31.12.23

#3014

Cautela

à cautela;

não se torne 

a sorte

um revés.

#3013

A luz 

entrecruza-se

com os poros

desenha-lhes

as cores amargas.

#3012

Todas essas palavras

aninhadas 

na nuca do pensamento,

à espera de resgate.

30.12.23

#3011

A tabuada dos síndicos

é onde são coladas

e com cuspo

as leis da (sua) moral.

29.12.23

#3010

Perdera do norte

a infância;

talvez

a matriz de um tempo

irrecuperável.

28.12.23

#3009

A mentira

na sua intencionalidade

desenha as fronteiras

da desmemória.

 

[Antevéspera de campanha eleitoral]

27.12.23

Injustiças indocumentadas (275)

Tanta gente

a fazer face.

Deve ser este

um país de escultores.

#3008

A banalidade da verdade

traduz 

a acareação em método.

26.12.23

#3007

Diziam

às estrelas

ser farta a safra

e pediam

que da atalaia.

não se esquecessem.

Injustiças indocumentadas (274)

Dizer

já não tenho idade

é o passaporte

para interromper o envelhecimento.

25.12.23

#3006

As montanhas

é que movem

a fé.

24.12.23

#3005

Damos notícias

e não somos

jornalistas.

Injustiças indocumentadas (273)

Mary,

Christmas.

23.12.23

#3004

Seriam precisas

chaminés mais largas

para receber

anafados pais natais.

Injustiças indocumentadas (272)

O fala-caro

arrota

rebuçados de ouro.

22.12.23

Agarro-me ao mar enquanto não vou de braços à maré

O estribo aperta o corpo ao mastro

e não há mar em convulsão

mas de gigantes ondas perfumado pela ira

a demover a vontade rainha.

O esqueleto sabe de cor as curvas das ondas

sobe pelo mastro até se tornar altivo

o desafio insolente à pureza cínica do mar;

não se tolhe 

a coragem de marinheiros desta cepa

não desistem da manhã

nem em noites de medonhos pesadelos

boicotam o mar desarrumado

e ordenam

com voz sibilina e estrofes amadurecidas

para o mar se reduzir à serenidade mirífica.

Os navios erram na bússola predestinada

orquestram os sulcos com que colorem o mar

sabendo-se

que neles habitam 

as vozes que desistem da angústia

as vozes que não se esgotam na saliva rarefeita.

São os bancos graníticos que sobem 

quando as ondas se desfazem 

num punhado de espuma

quando se descobre que não há orquídeas;

são as vozes desistentes dos embarcadiços

que não escondem os arsenais sem recursos

as vozes

que desenham os parapeitos

que ajudam os corpos a serem preces

enquanto lá fora

sob os auspícios de uma tempestade armadilhada

os corpos precoces são despedaçados, 

pela centelha que se traduz

em dicionário fora de curso,

por estilhaços.

Injustiças indocumentadas (271)

Podia-se falar

de um calor de 

(“eu sei lá”)

mamões.

#3003

Dei fuso à comenda,

que outra ovação

não era esperada.

Injustiças indocumentadas (270)

O cor-de-rosa

enquanto fatalidade.

21.12.23

#3002

A febre da terra

no fogo eremita

a ira à espera 

de combustão.

20.12.23

Adoçar a literatura é um dever dos literatos

A página doze

às dezasseis e vinte e quatro minutos

as suas trezentas e quinze palavras

demoraram dois minutos e quarenta segundos

a ler.

A página treze

às dezasseis horas e quase vinte e sete minutos

as suas cento e oitenta e sete palavras

(é o fim do ensaio 

sobre a mecânica das vias ferroviárias)

demoraram um minuto e cinquenta e oito segundos

a ler.

A página sem rosto

a página sem número

que se ateiam no vazio

à espera de ficarem grávidas

do precipício;

à espera

que a deslocação do vento

tenha tinta suficiente

para escrever a página catorze

e a quinze e a dezasseis

e a dezassete

e assim sucessivamente.

#3001

O ruído a remoer 

fundo, 

no fundo

onde os bastidores 

se deslaçam.

19.12.23

Manhãs

Dei-te o nome da manhã. 

Dei-te a pele em combustão 

para seres a candeia 

que me resgatou da hibernação. 

 

Os vulcões desenhados 

na carne desembaraçada 

desmatavam o medo. 

