13.12.07

Poesia (para o jardim) infantil

O natal
perfuma as estrelas
com as cores
da felicidade.

30.11.07

Despojos do Outono

Ao amanhecer
as ruas ainda desertas acolhem o restolho
as furiosas folhas acobreadas já desligadas dos ramos.
A rotunda é o leito sombrio
onde as folhas gastas se acamam.
E dançam ao vento,
o vento despótico que as atira, aleatórias
contra a embocadura do vazio onde jazem.
Não há nos despojos de Outono
a magia das despedidas.
Apenas a coreografia das cores esbatidas
um óculo que espreita
em retrospectiva
as danças excitadas do estio dobrado.
E, contudo,
há nesses despojos
a fértil sementeira dos dias claros
logo no contrário dos dias cinzentos
tingidos pelas nuvens pesadas
a ossatura dos dias minguantes
as pedras pontiagudas do vento agreste
da chuva que se toma pelos sopros da ventania.
Nem sempre as folhas quebradas
entoam o seu restolho
devolvidas à terra que se oferece,
sua sepultura.
Na coreografia dos contrastes
entre os dias lívidos e as noites de refúgio
rejuvenescimento nas folhas acobreadas que se amontoam;
e renovação: a reinvenção das forças
pelo perecimento das folhas
que acastelam os despojos das páginas já dobradas.
O ternurento Outono encobre uma dormência pueril
a preguiça contagiante que se insinua
nos fragmentos deixados para trás pelas folhas
que esvoaçam em outra rabanada de vento.
Dizem
que o Outono
repristina a tristeza;
e que fermenta a indolência
dos corpos aprisionados em casa
quando chegam tempestades;
e ainda que acomete com saudades antes do tempo
saudades do Verão que levantou âncora.
Só esquecem de dizer
que os despojos do Outono escondem a densa neblina
e, atrás dela,
o mistério da luz que se há-de desvelar
centelha que adorna a doce curvatura
onde se deitam os corpos
apaziguados
excitados na luz esquálida,
mas quente
dos encurtados dias outonais.
As folhas inertes cambaleiam no dorso do vento
irrompem no ar em movimentos aleatórios
enquanto desnudam as árvores
dir-se-ia,
em muda de pele.
O gritante paradoxo:
nuas quando mais abrigo carecem
agora que a invernia acintosa
espreita entre as folhas do calendário rasgadas.
É um Outono de despojos.
Em despojos.

5.11.07

Os olhos e os pesadelos reais

Dizias:
que os olhos se encerram
e então vês toda a vida
um cortejo entristecido
negras personagens sem rosto
o rumo do destino ausente.

Dizias:
que os olhos se entreabrem
a medo
e o pesadelo que julgavas ser
desfila diante da vista estremunhada.

E dizias:
que nem sabes se é o refúgio do sono
ou dele fugir
para que pesadelos tão calcinantes
se hajam confundir com a espessa realidade.

Aos ecos vadios

Ecos
de tantas cores
esbracejam aos meus ouvidos
o lacrimejar das fadas.

E ecos
distantes, perenes, sombrios
ou apenas ecos
sem serventia de adjectivos
ora trovejam, ora ciciam.
Amaciam os sons estridentes
abafam as palavrosas prédicas
que, espremidas,
gotejam nada.

Ao menos, os ecos
deixam ao ouvinte um imenso mar
para cavalgar;
dão-lhe liberdade:
de os perfumar com um incenso exótico
ou mascará-los com o sal do mar nocturno
enquanto o límpido luar
encerra os demais sons.

Os ecos
recolhem nas suas asas
a plenitude da paisagem.
Reproduzem a sua eterna beleza
dela o bastião que retratos não conseguem fixar.

2.10.07

Nem sempre os olhos

Os olhos cerrados para a lua
bebem a brisa fresca,
desnudam-se em sua fragilidade.

Os olhos cicerones:
ora mentem,
ora mergulham no cru cenário.

Juízes implacáveis
sempre de espada desembainhada
na aura esbelta de estarem vigilantes.

Por vezes, escondem-se;
escondem o que custa olhar
mentem com o descaramento da ilusão.

É então que se vê:
olhos, traiçoeiros feitores
de retratos impossíveis.

3.7.07

Cruise Control

Podem as tempestades amedrontar
os mares assobiarem raiva endemoninhada
os ventos silvarem fauna grotesca
e raios selvagens queimarem o singular remanso.
Podem, até,
chorar as pedras da aspereza dos elementos.
Nem as garças que desafiam a borrasca
ou as folhas que se saciam nas gotas da chuva
aplacam a tristeza carpida em demorados dias cinzentos.

Não chegam
esses dias melancólicos
a furtar o sorriso altivo.

Entraste em cruise control
e derrotas os remoinhos
adivinhas as armadilhas escondidas
enxotas as alcateias esfaimadas
e persegues,
inane que seja,
como se indomável fosses
as pedras pontiagudas que te doem.
Nem o corpo franzino espalhado de cicatrizes,
dessas cicatrizes por fechar,
ladário de dor que troveja, lancinante;
ou as lágrimas que escorrem
sem as saberes prender:
nada
nada pode contra a brandura vegetativa
que te deixa a pairar
sobre a mortal dimensão terrena.

Passas pelo escuro
com os olhos que vêm na cristalina luz.
Pisas o chão tão duro
sem a mortificação dos espinhos cravados nos pés.

Ah, insultos que apoucam
e um coro que amesquinha,
diria:
tantos sedimentos para o suicídio
– ou apenas refúgio nas ameias de ti mesmo.
E, contudo,
as pálpebras escondem-se, perplexas:
serás um couraçado
brutal força assassina
imune ao pestilento estado das coisas?
Ou apenas domado por uma anestesia piedosa
soporífero que cinde o que há em ti
entre confusão e discernimento das cores vis?

Corres com toda a força
toda a força que as tuas forças alcançam.
Esbracejas contra o vento
fazes tenção de o apanhar
ou só de o afastar de ti,
receoso do seu virulento quilate.
Corres sem destino
colhes as flores alheias
aquelas que as cores e as formas estonteiam
e depois oferece-as à primeira pessoa que vês
atónita testemunha do desvario que desentorpece.

