31.7.20

Dia de belo

Hoje há belo 

– ou hoje é belo,

uma das duas

ou as duas,

se possível for.

 

Do belo em matriz

parafuso da estética 

– e não venham dizer

em despeito

que desinteressa a estética

e que têm apuro

as temperanças escondidas

no ladário das almas.

 

Hoje é belo

porque há belo

e o belo

de belo o ser

Irradia-se, benévolo,

e torna belos

os seus em redor.

 

Hoje é dia de belo

e a linhagem estética

não fará grande mal

a almas entreabertas.

 

Mas se do belo houver

quem apenas se consinta em sonhos

não deixa de belo o ser

pois que sonhos há

que são a nata arrancada ao belo.

 

Hoje é dia de belo

e não quero 

que o olvido tome conta

de um dia assim

de tão belo ungido.

#1682

[Crónicas do vírus, CCLIII]

 

Um político de máscara

deixou de ser

uma metáfora.

#1681

[Crónicas do vírus, CCLII]

 

Os rostos

não chegam

a ser metade.

30.7.20

#1680

[Crónicas do vírus, CCLI]

 

E veio-se a descobrir

que a marcha-atrás

tivera o selo dos jovens.

Dia de bolo

Hoje é dia de bolo.

Já não importa o demais:

a matreirice dos sábios

a religiosidade imperativa

da pandilha

os trabalhos de casa

os lentes inconsequentes

o moinho das farsas

a tagarelice de uns senhores

apessoados e em pose solene

os catraios que roubam sonhos

os ufanos que bolçam pesporrência

os dias sem fim e sem finalidade

as noites com pavio curto

a pescada cozida ao jantar.

Porque hoje

é dia de bolo.

#1679

[Crónicas do vírus, CCL]

 

Um novo palco

para ser dito

que o fim 

nem sempre é um fim.

29.7.20

Meticulosamente

Não se arruíne

o conto gregário

nem se desperdicem

os mantos penígeros

que os verbos diáfanos

não perdem inventário

no canto gongórico.

(E depois

provável será

que os patos vaticinem

protesto.)

#1678

[Crónicas do vírus, CCXLIX]

 

Pisamos

um chão minado.

28.7.20

#1677

[Crónicas do vírus, CCLXVIII]

 

Ouvir

“Lust for life” de Iggy Pop

ganha um novo sentido.

Não dar ouvidos

Dar ouvidos

sempre causou espécie

não por ser contra

liberalidades gratuitas

mas por não saber

a quem eram doados os ouvidos

e o que podiam ouvir

com a intermediação do donatário.

 

Também era razão de perplexidade

descobrir como determinar a transação

se ela peticionava 

o arrancar à origem dos ouvidos dados

e se haveria anestesia de permeio

ou a dor seria a paradoxal paga.

 

(Prenhe da irremediável ingenuidade

não me era dado saber

que dar ouvidos

em sentido corrente,

como expressão idiomática,

é pior do que a sua literalidade.) 

 

Termos em que se aconselha

a não dar ouvidos

ou a cara 

ou o corpo

(ao manifesto);

não vá tamanha generosidade

ser de nós próprios

algoz.

 

Uma vez doados os ouvidos 

(ou qualquer parte restante do corpo)

não há remédio

pois colados ao abismo deixado

não é possibilidade a admitir

e os ouvidos

(e partes outras do corpo)

têm préstimo

quando ao corpo pertencem.

#1676

[Crónicas do vírus, CCLXVII]

 

A (nova) guerra invisível:

a exprobração entre nações

tecendo listas de exclusão

que soam a peste.

27.7.20

O nada desarmadilhado

Ao nada

tiro a rolha

e um aluvião

bolça, fértil

sobre 

as costas dos aziagos.

 

As facas afiadas

serpenteiam

sem algozes serem

sobre o diuturno nada

retalhando-o

mal se mostra

no lagar da distração.

 

E do nada

um açude façanhudo

hasteia-se

a provocação diletante

e ao nada retesado

disparam as fendas

na iminente largada

da abundante fecundidade.

 

Diziam

ao nada

não ser de temer

nem que se fantasma 

se pusesse:

se do nada se sabe

ser o seu avesso

matéria bastante

para de um golpe certeiro

estilhaçar o nada.

#1675

[Crónicas do vírus, CCLXVI]

 

Num biombo

como um blindado

contra os outros.

26.7.20

Assinatura

O calendário

resgata dos anais

o vigésimo nono ano 

de licenciatura.

Não sei por que guardo

efemérides.