 

Não queríamos fronteiras. 

 

Deixamos em legado 

o nome da manhã. 

 

Feito com as estrofes 

que depusemos 

a mãos juntas.

Injustiças indocumentadas (269)

Socialista.

Sucia lista.

Só lista na cia.

#3000

Não ficou para trás

o comboio impertérrito

a cavalgar 

nas lombadas prístinas

de estrofes frescamente matinais.

18.12.23

O ouro e o bandido

Um repente

um estatuário sismo

por dentro dos ossos gémeos

sem que haja estandarte por levantar

sem memória que seja para avivar

ou hino para falar:

uma encenação

ou farsa esculpida no barro comum

essa historieta vã

uns olímpicos sebastiões 

doutores em saudades do avesso

empunhando archotes 

que hibernam o presente

e devolvem trevas irremediáveis.

Nadam

para dentro de um tsunami

no logro participado de uma ilusão fátua

e todos os papelinhos estilhaçados

em fila desordenada

fazendo a vez de confettis

armadilhando o chão suado.

Injustiças indocumentadas (268)

Passaporte.

Passa porte.

Passa (o) porte.

Passa (o teu) porte.

Parte.

Injustiças indocumentadas (267)

Aceita a seita.

A seita aceita.

Aceita.

A seita.

Injustiças indocumentadas (266)

Não se brinca

com cadeiras.

 

[Prontuário do blasé]

#2999

A ponte é uma dádiva

um atalho entre duas mãos

a muralha desfeita no pó do tempo.

17.12.23

#2998

Wait

for the weight.

Weight

the wait.

A premissa do sonho

O pensamento faz barulho

onde o corpo se esconde

quando a matéria anoitece.

O pensamento faz barulho

onde se encontra com o silêncio

quando as mãos estrénuas

esconjuram as vozes fraquejadas.

Quando

esquartejada a angústia

em finas camadas de frio

amanhecem as luas antigas

sobre o pano desarrumado dos sonhos.

A bucólica boca bebe de um trago

toda a baba dos pesadelos arqueados.

Tece os socalcos que descem

até sobrarem os silêncio ungidos

por deuses demissionários.

Mas o pensamento

continua a fazer barulho

até onde é ermo o lugar.

E esse

é todo o património

da humanidade.

Injustiças indocumentadas (265)

Conversa fiada

sem uma roca

por perto.

16.12.23

Injustiças indocumentadas (264)

Primeiro,

ministro.

Segundo,

vítima.

 

[Como reabilitar uma carreira política em meia dúzia de páginas]

#2997

Este é o nosso arras:

um património de palavras

o passado que nos persegue.

15.12.23

Injustiças indocumentadas (263)

Ave

deixa a Maria

pesar

a sua graça.

Injustiças indocumentadas (262)

O mundo anda estranhamente modesto:

tem os Países Baixos

mas faltam

os países altos.

Injustiças indocumentadas (261)

Para contar as favas

é preciso um ábaco 

em forma de milagre.

Injustiças indocumentadas (260)

Quem lambe botas

fala língua de trapos.

#2996

No fundo

ao fundo

o entardecer

militante.

14.12.23

Desmontagem

Os corpos esbracejam

multidões ansiosas por um aval

os seus abusivos xailes cobrem o silêncio. 

 

Não há quem desmate a floresta sem luar

não há ninguém no arrumado altar das fugas

e os bardos já não têm repertório

vencendo, enfim, 

o silêncio. 

 

Os cálices maduros sobem às bocas. 

 

Desaprenderam a nostalgia

e agora 

saciados

compõem as fragas por se despenha o medo. 

 

Sem céu por abrir ao luar

sobra a meada de neve

o longo apeadeiro onde se consomem as almas

no vindouro espelho que espartilha o passado. 

 

O ontem 

deixou uma amálgama retorcida

nomes e lugares e rostos e casas

embaraços tenentes da matéria puída

toda uma constelação de lúgubres lugares

à espera de lugar

na sepultura.

Outono erudito

À gramática do Outono:

as folhas desmaiam

juram que voltam a ser vulcões.

Deixam nuas as árvores

remexidas pelo Inverno impetuoso.

Não há nada mais inteligente

do que o Outono.

#2995

Estas espadas castradas

o ânimo enfim

um Homem fecundo.

13.12.23

Prisoner’s dilemma

Facing authority.