Pela noite,
só pela noite,
acalma a batida do coração.

Não é o cansaço que tolhe movimentos
nem cerceia a ambição.
É um dia pleno que revês
na convicção da maioridade enfim:
o baluarte que és para ti mesmo
ao saberes que houve mercê
do enxerto da alma providenciado.
Aprendeste:
em vez dos descompassados sons
das melodias ora céleres, ora lânguidas
a essência de tudo na estabilidade do ser
lá, onde a completude se encerra.
Nem que haja doloroso preço a pagar,
a enraivecida lupa das coisas
cedendo a vez à planura da paisagem
ao presciente passajar da pele nua aos atritos maiores.

12.6.07

Paródia dos pecados

Tomba sobre os pecadores
a asfixia do impudor.
Debatem-se com a consciência atormentada
tantos os pecaminosos, impérvios caminhos
dos esbulhados da moral.

Há sacerdotes que expiam os pecados
e espiam consciências.
Sacerdotes que tratam da moral,
eles, tão puros
tão imunes aos devaneios transgressores.

Batem à porta dos pecadores angustiados
a qualquer hora
patrulhas de generosas almas
que rondam, atentas,
os sumiços das consciências.

Dizem que há um rebanho
apascentado pelos pastores que se entregam
à bondosa militância dos passos certeiros.
E que os pecados são o encantamento demoníaco
a cancela que afasta a virtude.

Quem lhes assegura que queremos a virtude?
Quem lhes assegura o que é a virtude?
Sacerdotes aprimorados afivelam os costumes
encaixilham-nos no vetusto celofane
dos seus herméticos quadros mentais.

Os outros,
os dissidentes da normalidade,
amedrontados pelo tortuoso futuro que os espera
na embocadura do encarniçado inferno.
Os outros, apenas vigiam o seu tumulto interior.

Os sentinelas da moralidade alheia
perseguem o sacerdócio:
é a sua vez de chamar a sublevação
a deles contra a dos pecaminosos amotinados;
pungente altruísmo ou advogados em causa própria?

Os desvalidos teimam em pecaminosos actos
e provocam, renovando mais pecados.
Sobra a excomunhão
– como se carecesse depurar o rebanho
acantonar os excluídos à condição de párias.

Não que lhes desassossegue o espírito,
aos amotinados da pacotilha sacristã,
pois a fé lhes é risível coisa.
Na glote fica-lhes o doce sabor da transgressão
mais doce quanto mais censurada pelos guardiães.

Os fantasmas que acenam
e a monstruosa tarefa reservada
aos que teimam na herética errância:
apenas um cabo de trabalhos aos seus fautores.
Os únicos inquietados com desvios alheios.

Os destinatários
sossegados na impureza do pecado
hão-de prosseguir no sono plácido.
Não são eles que bebem a cicuta
por não haver no “pecado” veneno algum.

Miseráveis
hão-de continuar os vigilantes dos outros.
Ao saberem que os campos do pecado
são sulcados por um rebanho numeroso.
Cada vez mais numeroso.

10.5.07

A candeia e as lágrimas

Seguia-me pela candeia,
uma âncora salvífica
para o homem desvairado.
A luz da candeia
espalhava um rasto de esclarecimento
enquanto a escuridão se dobrava diante da luz.
Através da candeia
acendiam-se os candelabros da existência
perfumavam-se os poros
já não com o suor sofrido tisnado pelo breu.

Diante da candeia
vogava a tua imagem;
ao início
não percebi se de imagem
holograma
se tratava
ou se eras tu,
matéria e alma concreta.
Os passos temerosos
e a mão trémula que se estendia a medo
ajuizaram que não eras sonho.
Senti a alvura da tua pele
a sua macieza
o cabelo que ondulava com a brisa matinal
e afastei com um dedo
esparsas lágrimas que tombavam.

Choravas
– seria a lânguida e provecta desdita a visitar-te?
As lágrimas curvavam-se face abaixo.
Eram salgadas:
os dedos que as enxugavam
traziam-nas a mim,
saciado pelo néctar que continham.
E embora chorasses
não via esgar de tristeza;
apenas serenidade que irradiava
perturbada só pelo estremecimento do corpo
na passagem dos dedos que te aspergiam afecto.

Era perturbante
o choro de quem assim dormia,
profundamente.
Respondias com silêncio às minhas demandas
e nem a luz da candeia incensava os teus olhos,
teimosos,
como janelas empenhadas
em serem refúgio do temor avassalador.
Diria que o teu sono era
imperturbável:
nem a intensa luz da candeia
ou o ruído da cidade apressada
ou a minha voz
(nunca alta, decerto)
nada te resgatava do sono balsâmico.

Ajuizei por ti
(penhor dos teus sonhos
na autorização da tremenda cumplicidade):
seria um sono apaziguador
mergulhada em sonhos radiosos
onde eras plenitude
o zénite de todas as coisas
um arroubo intenso nas palavras murmuradas
que ecoavam sentimentos sublimes.
As lágrimas não eram observatório do infausto,
delas jorravam
fragmentos vivos da felicidade adulta.
Porque há lágrimas vertidas
que são sinónimo do arrebatamento que mumificamos.

Vi então
nos demorados instantes que te fitei
uma e outra vez mais
o altar sagrado do meu enlevo;
de como o tempo se abstém
nesses instantes imunes às palavras;
já não havia precisão da candeia
pois as tuas lágrimas salgadas
eram as águas onde vogava
ser inebriante, eu,
habilitado pela fortuna da tua placidez.

Seria por magia,
uma lágrima recolhida com a ponta dos dedos
ungiu a candeia.
Que se apagou,
chama desvanecendo-se lentamente.
Havia nesse desvanecimento
o clamor para uma vida inteira,
completa,
para reter todo o sal de um singelo abraço
e contar aos desafortunados
– para sua saudável inveja –
como habitava nas águas bonançosas
a temperança ideal.

Quando voltei a mim,
depois dos instantes de anestesia que foste tu,
já não sinal da candeia;
e o teu rosto enxuto
despertado pela alvorada clara.

