31.12.06

Welcome to the pleasure dome

Há um santuário
onde só o impossível é prometido;
lugar luxuriante
com as pedras almofadadas
sons que enfeitiçam os sentidos
e colchões amansados pela febre contida.
As searas queimadas pelo sol estival
são o leito onde vêm repousar os corpos.

É nesse santuário
que te recolhes na tua plenitude,
barca das amarras libertada
soltando a fúria que as correntes domina.
Vem a perfumada pele
deitar-se no relicário
receber as instruções que desnudam o roteiro
para o púlpito que trina a pulmões cheios.

No santuário
como se o tempo estivesse suspenso
e as flores que incensam o espaço
se dobrassem perante a dança dos corpos.
Uma anestesia fulgurante
murmureja aos ouvidos,
que latejam;
as luzes,
ora acesas ora apagadas,
em compasso com a passada,
algures ritmada,
outras vezes aleatória;
os dedos passeiam pelas pontas vertiginosas
quebram a anestesiante condição
devolvendo a imensidão das planícies douradas:
um sol, alto,
no céu que se perde
e nem nuvens nem brisa
apenas as lágrimas da transpiração
no exultante retrato dos corpos endeusados.

No apetecido santuário
somos apenas nós
sem liturgias nem cadafalsos;
encantada transfiguração dos corpos escondidos
através de uma encenação feérica.
Poderão
as mãos quentes e a boca faminta
com tanta sede,
para o santuário ser altar
dos corpos que se fundem
em uníssono
até um só erguido ao alto
ao lugar tão alto onde só alcançamos
quando, deitados,
os corpos repousam escoltados
pelas paredes do santuário.

Haveríamos de regressar ao santuário
uma e mais vezes:
por certeza que é lá
naquele lugar tão recôndito
que desatamos as pulsões aprisionadas.

12.12.06

Flores do encantamento

Pudesse colher
todas as flores do mundo
para beijar o teu encantamento.
Nadas nas perfumadas pétalas
és tu mesma a essência divina,
simbiose com as flores do mundo.

Os teus olhos exalam os elípticos eixos
de onde se expandem as pétalas
e todas as cores.
Povoam as ruas as encantadas tulipas,
ora penduradas nas varandas engalanadas
ora fazendo o chão com as pétalas tombadas.

Chegas
e sopras o perfume floral
aspergido a quem te abraça,
compensação não pedida
pelo encantamento que espalhas.
Sejam hortênsias viçosas
ou rosas com o botão que acabou de romper
ou mesmo
as pequenas flores silvestres que ornamentam,
discretas,
o altar que vem pisado pelos teus pés.

Recolhes as flores nos teus braços.
Neles cabem todas as flores do mundo.
A face rosada
a pele fina e suave
o adocicado odor que deixas no ar
sugerem:
a flor que enraizaste
enternecedor cálice de vinho
temperado com os taninos
que frutaram das flores inspiradas;
no teu doce olhar.


 

11.12.06

Cedo e tarde demais

O relógio avança, impiedoso.
Encurta o tempo útil que a vida conhece.
Cada segundo que passa,
mesmo os muitos segundos
que nem sequer se dá conta
que foram esvaídos,
matéria inerte emoldurada
num retrato dos tempos idos.
Apenas nostalgia
aqueles dias da revisitação do passado
entrega do presente nos braços do torpor.
O tempo definha.


Urgência em chegar mais cedo às rotinas.
Uns minutos mais cedo
fosse a poupança do tempo balão de oxigénio
soprando o tempo útil da existência.
E, contudo,
a perplexidade é uma interrogação:
apressar os ritmos é chegar mais cedo ao destino,
o desfecho extemporâneo?
Os olhos, a voragem dos sentidos,
devoram a informação
as artes que se entregam no regaço
as sensações inexprimíveis dos sentimentos.

Há,
na pressa de viver
a urgência em morrer?

A inquietação de sentir
que a urgência do modo não é elixir.
Os passos apressados,
o encurtamento dos minutos,
a catadupa de coisas agendadas
- tudo arroteia o agreste terreno
para depois perceber
muito mais por ver
por fazer
por dizer.
A angústia nomeia uma larga avenida
no labirinto das emoções.
Síntese de sentimentos ambíguos
- doce e amargo,
a cor e o negro embaciado,
tudo e mais no seu profundo contraste.
Sucessão de passos acelerados
e de quedas em profundos precipícios,
tão profundos
que o corpo parece planar na imensidão do vazio,
sem lugar para a queda amortecer.

Tudo se passa no interior de um pesadelo.
Enquanto o corpo se debate na vertiginosa queda
o tempo parece ter parado.
Desfilam
as imagens nevrálgicas do passado
momentos que compensa relembrar
e aqueles que a memória quer cegar.
Toda uma experiência de vida
compulsada no mergulho no precipício.
O corpo nunca chega a estatelar-se.
O sonho termina antes,
antes do chão ameaçador se fazer campa voraz.

Ao despertar
o sabor ácido do arrependimento.
Como o tempo já não regressa para resgatar.
Do imortalizado no lugar das memórias
não há lugar ao arrependimento.
Em vez da tranquila contagem do tempo,
sem pressa para degustar a vida lânguida,
a urgência do modo.
Pressa de viver
o receio que ao chegar ao terminal
tanto tenha ficado por conhecer.
Lá,
onde o tempo se compacta
para extrair toda a sumarenta existência,
sobra a angústia:
do que parece cedo
envenenar o entardecer das coisas.