 

Fencing authority.

Injustiças indocumentadas (259)

Subsídios

para o conceito

de mentira despegada:

_____________________

Injustiças indocumentadas (258)

Fugir à verdade

para 

fugir da verdade.

Para

de fugir

à verdade.

Injustiças indocumentadas (257)

Fazer face

é uma atividade

que consome muitas calorias.

#2994

O desejo 

afirma o beijo

a vontade

num lampejo.

12.12.23

Nostalgia disfarçada

Mando no precipício:

não são os avestruzes vetustos,

os cicerones dos campos minados,

deduzem

que serão maltrapilhas as cabeças

assim encestadas na toca 

onde desamanhece o lobo censitário. 

Se por precipício se entender 

a mando de uma metáfora

acendem-se as sirenes

cimentando o sonoro protesto

tirado à prova dos nove entretanto. 

Se forem contumazes

os boémios adestrados

seja dada corda à cantilena arcaica

montadas as memórias altivas

o autêntico sublinhado da melancolia. 

Não é por erro

a carta da melancolia que sobe à mesa:

podiam os desalentados do presente

abrilhantar a nostalgia

tudo o que conseguiram

foi três pétalas de melancolia

no sopé do precipício 

que tinha ares de miradouro.

 

O dia diuturno

As mãos 

tocam a carne suada, 

levam à boca 

a alvorada 

que torna o dia opulento. 

Na coreografia sem roteiro, 

os corpos ensaiam o auge. 

Agarram-se 

aos dedos máximos 

que devolvem 

a claridade anestesiada. 

Se as paredes soubessem, 

eram poetas.

#2993

As palavras queridas

as palavras dinamite

as palavras elefante

as palavras devolvidas.

Injustiças indocumentadas (256)

Dois dedos de conversa

e os demais para o silêncio.

11.12.23

Antibiótico

Se o fundo for o magma

e as fruteiras colhem a madurez

os rostos cerrados proveem o adiamento

e do luar apeado não houver regime

as jornadas serão curadorias das bocas sedentas

o calendário previsível

ou apenas o vinho rasteiro ante dois dedos

de conversa.

#2992

A tecnologia das hipóteses

em vez 

de imperativos categóricos.

Injustiças indocumentadas (255)

A iluminação

dos combustíveis fósseis 

– parece mesmo que disse 

a repórter na televisão.

10.12.23

#2991

A mudez

servida pelo dia

por cima 

das vozes merencórias,

um achado.

Injustiças indocumentadas (254)

Para uns: 

só à lei 

do maior esforço.

9.12.23

#2990

A locomotiva da maldição

amuralha a angústia;

o dia plúmbeo 

reservou lugar à mesa.

8.12.23

#2989

Ateada a fogueira

só se extingue

com a carne.

7.12.23

Passadeira

Sem o cimento

as varandas são precipícios

sem ninguém que se sirva do arnês

o medo anónimo subindo pelo gelo

os casacos remediados que não chegam. 

 

Sem as mãos atrevidas

as cordilheiras são miragens

chamam os sentinelas a jogo

sobre o sabre que cauteriza as veias. 

 

Desfeito o caudal desprevenido

atropela os sóbrios mascotes dos costumes

perdido entre a incógnita do medo

e a indigência dos procuradores da angústia. 

Injustiças indocumentadas (253)

E depois há aqueles

que perfilham o lema

do trabalhar para esquecer.

Injustiças indocumentadas (252)

Dava notícias 

– e não era um ato

de generosidade.

#2988

Conta o relógio

(boicotando os boicotes)

as marés havidas

em espera pelas vincendas.

Injustiças indocumentadas (251)

Salvo

a pior

opinião.

6.12.23

Cemitérios ao longe

Não posso dar os sentimentos

não quero deles ficar privado.

Não sei se é pretexto

para pesarem tanto as elegias

ou apenas o medo da morte

o algoz injusto

feitor de vidas sempre breves

tradutor do efémero malquisto.

 

Os cangalheiros autoimpostos

que se entreguem 

ao embalsamento a destempo

para que não sobrem nódoas

sobre a pele difamada 

dos ainda vivos.

 

Reflexão crítica:

ao que é dado a testemunhar 

das desandanças das vidas

por este andar 

ainda convencem

que a morte é o menor dos custos.

#2987

Corres 

por dentro de um fóssil

contido num silo 

à prova de fora.