9.5.07

As perguntas certas

Não são as respostas
não são as respostas que interessam.
Sim, as perguntas
as perguntas certas
aquelas que desvendam os passos prudentes.
As perguntas que cerceiam lugar
ao altar do conhecimento
(as perguntas fátuas
as do linguajar entontecido
a facúndia barata que espremida nem umas gotas dá)
essas são as perguntas inúteis.
Tempo gasto.
Desnecessariamente gasto.
As perguntas certas libertam o verbo
e aprisionam a verve ilusionista.
Nelas, o travo apetitoso
a esquadria das ervas aromáticas
deitadas na proporção ideal.
Nem de menos, nem de mais.
Senão
as perguntas trazem o sabor insípido
travadas pelas palavras despojadas de ousadia;
Senão
as perguntas florescem adulteradas
atravancadas pelos aromas que se atropelam
sem fio condutor
sem nexo
entretecidas no torpor da vozearia banal.
São difíceis
as perguntas certas.
E tantas são as vezes
convencidos que estamos das perguntas certas
e logo no instante seguinte
o travo amargo da pergunta errada
ou apenas inconsequente.
E se as perguntas certas são importantes:
é como chegados a uma encruzilhada,
sabermos o que perguntar
para onde saber ir.
É nas perguntas certas
a divinal razão dos sentidos.
Não nas respostas
que essas podem
vacilar, debater, divergir.
Sem as perguntas certas
é como se ao mar tivessem levado todo o sal.

19.4.07

Que diremos
quando destinos cruzados
são a candeia da existência?

Os dias nascem ao mesmo tempo
como se os olhos despertassem em uníssono;
as folhas trazidas com o vento
esbarram, compassadas, nos nossos corpos;
as bissectrizes que se intersectam
mais além da labiríntica espuma da vida,
onde todas as gotas da chuva são dádivas
o gentil bálsamo que fertiliza a terra
onde nos deitamos.
Tudo em nós é um vasto oceano
ora de águas agitadas
(no regurgitar cardíaco que se acelera)
ora nas águas mansas
(que apascentam a fluência dos dias).
Tudo em nós
é sintonia.

Habitamos um lugar sem precipícios:
os pés escorreitos deslizam em alcatifas suaves
e os olhos anestesiados pelos cortinados aveludados
detêm-se uns nos outros.
Eu digo que os teus olhos
são a minha respiração,
como dizes que a minha voz
é melodia perfumada que te embriaga.
E o tempo amadurece os campos que semeamos
os campos
onde de mãos dadas irrompemos
retendo o perfume das flores campestres
que – dir-se-ia –
estão sempre floridas
até no pináculo da invernia.

Há em ti a âncora que me amaina,
o sólido paredão que domestica as águas furiosas
que embatem no meu peito.
Dizer que és porto de abrigo
é lugar-comum
um lugar-comum na abundância de significado
(tanto que vem vertido no verso sentido).
Não sei se reitero o lugar-comum
se disser a alternativa:
um feixe de luz arrebatado
no monopólio dos nossos sentidos.
Ou
o mar onde os corpos repousam
e nidificam na correntes invisíveis que nos agrilhoam.

Há aí a única prisão que concebo
as ímpares masmorras salvíficas:
em vez de serem o algoz da liberdade,
a ela me devolvem.
À suprema liberdade de espírito
a liberdade do amor que parece amansado
mas vive num estremecimento constante.

É quando sinto
que se a morte viesse partia preenchido.

13.4.07

Um sonho semântico

Esta noite sonhei
vezes sem conta
que dizia
vezes sem conta
paroxismo.
Mesmo sem saber o que significa
paroxismo.

No sonho
enamorava-me com a palavra
paroxismo.
Como se discursasse eloquentes palavras
sempre rematadas com um sagrado “paroxismo”.
A audiência extasiava-se sempre que pronunciava
paroxismo.
O orador enfatuava,
testemunha da exaltação da audiência:
e ia repetindo
vezes sem conta
paroxismo
paroxismo
paroxismo.

Ao acordar bati à porta do dicionário:
“a maior intensidade de uma dor, de um prazer,
agonia antes da morte (medicina)
do grego, auge”.
Porque haveria o onírico de trazer
o paroxismo
– perguntei-me, vezes sem conta.
O pior é que nem me lembrava
de que matéria era feita o sonho
para convocar o paroxismo.
Às tantas
é apenas uma tropelia onírica
a armadilha onde são capturados
os sentidos adormecidos.
Não sei se seria exorcismo
ou outro ismo qualquer:
aquela noite foi epílogo
no rosário dos sonhos surrealistas
que dariam para preencher páginas de livros
ou pintar obtusas telas com cores garridas.

O mistério fixou-se na intemporalidade:
eu, que nunca havia escrito
paroxismo
marcaria encontro no ermo de um sonho
com a palavra repetida à exaustão.

5.4.07

Louco o mundo

Vejo os querubins trajando vestes negras
enraivecidos com a demência
de que são testemunhas.
Esvoaçam invisíveis
disparando a fúria
porque
as pessoas buscam a essência da loucura
da terrífica loucura que as amesquinha.
As capas negras dos querubins
dançam
silvam
a cada golpe de asa encolerizado.
Nada podem
os anjos que idealizaram a bondade.
Nem sequer
quando
vêm montados em trovejantes cavalos
que querem esmagar todos os vestígios de maldade
escondidos até nos lugares mais recônditos.
Até os anjos foram contaminados:
já não são feitos de alva matéria
nem vêm adejados pela auréola benquista.

As velhas persistem na língua viperina.
De olhos esbugalhados às vidas alheias
como se as delas não existissem
ou fossem apenas um limbo
de onde
vigiam todas as outras vidas.
Não dormem
na vigilância demorada com que saciam
curiosidade doentia.
Morreriam
se um dia
todos os predicados da bondade tingissem o mundo.
Não teriam então o oxigénio.
Seria a doença maior que as levaria
como se um raio fulminante as atravessasse,
a mortal espada que haveria de cercear
a maldade enquistada.
Mas aí haveria malvadez soerguida
para limpar
maldade insuportavelmente ignorante.
Maldade, ainda.

