile os morgados que se insinuam

no espelho do futuro.

#2864

O poema a não:

o poema anão.

1.8.23

Desenfado

Em apneia

a ler de olhos fechados

os ramos das árvores

como pauta literal

e as juras,

ah! as juras, 

a caminho de serem desenfado

 

(sendo o desenfado

o desmame 

de um fado).

#2863

Assim

como um solipsista

desabrocha o território murado

regateado na geografia do eu.