5.12.23

Injustiças indocumentadas (250)

Não tem graça

cair

em desgraça.

Não é desgraça

não cair

em graça.

Viva a dinastia, viva!

Enchem-se ruas e bancadas

compram-se confettis 

assobiam os foguetes

traduzem-se elogios:

 

vem aí a dinastia

 

sirenes estridentes

a precederem-na

espadaúdos espécimes

para a ordem garantirem

plumitivos histriónicos

de microfone em riste

o povo arrebanhado

em edital vocal

fatos cinzentos

discretamente exuberantes

(chiu: são dos serviços secretos

não contes o segredo)

e finalmente

a dinastia regular

do mexicanizado regime

um regime sem dieta

gordo e gordo e gordo

para prebendas distribuir

por um séquito

que alimenta

outro séquito

e mais sequitozinhos

até não sobrar vivalma

à mesa do orçamento

no banquete onde a dinastia

arrota um divino direito.

#2986

O algodão é doce

e isso não é uma doce ilusão

que aprisiona a infância.

Injustiças indocumentadas (249)

Alto gabarito.

Alto,

gabarito.

4.12.23

Embaixadores

Não somos as sombras onde se escondem os escombros. Somos a lucidez, a manhã clara sem medo da chuva, a lava de onde procedem as quimeras. Somos a estatura inteira que mede o aniversário do futuro. Não somos destroços numa mordaça a vontade. Somos a maré alta de onde temos atalaia no sangue indomável. A desinquietação com dedos mágicos por cima, uma feitoria sem embaixadores de medo, nós, o peito pleno em vez de bandeiras, o hino desconhecido dos outros, nós.

O verbo truncado

É desta extorsão de mim

que arrebato 

o crepúsculo haurido. 

 

As mãos suadas extraem da terra

os sorrisos propedêuticos

as limalhas atiradas ao acaso

contra os olhos ilhéus 

dos operários. 

O que dizer

destes dias circenses

em que muitos se disfarçam deles próprios

fingindo 

que se orquestram na finitude sem regaço?

 

Ah!

o estipêndio joga-se em tabuleiros luxuosos

e são mãos sem rosto 

que esfregam dedos extasiados

e esperam

com a ilusão dos desenganados

que seja sua a sorte vez

eles que nem sabem 

do princípio geral da corrupção. 

 

Os bichos remoem-se

indiferentes

numa gesta improvável

no cesto onde se guardam as frutas

no berço onde gastas se aprendem palavras

contra o fundo poço onde se escondem silêncios. 

 

A combustão sobe a palco

altiva

pergunta quem quer um tumulto de graça

não sem desaprender a graça avinagrada

o sempre distante braço de ferro

que se indispõe 

contra abastados fornecedores de esperanças. 

 

Prossigo a pauta dos dias

eu que continuo a não saber ler música

e persigo vultos que seguem de rastos

como se lambessem a lama 

e depois a bolçassem sobre os distraídos. 

Prossigo

que as demandas se consultam na escuridão

intérpretes da alergia à simpatia gasta

antes preferindo cozinhar as sumptuosas farsas

sozinho no epicentro da periferia

roendo as unhas vestidas de cal

dizendo em apenas murmúrios

um dó-ré-mi apalavrado 

no sofá dos aristocratas. 

 

E se em sonhos me dissolvi

foi porque me esqueci de dormir

escondido na vela hirsuta de um velho veleiro

em mares de nomes que não sei

empunhando o sabre apodrecido

como convém

a um apátrida de guerras

magnificamente condoído na estatura meã

de tudo à volta.

#2985

O nauta

não se esconde do mar.

Ninguém 

se esconde da casa.

3.12.23

#2984

Cuido do endereço

sem que pareça

um adereço.

Se me enfureço

deixo o palco ao olhar

que endureço.

Injustiças indocumentadas (248)

Voltar

com a palavra 

à frente.

Narrativa

O poeta

não tem o dever

de explicar o poema.

2.12.23

Injustiças indocumentadas (247)

Alvíssaras são oferecidas

por umas estribeiras

sem paradeiro.

#2983

No palco por perto

onde as cicatrizes se avessam

a pele ruidosamente nova

amanhece.

Injustiças indocumentadas (246)

Pois não.

(Isto não é

o Texas.)

1.12.23

#2982

Não falo de mortos

eles não leem epitáfios.