Nas ruas de todas as cidades
demoram-se as pessoas que se esquecem do que são.
Parece que vegetam
como se andassem uns centímetros acima do solo,
simulacro do que são pela imposição do local
onde estão.
Há nelas
a anestesia dos corpos
uma maquinal errância que as leva
a lugar algum.
Atravessam-se no seu tempo:
há nelas uma condoída imagem
do tempo que se esfuma
como se os ponteiros do relógio medrassem
debaixo da fogueira que aquece o inverno.
E ainda que os corpos encham as ruas
os espíritos são imagem de criaturas mirradas
carnes secas que acidulam quem nelas tocar.

Às vezes
apodera-se uma imagem atroz:
um lugar imenso onde todas as pessoas estão
um imenso pântano onde lutam pela sobrevivência,
demorando-se
atoladas no esforço maior para um sacrificial passo
e avançar escassos centímetros.
Das entranhas do pântano
exala um sulfúrico odor que entontece
cansa mais ainda os corpos exangues
que se movem pelo pântano.
E, contudo,
os mortais avançam
pela errância do desconhecido,
fossem impelidos por uma bússola escondida
dentro dos seus corpos.
Movem-se
tenazes
para alcançarem o ermo local
onde
o pântano cede a vez aos prados verdejantes.
Onde
enfim
as pessoas hão-de acometer no descanso final.

O contraste oferece a demência desleal.
Uma vida inteira a irromper entre o fétido lodaçal
uma canseira provável
a que os corpos se acostumam.
Ruinosa esperança que se desmorona
quando
os pés se libertam das pesadas lamas do pântano
e alcançam porto seguro.
Os prados verdejantes
são a cama onde repousam,
por fim.
De onde jamais se erguem
consumidos os exangues corpos
pelo traiçoeiro remanso dos verdejantes prados
que são sepultura prometida.

Atroz aliança
querubins e velhas são juízes
do tribunal das almas.
Conspiram entre si
mas dão as mãos para julgar
todos os espíritos que arremetem à rua.
Parecem os doutores
que dissecam cadáveres nas autópsias.
Dir-se-ia
que
querubins e velhas eternamente viúvas
passam os dias a autopsiar corpos vivos.
E quando espumam raiva,
esbaforidos,
pela perturbante vingança da bondade
inoculam os sedimentos da podridão.
Até que os corpos se habituem à perversidade militante.
Os querubins
voam até aos campos pantanosos
de onde
recolhem as sulfúricas sementes que nidificam
a crueldade sistemática.
As velhas
espalham as sementes
ao vigiarem as vidas todas.

Neste lugar
nem sequer
há tempo para a inocência das crianças.
A genética é o impedimento.
A genética fabricada nos fétidos pantanais
onde
os progenitores são infectados
deixam a sua mácula nos embriões que fecundaram.
Até que a loucura se apodere de todos,
a insanidade malsã para além do sensível.
Haverá um tempo
em que nem sequer saberemos o que é a loucura.
Todos os manicómios terão fechado as portas.

23.3.07

Não sei que segredos

Sabes?
Guardo segredos sem importância
fragmentos estilhaçados de vidas passadas
tento tecer as pontes que semeiam
harmonia.

Percorro a noite,
assustado.
Interrogo os fantasmas
se querem decifrar os segredos;
ao que me respondem com o silêncio escuro.
E assim ficamos
eu e os fantasmas
emparedados na encruzilhada sem pavio.

Pode vir a manhã mensageira
que os segredos teimam em bater alto
contra o meu peito.
Sei então que os guardo
só não sei da chave para os desacorrentar.

Queria que fosses penhor
dos segredos que tenho.
Queria que me dissesses
se são importantes,
ou apenas anónimos grãos de um imenso deserto.
Queria que fosses deles cúmplice
nem que fosse para que deixassem se ser
segredadas oníricas nuvens
que se ilidem na matéria
– ou eles os fantasmas avassaladores.

Mas nem eu sei de que jaezes são os segredos;
Nem eu sei
sequer
se há segredos.
Desconfio que sim
pelas aves que voluteiam por cima de mim
pelas brisas alterosas que me arrepiam a pele
pelas coincidências na dissimulação das superstições,
por tantos augúrios.

Oxalá
se abrissem as janelas
e os segredos só meus
sussurrassem
as inconfessáveis, amedrontadas
palavras da sua decifração.
Ou talvez não:
temente que os segredos
se desfaçam na desilusão que resguardam
promovidos a matéria insensível
arquivados no vetusto esquecimento.

Pelo caminho
apenas uma perdida oportunidade
de te fazer cúmplice
de uns quantos segredos meus.

15.3.07

Nuvens carmim

Alvorada.
O tecto de nuvens finas
filtra os matinais raios solares.
Espreitam ainda
do lado de onde irrompe o sol.
Hão-de ser de um dourado pujante
quando o sol hastear a pino
e queimar as peles encardidas.

Por ora,
apenas uma assustada luz soergue
tingindo a aurora de vivo encarnado,
pintando as finas nuvens
com a cor que não lhes pertence.
Na admiração do quadro horizonte
escoam-se os minutos
e desempoeira-se o envergonhado sol;
como uma pedra de gelo embutida no forno
é o encanto que se esfuma
por entre o movimento matinal que recrudesce.

Pelo dia fora
aquela imagem das nuvens purpúreas
acomete à retina.
Há ali uma sugestão infantil
a bola de algodão doce tingida
que ruboriza na dócil essência de morango.
Os raios nascentes sussurram-se
com pinceladas avermelhadas
que colorem as nuvens.
Atraiçoam a monocromia celeste:
deixa de ser o negrume nocturno
o intenso azul diurno
a cintilação soalheira.

O esfuziante da vida é assim,
efémero.
Fragmentos que se esgotam no instante
sobram como mananciais que sedimentam
a memória que apraz retratar
– nos quadros
nas palavras
ou apenas nas imagens retidas nos sentidos.

Trago em mim
a imagem das delgadas nuvens alteadas
perfuradas pela frescura do rubor intenso,
desvirginadas da sua alva palidez.
Perenes, essas imagens.
E diferentes do tingimento que se abate
na despedida do dia:
porventura
pelo cansaço do dia que se esvai;
porventura
pela euforia da luz diurna que se acastela,
diria que o carmim matinal é diferente:
majestoso e refrescante
lúdico e tentador.