Dir-se-ia:

é o sublinhado de uma coincidência

selada com o sortilégio

do calendário.

 

(E quem pode fugir

do calendário?)

 

Ainda sou refém

da memória.

Devia ter aprendido

que a memória

é um tinteiro gasto

a vocação para o longe

nas imagens que se evaporam

na diálise das páginas arrancadas

ao calendário.

Vinte e nove anos

e de quê,

se cursei páginas soltas

e não medrou esteio 

como cimento do tempo inteiro?

A memória

enquista-se no mosteiro

onde se arquivam os misteres

da improficuidade.

Um estéril inventário

esmaecido na caneta gasta

que em dedicatória árida 

vai desmatando a decadência.

Literacia

Cabiam

num biombo da memória

os nomes tatuados

a esquecimento.

Não os sabia fantasmas

e nem supunha dizer

exorcismo

na apanha fidedigna

da espuma à mercê dos dedos.

Pelo caminho

entreteci o tempo

com o avesso da singularidade 

 

– mas não é assim 

que todos somos, 

vulgares,

na banal intumescência 

do original?

 

Dos nomes

guardo as sílabas vagarosas

com que se dizem

a sua gramática repetível.

E pouco mais.

O reverso do biombo

é um deserto sem pontos cardeais.

Eu aposto

que nem o Norte 

se tem por paradeiro.

#1674

[Crónicas do vírus, CCLXV]

 

A interrupção excruciante

da espada que báscula

no termo incerto.

24.7.20

Anjos disfarçados

Dizem-me

não é por mal,

que ao lençol da inocência

faltam as orelhas puxadas

e uma fina camada de poeira

se sobrepõe

ao olhar dos imprudentes

coalescendo no perdão.

 

Estou por saber

como tirar a prova dos nove

antes que venha 

uma prova de vida

estragar a matemática delicodoce.

 

Estou para saber

como são adivinhadas

as petições de indulgência

como se enformam os compassivos

num véu de piedade

que se esportula

no púlpito da ingenuidade.

 

Às vezes

(são tantas, as vezes!)

só apetece dessaber

para do ultraje do conhecimento

não açambarcar

a boca amarga da angústia.

Outras vezes

quando 

desaparafuso os ossos dos outros

e sou ilha por dentro de um ilhéu

prossigo indiferente

imune ao raer dos fornos crematórios

onde frui 

o despautério

disfarçado de asas de anjo.

#1673

[Crónicas do vírus, CCLXIV]

 

O improvável

emancipou-se

do dicionário.

#1672

[Crónicas do vírus, CCLXIII]

 

A safra

dos visionários

em maré-alta.

23.7.20

#1671

[Crónicas do vírus, CCLXII]

 

O medo

de ter medo

traduz-se

em solipsismo.

Entre os pingos da chuva, dizem

Escondido na desculpa

com o alto patrocínio dos arqueáveis

espalha prebendas à mitomania.

Não eram impressionáveis,

os inverosímeis da casta da elasticidade

no adorável desporto cívico

do paninho quente.

Escondido na desculpa,

brasonada como vão palavra,

resumia o estado geral do lugar

empenhado na monótona sanguessuga

que emudece a espátula de rigor.

Houvesse quem lhe dissera

que um pedido de desculpa

não é como apanhar o vento;

é roteiro para o arrependimento

moratória da iteração do mal feito

em sentinela para a lição tomada

cancioneiro da não repetição. 

#1670

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Continua

a aprendizagem

do desmedo.

22.7.20

A boca cheia de impossíveis

Não peçam à lua

para ser o covil da noite

a constelação perdida

onde se aformoseia 

o olhar dos decessos.

 

Não peçam aos tumulares príncipes

para abdicarem de seu reino

não peçam

que a diáspora dos vivos

é má recomendação

tortura soez

a quem da vida já teve seu quinhão.

 

Não peçam aos ardinas

e aos sinaleiros

e ao homem que reparava guarda-chuvas

e aos mineiros

para saírem do atoleiro dos idos tempos

não peçam

que o tirocínio dos hodiernos tempos

seria sacrificial

um punhal deixado a sangrar,

e sem limite de tempo, 

na sua memória sem tempo.

 

Não peçam aos eruditos

citações em latim

evocações dos gregos filósofos

não peçam

para glosarem as costuras 

de um mundo a desmodo

antes que apanhados sejam

a delinquir numa revista mundana

ou nos carnais meandros do hedonismo.

