31.7.16

#45

Nas margens encalhadas
entre dois sobressaltos
arde o peito num vulcão
aberto.

30.7.16

Forasteiro

Longe
e de mais para haver lucidez
no restolho que, ácido,
deixa o entardecer sitiado
num entorpecimento banal.
Longe dos dias sabidos
numa lente desfocada à frente das mãos
sem saber das palavras reprimidas
o sal do seu insentido.
Recolhendo das igrejas refrigeradas
um sal
para pavimentar os sobressaltos tugidos.
Meto as mãos na luz clara,
adoçando a lonjura com a baunilha
dos dois-passos-já-adiante
que é a nossa casa.

29.7.16

Impressões

Dá a impressão que o rio nada na corrente
trazendo o dia para fora da sua concha
tomando ânimo num copo de conhaque
no abrigo da esplanada.

O paquete circunstancial faz-se ao rio
trazendo as âncoras à mostra no casco
tomando o rio de amparo à espera do mar
no abrigo da cidade retratada no rio prateado.
       
Uma mulher só fuma cigarro atrás de cigarro
trazendo a tossiqueira em pano de fundo
tomando avidamente o cocktail
no abrigo do chapéu rombo.

Um turista ocidental procura a rua no mapa
trazendo nos preparos da mala projetos mil
tomando de empréstimo a língua arrevesada
no abrigo da paciência de um nativo.

Um cão adestrado responde às ordens do amo
trazendo o brinquedo na boca a tiracolo
tomando água fresca nas mãos do amo
no abrigo da sombra pensada pelo homem.

Um chinês jovem e distinto prega deus
trazendo ostensiva bíblia no regaço
tomando o tempo assoberbado dos incréus
no abrigo de uma paráfrase dos mandamentos.

Um dia arrastado no cenáculo do estio
trazendo uma miríade de promessas infecundas
tomando as rédeas dos ingénuos desprevenidos
no abrigo da provável loucura.

Dá a impressão que os gatos estão gastos
trazendo as mãos baças e as estrofes decadentes
tomando um arroio seco como manancial
no abrigo do porvir vazio.

28.7.16

#44

Um corso inteiro
deitado na fonte fresca
à espera do saque:
e eu juntava os dados
e deitava só os seis.

Incêndio

Em papiro à prova do tempo
escrita a carta de todas as cartas
o tremendo testemunho para memória futura
em linhas desenhadas a ouro
por entre intempéries frígidas
e searas mostrando a pele dura.

O papel deitado ao acaso
voando entre os ventos balizados
ancorado num arbusto seco,
ou errando entre as árvores sem dono
não se sabe se procurando destino
não se sabe se tomada por mãos algumas
que leia suas resoluções.

Datada
a carta tremendamente intempestiva
aluvião de segredos,
segredos a que se pode chamar segredos,
nunca por outros sabidos,
composição inquieta dos calendários
vindouros,
tabulando o pretérito de que se quer rasto:
favores rogados a outros
sem saber se os outros
à hora do deslacrar do papiro
taliões da vontade outra serão.

O papiro perfaz a viagem sem rumo
aterra num campo cheio de flores
a ser consumido pelo fogo.
A carta não tem vontade
nem pode a sua errância ajuizar vontade alguma:
ao deus-dará
abrindo-se de seu lacre
ao ser beijada pelos iniciais lampejos do fogo,
extingue-se, incensada.

Não se soube
se precedeu a extinção do autor seu.

As cinzas pereceram na fértil colheita do fogo
e nem as letras desenhadas nas linhas a ouro
ficaram para memória futura.

27.7.16

O paraíso não

Dei uma volta no paraíso
por onde há nuvens amorfas
e émulos de bailarinas a dormir,
artistas emudecidos
e palradores emasculados,
paisagens acetinadas
e vinhos dignos dos deuses,
praias sem areia
e framboesas sempre maduras,
e jurei que seria uma bandeira desaforada.

Todavia
era um sonho
apenas um sonho.
Imaterial.