Apetece que os dias amanheçam todos
com o céu desimpedido das plúmbeas nuvens
que escondem este quadro magnífico.

10.3.07

"I'm tired of being God"

Inquebrantável o espelho
onde passa a languidez da tua generosidade.
Qual Madre Teresa
nascido para ser bondoso
espalhar com a magia dos dedos aquecidos
o altruísmo que deixa exangue.
Os astros o disseram alhures:
divina a condição que se empresta
aos predestinados.
Não para proveito próprio
na senda da monástica forma de vida
desprendimento de si e entrega aos outros,
às causas, às carências que agridem o mundo.

E sim
esta auto-deificação é uma implosão do ser
o esvaziamento das forças
o esvaimento de si.
Querer apascentar o mal dos outros
sem curar das maleitas que se apegam, teimosas.
Piedoso incorrigível
na laceração da carne tão ferida
que sangra as lágrimas interiorizadas.
Detrás de uma fachada luminosa
só gritos que ninguém escuta
só a pungente mortificação das vestes rasgadas
ofertadas em farrapos
inútil oferenda que só serena o ego altruísta.

Há, neste convencimento de ser deus,
a mortalha da dignificação suprema
como se a generosidade alumiasse
o trajecto decente.
Ai, tomara a deificação ser perene
oxalá não tivesse o travo das consumições
ou fosse uma planície lustrosa
onde medra só a brisa suave
que enxagua os olhos marejados
– pelo desencontro com a tua alma
pela demissão de ti mesmo.

De tanto curares de ser deus
tanto deixaste de ti pendurado nos outros;
tanto
que já nem se afiança
que em ti há um tu para chamar.
Pode a teimosia das divindades cegar-te
pode impedir de ver os cristais tão límpidos
que mostram o imenso deserto que és.
É que não basta
o desprendimento em nome dos outros;
nem esconder o altruísmo na comedida celebração;
ou simular o zénite de ti pelo aluvião
que semeias nos outros.
Enquanto não fores deus para ti mesmo
as traves da generosidade deificada
serão apenas lodaçal que te aprisiona:
ao que queres que os outros sejam
sem que revires os olhos
e cures do teu castelo.

Podes teimar:
mas aposto que lá fundo,
no mais fundo de ti
– onde ainda espreita um laivo de pessoalidade –
te cansaste de ser um deus.

1.3.07

Sitiado

As pernas trémulas calcam as folhas húmidas
avançam a medo entre a escuridão
as mãos tacteiam entre os muros frios
do labirinto.

Tropeçava em cadeiras derrubadas;
houvesse uma centelha que fosse
pródiga a alumiar a saída
do labirinto.

Às tantas, sem saber se sonho ou matéria viva,
cambaleava entre os muros lisos
sensação de vogar em círculos
atraiçoado pelo labirinto.

Naquele sítio, todos os instantes são nocturnos
medonhos sussurros que descem sobre o ouvido
e agendam a masmorra que é a ameaça
labiríntica.

À entrada, despojado dos pertences
é nu que a saga prossegue
pisando os vidros partidos invisíveis
nas trevas do labirinto.

Diria que lá fora trovejam gargalhadas insanas
a audiência disforme no entretenimento
dos algozes dos corredores onde vagueia
o prisioneiro do labirinto.

Nas incontáveis encruzilhadas
o prisioneiro entrega-se na imensidão
de uma loucura trepidante
que pulsa nas veias do labirinto.

As lágrimas que verte,
lânguidos esforços das paredes inconfessáveis
do chão tingido com o sangue derramado dos pés cortados
na pujante asfixia do labirinto que se encerra.

A certa altura, o tecto parecia ser mais baixo.
Não era ilusão: o corpo rebaixava-se
contorcia-se em espaços onde mal cabia dobrado
no cavernoso labirinto cortante.

O intrépido silêncio era um punhal doloroso:
só escutava o seu arfar aflitivo
e mais se condoía por ter franqueado
as convidativas portas do labirinto.

Havia apenas uma dúvida diante dos olhos:
quanto tempo levaria o pungente sacrifício,
ou, se acaso pesadelo era,
quanto tardava o balsâmico despertar.

14.2.07

O troar das palavras

As palavras
encerram os mistérios dos sentidos
que lhes queremos dar.
Umas vezes
palavras sofridas escondem lugares
onde só as emoções pertencem.
Outras vezes
destilam todo o império da racionalidade
– medidas ao milímetro,
uma esquadria que roça a perfeição.
E, todavia,
quando regressamos às palavras entronizadas
apetece tudo refazer,
como se o autor vestisse outra personalidade.

Flúem, as palavras;
são como espíritos voláteis
acordam penhores das diferentes cores do mundo.
Destoam as palavras coloridas
quando o pesado céu cinzento desaba
sobre as nossas cabeças.
O refúgio
está nas palavras cheias de cor,
desmentindo o plúmbeo dia tristonho.
E dias há que amanhecem soalheiros
pulsa das veias uma vontade indómita de fugir
para as arcadas incolores,
encerrar a alma nos volúveis caminhos
onde o sol não chega a entrar.
Servimo-nos das palavras empedernidas
compomo-las com as variantes
que partem em demanda
de um arco-íris que rima com felicidade.

Temos as palavras que enchem a boca
e se desfazem contra a pele
na sua imensa vacuidade.
Usamo-las
convencidos que são a unção
da pródiga verve.
Ensaiamos textos obtusos
nos umbrais da poética sublime.
O adocicado travo que solfeja após a ardósia de letras
desmaia
quando no regresso a tais palavras
jorra a decrepitude do criador.
Como se o tempo futuro teimasse reconciliar-se
com o tempo passado;
como se alguém
tivesse tomado conta do corpo do criador,
renegando páginas dobradas pelo tempo.
No temor de revisitar as palavras escritas
as que ficam emolduradas como retratos imóveis,
intocáveis.
Sem revisitação caucionada.