 

Não peçam aos estroinas

pacientes leituras em letra miudinha

retiro ao invés de boémia

palavras com o aval de poemas

o medo da morte

a devolução da História

para fora das páginas dos calhamaços

um boicote à frivolidade perene\

não peçam

o oblíquo pesar

que os extrai ao mundano adejar.

 

Não peçam

se não o que pedido puder ser

ou acabamos todos,

em contramão

e à espera do frontal choque,

até sermos despedaçados

pela boca iracunda

de uma tempestade castrada.

#1669

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

No caldeirão da pandemia

o parto

de mais Europa.

#1668

[Crónicas do vírus, CCXXXIX]

 

É de fiar

no fiado na posteridade 

– eis a encíclica dos mandantes.

21.7.20

Force majeure

O copo meio cheio

antecipa

o meio vazio por desenhar. 

Não se diga

do feito por fazer

que feito está

que os mandatários incisivos

cuidam de o destratar. 

Se a fuligem não fosse um restolho

ou à varanda do entardecer

não se estreitasse o ocaso

dir-se-ia que o projeto se afidalga

na desistência do fulgor. 

Dir-se-ia

no veludo da fala com esmero

que não foi por mal,

nunca foi por mal:

à última hora

a evocação da força maior

o distrate de toda a responsabilidade

o eco perdido na garganta granítica

onde

a esforço

se torna caudal

o rio ainda pueril. 

#1667

[Crónicas do vírus, CCXXXVIII]

 

Quando acaba

esta primavera eterna?

20.7.20

Retribuição

Qual é o diâmetro

da nossa fragilidade?

É o medo 

que embalsamamos

no mecenato da loucura. 

 

Qual é o cianeto

do nosso abismo?

É o telúrico ritual 

que bebe nos costumes

em incontroversos verbos. 

 

Qual é o bónus

da nossa grandeza?

É o testemunho desembaciado

as sílabas terçadas em murmúrio

o colossal empenho em dias soturnos

o marasmo que derrotamos

em vigílias que não disfarçamos

antes que 

a fragilidade

o medo

a loucura

o abismo

e a moral

sejam nosso ergástulo.

#1666

[Crónicas do vírus, CCXXXVII]

 

A doença mais letal

é a sede de resgatar

um normal.

18.7.20

Busílis (ou: parecenças)

O busílis da questão

não se confunde

com fusilis

nem com fuzis

e muito menos

com fusíveis.

São os fungíveis,

aparentados,

os logros de cepa torta.

Fugidios,

os sentidos adulteram-se

numa lava que parece igual

e o não é:

o basalto em que devêm

cuida de exibir as diferenças.

E esse

é o busílis 

de todas as questões.

#1665

[Crónicas do vírus, CCXXXVI]

 

Fricção científica:

assim prossegue

a desarmonia dos cientistas.

17.7.20

A venda à venda

À venda

a venda que sentencia as trevas.

 

A venda

assim orquestrada

venda-se

pela menor das licitações.

 

À venda que veda

o maior dos perjúrios

o bem oximoro

mercancia sem bolsa de transações.

 

À venda 

que à venda está

que traga pecúlio zero.

 

E ao menos

depois da venda

a venda desembaraçada

e o ubere pronto para o manancial.

#1664

[Crónicas do vírus, CCXXXV]

 

O teatro

do excesso de confiança:

brincar com o fogo

sem ser época de incêndios.

16.7.20

A taça, ó glória

Disto

um piano

e as botas armadas

antes

que os fusíveis

se encomendem às trevas

e rasteiro

seja o adeus

em convocatória senil

e em rocha

se endureçam as lágrimas

que furtivas seriam

se estivesse de chuva. 

 

Daquilo

ou as peças de xadrez

todas entontecidas pelo viés

no amanhã

que se fragiliza no compasso

rastreado

no denodo das seitas

ergástulos

que dizem etecetera

depois das modas jogadas

em simétricas páginas sem linho.

 

Dito isto

afoguem-se as palavras excessivas

em malvasias fora de prazo

escanhoe-se a militância

a favor do tempero

misturem-se os opostos

a coreografia dos diferentes

armadura

contra a tribal pertença

em baias estreitas de impura rejeição

antes

que o centeio podre seja mantimento

e do restolho

rastejem os párias sem absoluta causa

os nefandos, imberbes

(mesmo que senis)

mastins da pose castrense

antes

que lhes caiam os dentes

e se afoguem no tanto salivar

em que se destilam

tão ufanos

tão insanos. 

#1663

[Crónicas do vírus, CCXXXIV]

 

O pensamento

prodigalizou-se.