O grande paradoxo.
Desorientado na encruzilhada fatal.
Ora cedo
ora com a perturbante sensação de que já é tarde
ou que a chegada se fez fora do tempo.
Os lamentos
apenas choros inconsequentes
pelo tempo que não volta a acontecer.
Módicos fragmentos dos episódios esparsos,
um atrás de outro
ceifando arbustos estorvos da passagem.
No calor tórrido do sol
faúlhas de incêndios consomem o arvoredo
vomitadas das distantes labaredas,
poisando no cabelo,
cortando a respiração.
Calor abrasador que destila o suor
- o suor de quem vive em correria,
por querer chegar cedo
aos lugares onde só tarde se arriba.

Calor dos sentidos tolda discernimento.
A febre de viver apressadamente desfaz a tranquilidade,
como navio à deriva levado pelo mar tempestuoso
contra as rochas que escondem a praia.
Fica a dor do embate nas rochas
o rescaldo da urgência do tempo;
esquece
que só os ponteiros do relógio ditam a sua marcha
não os simulacros que intuem a aceleração do tempo
sem perceber que o pavio se encurta.
Fica uma intensa dor
como se na boca
eclodisse uma pedra incandescente:
a urgência de cedo chegar
imprime a antecipação do final
que se anseia sempre adiado.

Cedo,
ou a sombra do tardio ocaso.

5.12.06

Não tenho opinião formada

Que sabes tu?
Apenas nevoeiro
impenetrável nevoeiro no meio de tanta sapiência.
Glosar o filósofo
certificar que nada sei –
e, sabendo-o, é tudo o que sei.
Dou voltas à cabeça
entro em complicados labirintos
perco-me em judiciosas encruzilhadas;
e saio,
airoso,
convencido do nada.
Há os que se atormentam
pela dúvida que se apodera,
outros negam-se a si mesmos
na ofuscação da dúvida;
eu quero cultivar a incerteza
as perguntas sem resposta
ou as respostas que transportam outras perguntas.
Perturbam-me os espíritos esclarecidos
os sabichões com resposta para tudo
imperturbáveis guardiães da certeza.
Urticária pegajosa
quando os vejo a catedrar.
A altivez da superioridade intelectual
só me faz querer conversar
com o maior dos algozes da ciência,
que lapidam o diamante da agnosia.
Ao menos sabem o que são
perdidos na incontinência do não saber
cientes das respostas que não possuem.
Os mestres de cerimónia da ciência ululante
são ilusionistas encartados
fautores do deplorável hipnotismo das massas.
Bem falantes
argutos na retórica
a imagem de infalíveis personagens
gente que disserta sobre os temas que venham;
aguçando o apetite nas massas
por mais sabedoria aspergida para a doutrinação do povo.
Opinam,
a eito,
sobre:
os foguetões na lua
as cheias no Douro
a nouvelle couisine
o cinema de Kusturica
os quadros de Arpad Szenes
as tácticas do mundano futebol
(que, na sua boca, sai do precipício da incultura)
a dogmática eclesiástica
os versos de Cesariny
(agora que o poeta morreu e as homenagens estalam na boca)
a qualidade das obras públicas
a música – do barroco ao clássico, dos Doors aos Smiths
os mercados financeiros
os presentes certos para as namoradas
o referendo ao aborto, mais as questões éticas agregadas
a arte da canalização
a previsão de tempestades
os molhos para o fondue
o automóvel mais amigável do meio ambiente
a política internacional
as melhores estações de esqui
os livros, literatura ou leitura técnica
os melhores conselheiros pessoais.
Cá para mim, só isto:
perguntem-me o que quiserem
e sempre a mesma resposta:
não tenho opinião formada.
Não tenho.
Opinião.
Formada.

Tejo adormecido

As águas lamacentas vegetam junto à margem.
Pela baixa-mar
o lodo que é toda a canseira de um rio.
Por entre o lodo
um homem vasculha a bicha
revolve a lamacenta terra acastanhada
enterrando as galochas na pastosa massa.

Ali à frente
o extenso estuário
anuncia a branca Lisboa na outra margem.
Muito ao longe
o casario esbranquiçado confunde-se
com a névoa demorada.
As águas repousam
lânguidas
logram a cama alargada em que se vêm deitar
no fim da cavalgada leito fora.

O chão amansado do Tejo
pressagia que nos poderíamos lá deitar
fazer dele o remansoso leito
onde gritam os mais belos sonhos.
Só uma falua que traga o estuário
descompõe o sossego das águas,
tímidas ondas sopradas pela proa.
As pequenas aves ribeirinhas
vogam nas águas levemente ondulantes
acima e abaixo
ciciando incómodos.

Minutos depois
o Tejo regressa ao sossego mortiço,
as águas paradas num espelho grandioso.
Não há vez
que não pare para contemplar o largo estuário:
não há vez
que não me extasie com a obra grandiloquente,
o rio que escavou um vale amplo ao aproximar-se da foz
espelho de água que estende braços para todos os lados
e contagia Lisboa,
cidade ajoelhada diante do majestoso rio.

Não será o Tejo rio selvagem – como o Douro.
Não avança por entre ladeiras escarpadas
contorcendo-se furiosamente entre fráguas,
mesmo junto à foz
onde rompe o granito alcantilado
antes de se deitar na boca do oceano alteroso.
O Tejo é massa volumosa de água
fluindo vagarosamente
rumo à embocadura do Mar da Palha;
o terreno plano da lezíria
domestica a fúria da torrente ribeirinha
no caminho para a foz,
um novelo que se estende no mapa de planuras;
mas um vórtice aquoso
que debita tantos metros cúbicos
invisíveis na sua fingida acalmia.

Se o Douro bate com fragor
nas águas salgadas que o recebem
o Tejo adormece no estuário
espraiado diante Lisboa.
Os rios destoam dos elementos:
o Tejo amansa a fúria ao chegar ao destino
temperado pela hospitalidade do oceano
que penetra no Mar da Palha.