Poderia ensaiar-se um outro campo de flores
onde vêm repousar as palavras gastas.
Gastas de apenas serem escritas.
Há o risco de serem banidas
se o criador a elas regressa.
Ou temperadas com especiarias que as adulteram.
E nem pela delicada coreografia das palavras escritas
o desassossego da perfeição inadiável
retoma a centelha da reescrita.
Sacrificada a genuína fluência das palavras,
assim que o pensamento esbraceja
contra uma dura parede de onde saltam
fantasmas da impureza.
Nem todos os campos de flores
seriam o bálsamo aquietador
para as palavras desgarradas
que eternizam a solidão selvática.

As palavras
são os seus próprios espinhos.
Arranham com dor
arrancam pedaços de carne quando aparecem
em sentidos não queridos pelo criador.
É uma traição,
intencional ou não,
ensanguenta os olhos cansados do escritor.
Ao menos
vinga a expiação interior
através das palavras que jorram,
ora lentas,
ora à velocidade estonteante,
nem sempre lúcidas.

O pior
é quando fermenta uma ideia,
uma imagem,
capturar a intensidade de um sentimento
e as palavras não encontram retrato.
Aí as palavras são o seu inimigo
uma masmorra que aprisiona o criador
entretecidos rudimentos no limbo das palavras.
Quase sempre excitante,
o juízo dos penhores das palavras
desprende-se das amarras,
de todas as amarras
que só a solidão da escrita consegue destruir.
É isso:
um acto de libertação
a sagração da solidão do arquitecto das palavras;
a comunhão com as palavras
que escorrem das teclas para o ecrã diante dos olhos.
A emancipação desse terrível ermo.
E o mergulho noutra tremenda solidão,
encerrada nas palavras que nunca morrem.

O encantamento transcende-nos:
são mais as palavras que os dias que vivemos.
Uma miríade inquietante
pelo horizonte que descobre sentidos insólitos
para o que dizemos e escrevemos.
Figuras de estilo
emprestam a volúpia às palavras.
Uma indecifrável codificação
arremete o escritor para o vórtice da solidão.
Ensaística, apenas,
ou um exercício de distanciamento do leitor.
Ou talvez não:
apenas a suprema libertação
de quem lê
palavras entregues aos sentidos diversos.
Nunca o destinatário será tão soberano da obra
na reescrita das palavras tratadas.

Há nesta indeterminação
uma prisão voluntária do guardião das palavras.
Ora
as retoma com agrado
ora
as renega num abortivo esboço
onde não resta
sequer
uma vírgula de indulgência.
O risco maior
do resgate das palavras já retidas no tempo:
a dor lancinante
regressar às palavras tomadas,
ou a dor maior
obnubilar as cicatrizes do corpo,
como se houvesse mister de refazer
os dias perdidos na embocadura do rio.

8.2.07

Momento Professor Doutor FG

O Professor Doutor acordou às sete da manhã
pôs o pé direito de fora e só depois o esquerdo
foi à sanita evacuar as urinas retidas no sono
olhou-se ao espelho e o que viu?
A magnificência
a jactante sabedoria
o altar dourado onde resguarda tanta ciência
um cérebro que armazena mais brilhantismo
que uma vintena de Doutores de embuste.
Demorou-se
longos minutos
na contemplação de si mesmo.
Extasiou-se na aproximação de cada poro
a facial expressão que jorra os sorrisos valiosos
que guarda só para si
tão valiosos
não podem ser desperdiçados nos incapazes
– todos os demais.
O Professor Doutor,
perdido em elucubrações do ego,
esvoaçou pelo pequeno-almoço
pela fatiota para o dia
pelo caminho até à casa da sabedoria.
A caminho
sentia os transeuntes fulminados com a sua aura.
A cada passo
aspergia os dotes singulares,
uma sabedoria ímpar.
Só ao alcance dos predestinados.
E tão predestinado era que cultivava a distância
não fosse a conversa contaminá-lo
com a prosápia dos Doutores da mula ruça.
No estertor da ciência
o Professor Doutor é penhor dos novos alvores
abalo telúrico que nada deixa intacto,
dúctil personagem com o dom de virar a página
– só os homens messiânicos foram agraciados com o dom.

Nunca as loas serão muitas
para a homenagem devida ao Professor Doutor.
Por nunca as palavras todas serem bastantes
no elogio perene do Professor Doutor.

Providencial e imensamente culto
pulsão obsessiva pela atenção que tanto carece
será motivo para acamar no divã do psiquiatra:
por onde tanto ego vagueia
insondáveis mistérios ou mente tortuosa
ardis militantes dos que se esticam em bicos dos pés.
Carecem da atenção os que,
na sua ausência,
da cepa torta jamais iriam.
Assim se hasteia
um vasto ego que se espraia do Porto até Tóquio,
a cada dia que passa se estende para a estratosfera
até colonizar (só para ele)
a lua cintilante
– cuja irradiação é a sua aura que trina aos nossos ouvidos.

É uma lição de uma singela,
mas densa,
página só.
O roteiro necessário para os outros Prof. Dr.
(que não merecem o extenso).
Há por aqui divindade, ao que parece,
e a pele estremece só de pensar
que algum dia a escadaria há-de ser tapete
dos pés doutos de sua excelência.
Que sejam marcados esses locais
de tanta sapiência ungida:
que os outros,
lentes ou discentes,
mas todos tementes,
nem ousem a centímetros pisar
o roteiro do senhor Professor Doutor
(já com direito a genuflexão,
a portagem devida pela invocação de seu nome):
indignos de se acercarem,
ao longe que seja,
de tamanha honraria.
Aos demais
neófitos ou provectos anciãos,
os dias todos refulgiram só por saber
que paredes-meias habita insigne figura.

31.1.07

E de repente, tudo estranho

Os dias de cansaço descobrem os espinhos da alma.
Os sentidos perdem o norte
espezinhada a bússola por um passo desastrado.
Desagradável sensação de estranheza
que toma conta das veias
do sangue volátil que parece estagnar
à espera
que regresse a banal normalidade.
Nesses dias
do triunfo da estranheza das coisas e das almas
as cores esbatem-se.
Regressa um antiquado filme a preto e branco.
Um solfejo frio;
mas não é o frio que vinga
nem a dolorosa tempestade que corrói os ossos.
Apenas o abúlico despertar
para as caras desconhecidas
a começar pela própria.