15.7.20

As teias das elites

Entranha-se

este visco pútrido,

a banha sem cobra,

que desfila na fala dos insignes

como se deles fossemos devedores

e seu sangue fosse de ouro

e as nossas veias 

esgoto de seus dejetos.

A lapela não enjeitada

fornece vistoso miradouro às comendas

que os galões ou são ostentados

ou sobram para o residual conhecimento

e estes estéreis pais de todos nós

definham se lhes for omisso

o reconhecimento.

É como se vivessem para fora de si

(e fora de suas comarcas)

e eles a varanda 

a que os demais devem repetidas genuflexões

pois na sua carência ficaríamos devedores 

de um atraso de civilização.

Ufanos e jactantes

ensaboam-se em prosápia colossal

que de sumo verte um nada,

sentados na volumosa pedra estatutária

de onde dizem dimanar seu escol.

Os tolos restantes,

cerces de pontos cardeais,

ou apenas vulgarmente distraídos,

idolatram as relíquias

e contribuem

(sem saber, talvez)

para o legítimo retrocesso.

#1662

[Crónicas do vírus, CCXXXIII]

 

O vírus

tornou-se

a moldura do Portugal.

#1661

[Crónicas do vírus, CCXXXII]

 

Ó povo paradoxal,

ontem heróis banhados em milagres

amanhã peticionando contra a sem-razão. 

#1660

[Crónicas do vírus, CCXXXI]

 

Como pode lugar tão ínclito

ter como missão

a autocomiseração pela trela?

#1659

[Crónicas do vírus, CCXXX]

 

A pandemia cruel

que nos devolveu

ao quarto dos fundos.

14.7.20

Divagações semânticas com um pouco de ácido lúbrico à mistura

Qual é o feminino de mulherengo?

 

(Não conta como hipótese

mulherenga

sem desajuizar que também as há.)

 

Acordei com esta dúvida existencial.

(Também não entram no rol

desqualificativos

que rasuram a honra

de uma amazona carnal.)

 

Dei comigo

preso à obstipação vocabular.

 

            (A menos que seja minha incúria

            e o idioma conheça daquela

            palavra passaporte no feminino.)

 

Arrisquei uma ideia:

homenrenga.

 

            (Pois são tangentes os direitos

            e ninguém acuse de libertinagem

            as homenrengas da praça

            se é de aplauso a convivência

            com os mulherengos com linhagem

            sem nunca serem enredados

            no labéu da promiscuidade.)

#1658

[Crónicas do vírus, CCXXIX]

 

Não desistiram

de viver.

Essa foi

a grande vitória.

13.7.20

Vem aí o futuro

Vem aí o futuro

e tu estás à espera

que se faça pretérito?

 

Desarrumas os vitrais

onde se emolduram 

as léguas do tempo

no inviável sarcasmo do teu oposto

a que deitas mão 

quando mais o denegas. 

Não sabes 

da bitola em que se liquida

o corpo presente

o indomável motejo que diriges ao arcaico. 

 

E repetes:

vem aí o futuro

e tu sabes 

que é já no ontem parafraseado.

Pois o futuro

quando o agarras

enquistou-se no passado.

#1657

[Crónicas do vírus, CCXXVIII]

 

A semântica

em rota de colisão

com a matemática.

12.7.20

#1656

[Crónicas do vírus, CCXXVII]

 

Os louvores

foram a comenda

do excesso de confiança.

11.7.20

#1655

[Crónicas do vírus, CCXXVI]

 

Não há rostos

só 

semi-rostos.

10.7.20

Desoperário

Amolecem os mercadores 

antes que sobejem as invetivas

ou o marasmo sem chave de segurança.

Os nós atam-se na fortaleza

e somos nós que os desembaciamos

com a ajuda de uma matinal neblina,

o sucedâneo da massa consistente,

que tem mais poderes do que uma batina.

Não é lavra ser engenheiro

nem os planos exigem matemática forense:

projeta-se o entardecer 

no relvado de que é sobranceira a varanda

e a pauta fornece a música 

sem critério.

Oxalá não seja tarde

e que as engrenagens

não sucumbam à ferrugem

para ser marinheiro em praça forte

e do livro empunhado

legar 

em voz exata

um poema nada homérico.

#1654

[Crónicas do vírus, CCXXV]

 

O termostato da esquizofrenia

nunca esteve tão fervente:

nada está bem

mas tudo parece que sim.