As frases dos livros parecem desarticuladas.
Os animais, comportamentos erráticos.
Os óculos embaciados iludem a seca imagem
que desliza diante da vista.
Havia também chuva,
sem nuvens carregadas que pressagiam precipitação.
Ignoram-se as pessoas queridas
– a abismal rotina muda a condição:
já são de há muito queridas e não carecem afectos.
Sabe-se o errado
mas um poderoso turbilhão empurra
para onde não queremos ir.
Fazemos o que não queremos,
compungida laceração da carne.
Os dedos apertam-se e não se sente nada.
As mãos enrugam-se nos cabelos frios
compondo a melena desgrenhada.
Ao olhar no espelho
a melena teima, descomposta.
Os dedos passearam pelos cabelos em vão.
Os alimentos perderam o sabor.
A água já não mata a sede.
As águas dos rios,
dos lagos,
dos mares
adormeceram num protesto
pelo absurdo que grita a cada instante.
Os olhos percorrem o mapa da estranheza
e não querem perder-se no sono,
nem na contemplação dos sonhos de outrora.

O cansaço consome até a vontade de dormir.
De todos os lados
pessoas que erram sem destino
autómatos em personalidade esvaída.
Dão passos maquinais,
trazem rostos inexpressivos
os lábios cerrados
a respiração meticulosamente compassada.
Comandados por uma pulsão guerreira
evitam o contacto com os demais
que envergam roupas negras
e prosseguem um caminho interminável,
rumo ao vazio.

Em toda esta estranheza as ruas estavam desertas.
Entregues só às pessoas que persistiam
numa romaria insólita,
na indiferenciação do vestuário.
Quem sabe,
na indiferenciação dos vultos anódinos
que perseguiam as suas sombras.
Perdidos os limites das coisas,
desapossados do saber,
cognatos de uma lúcida loucura.
Teriam perdido tudo:
as memórias
o passado
as pertenças
afectos.
Vagueavam
na insolência dos monstros emparelhados
com a ensandecida janela.
Alguns de cigarro na mão,
levando-o à boca e simulando tufos de fumo,
coreografia espúria pelo cigarro apagado.
Tudo encenado
nos passos trocados pelos eternos transeuntes.
Eles também desconhecedores do descanso,
dantes balsâmico.

Um enxame de gente apinhava as grandes cidades.
Vinham dos campos,
das vilas
e cidades pequenas,
dos dormitórios
onde já não havia sono a cumprir.
Amontoados na cidade,
demorando-se nas avenidas largas
onde ainda não se atropelavam.
Alguns metiam-se pelas ruelas perdidas
por becos de onde a turba havia furtado
o sinal de rua sem saída.
Ao verem que a rua terminava num alto muro
estancavam a marcha e ali ficavam,
horas e dias,
a olhar para o alto.
Sabiam
que o porvir era do lado de lá do muro,
nem que fosse um estéril baldio.
Tomados por uma doentia inércia,
não conseguiam
(ou não queriam?)
sair do estagnante dilema.

Os dias corriam o seu sentido
com os ponteiros do relógio acertados
para a marcha convencionada.
Os dias seguiam-se às horas acumuladas.
No entanto,
os corpos pareciam ter hibernado.
As unhas não cresciam
os cabelos dispensavam escanhoamento
a pele permanecia fresca,
não se ressentia do banho ausente.
Era um tempo traiçoeiro.
O condão de decepar os conflitos,
no inexistente relacionamento.
Um tempo traiçoeiro:
na ilusão dos corpos em agnosia,
a crença que a velhice jamais chegaria.

Desengano.
Os ponteiros do relógio só pareciam imortalizados,
só então uma ilusão do olhar.
Quando dessem conta,
e voltassem a passear no espelho,
notariam todas as rugas marcadas,
os cabelos brancos ou as calvícies fátuas,
os olhos cansados que já não viam com nitidez.
Só então
os corpos se desprendiam da letargia,
do tempo amordaçado.
Todo o tempo,
entregues nos traiçoeiros braços
de um fariseu da eternidade.
A estranheza era tanta
que nem as promessas de perenidade
hasteavam as metódicas tergiversações.

Ao despertar da maresia abúlica
a dolorosa visão do fim
do outro lado da rua que pendia,
atravessada.

23.1.07

Coreografia dos desalinhados

Espartilhos tortuosos
deixam-te agrilhoado aos teus antípodas.
Espinhos que dilaceram os pés
por todas as pedras pontiagudas que calcorreias.
Uma mordaça que cala espontaneidade
fabrica os artifícios que te exigem.
Deixas de ser o que és por dentro
transformas-te em volátil matéria
apenas uma capa sedosa (mas inerte)
a que te habituas.

Olharás sempre em teu redor:
estuda comportamentos
discursos
hábitos
costumes;
e gestos, muitos gestos.
Há sempre um trilho fácil
a acomodação ao sentir geral
embarcar na maré fluente;
ou a teimosa de seres o que és
matéria genuína
cabeça pensante
a flamante força que pulsa nas tuas veias
pernas desimpedidas para irem por onde queres
gestos não estudados
e os dedos que tocam no incandescente incómodo.

A alternativa
entre o caminho linear,
ainda que contrário à tua natureza;
e as estradas sinuosas
tão ásperas de percorrer
e, contudo, balsâmicas:
hão-de ser caminhos que descobres
caminhos feitos por ti
ou os atalhos esparsamente frequentados.

De nada vale a consciência
quando a maré dominante a aquieta.
Cabe-te estar vigilante
conter os subtis atentados à indisponibilidade
que te prostram
manietado
perante o espírito domesticado.
Resta o passo firme
irromper contra o furioso vento que sopra de frente
voltar por sentidos proibidos
dizer as palavras incómodas.
Sem a ousadia
de querer mudar os outros
ou as coisas que nos destoam.
Só tens um mister:
fiel ao que quiseste ser.

O dilema há-de rondar, fantasma ameaçador:
será a teimosia
irreflectida banalização da diferença?
O que teimas ser
é o que sempre aspiraste ser?
À medida que adormeces
atormentado pela dúvida
ao menos vinga o discernimento
de haver lugar à dúvida.

18.1.07

Da paradoxal dor

Coreografia incindível,
os corpos que buscam na dor
alívio da tranquilidade perene.
Receiam a dor
como a alterosa vaga que se anuncia ao longe
e vem embater,
com fragor,
no céu-da-boca que se lamenta.

A dor é carpida em silêncio
no recolhimento dos altos mastros
que semeiam lancinantes farpas;
percorrem o corpo todo
são a sua manta coberta de espinhos
onde o corpo recrudesce sofrimento.
Espalham-se chamas demoníacas
espetam archotes de uma dor arguida, intensa
gemidos que força nenhuma consegue reprimir.

A dor
antítese do corpo de bem consigo;
e, contudo,
há quem a venere em segredo
a ambivalente espera que ela tarde
e o secreto desejo que espreite à janela.
Aquelas horas de agonia
corpo contorcido pela temerária dor
são também santuário de regeneração:
a emboscada do suave instante da dor repelida.

Então a dor atinge o auge:
quando vai em debandada em visita de outro corpo.
A recompensa da torturante dor
é a maresia exaltante da sua ausência.
Só pelas dores da dor
fermentam os amores pela antítese da dor.
A ciência dos sentidos vem em demanda:
só há aprumo no sagrado
quando o seu oposto derramou agruras ideais.

Alguns entregam-se
na viciante dependência da dor,
droga anti-morfina.
Sensações que se misturam
e um novo equinócio de valores.
Dizem os sapientes:
as dependências são doentias;
por fácil ser ajuizar outrem
fazem cátedra
quando mergulham no interior dos outros.
Talvez a sua dor
– a maior das lancinantes dores –
seja essa:
não poderem viver dentro de outros corpos
não poderem viver as vidas alheias,
em vez das suas desinteressantes, triviais vidas.

10.1.07

Caleidoscópio

Há cores
que fingem a alegria dos dias fugidios.
Amores
que só valem por não serem vividos.
Pessoas que se cruzam,
rostos alegres
outros sofridos
outros apenas indiferentes.
As mãos esculpem o vento.
Há passos apressados
outros embriagados pela voragem que passa na tela.
Prospecções de destinos impossíveis de distinguir
veredas cansadas por onde os pés se ausentam.
E palavras,
todas as palavras convocadas para a orgia dos sentidos.
Atropelam-se, as palavras,
num rumorejo ensandecido;
vêm as palavras
com a sua energia transbordante
batem nas pálpebras,
são como choques eléctricos de quem,
desprevenido,
deslizou os dedos para a tomada.
As cores tingem o céu e as árvores
bafejam o ar que se respira.
Todas as cores,
as boas e as perturbantes,
sinfonia exaltante do lídimo existir.
Herméticas, numa paleta sedutora
ou misturadas no torpor de fantasias inquietas.
As cores casam-se com as palavras
arquitectam a estátua onde nos deitamos.
A estátua particular
a cara inigualável
os sentidos que diferem como frequências de rádio
uma variedade caleidoscópica
– a imensa riqueza, património genético da humanidade.
Descontam-se atropelos
ignoram-se dissimuladas personagens
e nem os vorazes precipícios perturbam
a serena dormência que apascenta
o mais alto que somos.
As palavras
na sua tremenda revoada
dançam ao vento
e contra o vento
como as pusermos à mercê dos desejos.
Afagam, acariciam, incomodam, violentam,
tragam os montes e vales que são a distância adversária;
as palavras compõem as cores
do caleidoscópio de nós mesmos
pasto onde esfaimados espíritos colhem nutriente.
Embatem no peito
e, pela dor que cimentam,
traduzem a beleza dos afogueados sentidos;
dos sentidos que se entregam à coreografia sublime:
abraços que falam mais alto
beijo singelo que colore dias tão plúmbeos.
No seu inquietante sossego
as cores e as palavras são um rio caudaloso
correndo rumo à foz.
Quem pode recusar
ser figurante deste fremente caleidoscópio?

3.1.07

Viagem numa estrela

O silvo do ar gélido sussurra-me aos ouvidos
como sou sentinela dos teus sonhos.
Prossigo
alado no vértice mais alto da estrela
fugindo das tormentas ao longe
onde vogam as nuvens acasteladas
– negras e assustadoras.

É nos braços da estrela que me entrego:
sabedora dos pontos cardeais
candeia por onde entram as coloridas avenidas.
Pela noite e pelo dia
(que o sono tarda em visitar-me)
vigio dos braços da estrela
os que erram sem destino
os que sobem ao alto do cavalo alado
e tragam águas desconhecidas
os que apenas querem o sossego de quatro paredes
e ainda
os que levitam a sofreguidão
e combatem o tempo inquieto
mais arrebatados que o tempo em si.

Cruzo os braços
na contemplação do espectáculo do mundo.
Nem o ar gélido
enregela a vontade de aspirar o zénite
trazer às minhas mãos o mundo
feito em minúscula bola.
Não é deus que me sinto
ou alucinação que aferroa o sono destemperado.
As palavras amontoadas em todos os idiomas,
uma amálgama inconfessável
inaudível.
Um pequeno ponto cintila na vastidão do mundo
que se espraia diante dos meus olhos:
uma pequena ilha onde me detenho
valiosa por todas as restantes ilhas que se passeiam.

É em ti que apetece demorar
reter a alvura da lua a resplandecer na tua face
dobrar os lençóis no teu sono destapado.
Quando cavalgo a estrela:
mil imagens de todos os quadrantes
perante uns olhos que se alimentam
dos teus olhos enormes e insaciáveis;
repouso nas melenas aloiradas que esvoaçam,
selvagens,
perfumadas pelo vento invernal;
não as imagens
mas os teus olhos,
as tuas mãos,
os lábios que beijam,
as gargalhadas musicais
a doçura da tua voz que brinca com as palavras
pastoreiam a tremenda posse de mim mesmo;
ao passear os meus dedos
pela tua pele acetinada
e tão imaculadamente branca.

Com as rédeas da estrela
sei-me sentinela do teu sossego.
No inverosímil,
mas verdadeiro,
tónico onde bebo as singelas gotas
que saciam a sede de existir.