9.7.20

Pescoço sem colarinho

O manifesto em marcha-atrás

a alcachofra acabada de gratinar

(depois de recusado o acesso

ao armazém dos escuteiros)

batinas exigindo beija-mão

em locupletadas avenidas

onde se reverberam 

os anões disfarçados de pimpões

e os curas que abençoam 

ábacos de bom comportamento.

Recria-se um adeus:

diligentes,

os atores ensaiam lágrimas

e amplificam as estrofes

de-vi-da-men-te si-la-ba-das.

Ah, 

se na toca dos meãos

houvesse fermento de padeiro

e à massa crítica fosse vertido

deste lugar dir-se-ia 

um esplendor de eruditos

um arrojo de tecnologia avançada.

Mas a marcha-atrás

depois de engrenada

é difícil de derrotar.

#1653

[Crónicas do vírus, CCXXIV]

 

Quem disse

que a normalidade era miragem

se voltámos a ser

os patinhos feios da Europa?

8.7.20

#1652

[Crónicas do vírus, CCXXIII]

 

É como nas corridas de bicicleta:

no início, o fôlego todo

e depois 

ultrapassado por quase todos.

Quatro mãos (ou apenas duas?)

A obra 

foi escrita

a quatro mãos. 

Só se for 

na era dos computadores

se não

eram quatro os autores

a menos

que dois fossem os escreventes

e ambidestros fossem. 

De outro modo

fica provado

 

(expressão idiomática:

à saciedade,

como diria 

a nata da burguesia portuense)

 

que os tempos 

são a transfiguração 

dos usos.

#1651

[Crónicas do vírus, CCXXII]

 

Agora

somos todos

atores

(definitivamente).

7.7.20

Não contem aos descamisados que são descamisados

Estes ovos 

não se fazem

sem omeletes. 

Podia ser um breviário do surrealismo

com quadros de vison

em baixela de fundo,

um canapé fumado com dedo mindinho,

ou um fundo sem pé

estiolando a toponímia para dar fundo

 

(ao critério do leitor:

sobre o atlas local

nos arrabaldes da capital cidade,

ou sobre lúbrica matéria).

 

Revendo a matéria dada:

estes ovos não se fazem

sem Hamlet. 

O conspícuo saleiro 

vertendo azotados cristais

na prebenda da culinária de fusão 

– ou então,

as braçadas de um engenheiro arrependido

só para ter como rival

a excelência entre as excelências

e na piscina sem muros

encontrar seu covil. 

 

Não admira

que os olhos lancem fisgas

sobre a portela onde se agigantam as elites:

a suave, disfarçada decadência

vertida em maneirismos burgueses

é pergaminho de uns quantos,

um punhado apenas:

besuntam-se de uma franquia regional

que destempera um ódio falaz,

um ódio que é fingimento de inveja.

Eles 

são os ovos

a quem falta omelete

e conhecimento de Hamlet.

#1650

[Crónicas do vírus, CCXXI]

 

Apesar das resistências,

seremos metáforas

do que fomos.

6.7.20

Mestiço

Os campos contestam

o estado derruído dos dias constantes

em sua galharda harmonia

como se terçassem uma independência viril

contra o remoço dos apavorados meãos

que de seu nome tinham artesãos. 

Se ao menos 

o entardecer não se diluísse

na centrifugação dos verbos hábeis

e os melhores cuidassem do inventário do dia

haveria um travesseiro idílico por passagem

o troco certo contra a incúria

e ao pedestal viriam os magos sem disfarce

a porosa alquimia em remédio falante. 

Bicicletas roubadas falariam pelos despojados

uma gramática sem padrão

numa compilação de casas avençadas. 

O líquido recorrente

(incógnito)

atravessa uma meada dos campos

sem os destruir. 

Não havia modo de importunar 

o válido dizer em sua fala muda. 

Os dados ultrapassavam o tabuleiro

e alguém protestava

contra o viés das regras

como se fôssemos todos ingénuos

e soubéssemos 

que os códigos

são um diletantismo de um punhado 

só por si

sem serem à prova de dissidências. 

Não adornava a feição desconfiada

a meio do periscópio emergente,

o incansável feitor das obras sem gasto;

ele sabia 

como era povoar o silêncio

com palavras desarmadilhadas

o vício imaterial escondido 

em rostos impassíveis.

E mesmo assim

desemparedava as janelas promitentes

à espera de um luar modesto,

à espera

de um frémito apalavrado

no mosto da manhã

sobrepondo-se ao farto ciciar

dos pássaros 

que selam a alvorada.