Ao contrário dos guerreiros
a quem prometem setenta e sete virgens
não chamo a mim sonhos de tanta abundância
(nem acredito que haja delícia nessas delícias).
Dei uma volta no paraíso
ou talvez apenas
nos escombros de um convento clandestino
onde se aposta em jogos de casino
(ilegais)
por entre a densa nuvem de tabaco.
Julgavam alguns ser um paraíso
– como paraíso podia ser um restaurante gourmet
uma espingarda avariada
o dente de leão amigo
o simulacro de um harém
um poema cozido com perfume de flores.

Desfiz a volta ao paraíso.
Desfiz a desonra promitente dos sonhos.

Embarquei no navio novo
onde só pontuavam marinheiros diligentes
ascetas da sabedoria que importa.
Os marinheiros eram unânimes:
atiravam o dedo para o firmamento
enquanto formulavam a demanda:
“quem acredita num paraíso?”
ou, em sua reformulação:
“para que serve um paraíso?”
Era uma pergunta retórica.
Emudeci
em sinal de não resposta
logo entendida pelos marinheiros
como dupla negativa em resposta.

Quando desembarquei
senti um odor fétido
a subir das entranhas do cais
desde as águas paradas
onde o novo navio estava fundeado.
Não haveria prova melhor
da inexistência do paraíso.

(Mas sempre podiam reclamar
em defesa do paraíso
– ou dos paraísos que interessassem –
que os marinheiros fizeram batota
com as águas do cais.)

26.7.16

Work in progress

A areia movediça.
Não levanta jamais medos:
os segredos foram delidos
e os pés assentam nelas
como mastins esfaimados.
Devoram-se,
as areias movediças.
Extinguem-se os nevoeiros acesos
bolçando lava dos pântanos larvares.
Se havia estertor na praia noturna
quando a luz era ausente e os sumos nada
a grande centelha acesa deu caução
à aprendizagem maior:
percorridos os rochedos de anteparo,
no necessário tirocínio
contra os avassaladores fantasmas sem rosto,
sentiam-se cinco alqueires 
de terreno conquistado ao mar 
dantes medonho.
As espátulas cansadas
foram uma arte servil da grande proeza.
Estão gastas,
as artes rombas,
deixaram sua letra na placa que emoldurou
a proeza.
Agora,
que as janelas ficaram desempoeiradas
e todos os pássaros fazem escala 
no promontório,
já se anda a eito em chão liso
onde havia areias movediças.
Haverá lugares outros,
ermos,
em arremedos sombrios de névoa evaporada
das areias movediças outras.
É empreitada para diante:
o processo interminável 
que passa entre as gerações
até deixar o sublime olhar distante
num mapa firmado com os anéis-diamantes
que são lavra dos diligentes 
que não se derrotam.

25.7.16

Poetiza-me

Agarra-me o braço quente
prende-o à volta dos beijos carnudos
diz-me que serei teu lobo feroz
nas praias sem areia
nas luas que desembaciam o entardecer
com as mãos trémulas no espaço sem céu
com os dedos marcando a tinta rija o corpo
sem temor
sem apressamentos
sem capitular se não nas desregras que ditamos.

Eleva o braço quente
como se fosse tomar conta do sol
e dele bebesse a seiva toda
num profundo caule fervente sem modéstia
no arpejar contumaz que estilhaça as ameias
compondo estrofes ilhéus no corpo sedento
coreografando as pernas entrelaçadas
num vulcão desassisado
num sobressalto perfeito
num êxtase compassado.
                   
Toma o meu braço quente
os alinhavos de uma perfumada flor
diadema incrustado com pedras preciosas
pomar frondejante que asperge algidez
em contraponto com a febre sem esteios
dos corpos indomáveis em bafos desaustinados
em volteios mareados na mesa desemparelhada
sem temor
sem remorso
sem as traves amuradas dos tiranos.

E o meu braço quente em formidável torrente
em teu leito arregaçado recebido
justaposto à pele incensada tua
no apogeu soalheiro sucedâneo de levitação
antes do seu ocaso temporário
antes de guerreiro terçar as balsas do desejo
antes de reacender as candeias da estratosfera
sem se render
sem medrar na decadência
sem recusar a entrega próxima.

24.7.16

Tórrido

O jacarandá frondoso
hasteia a sombra
a dileta pele segunda que aplaca
o estio metido pelos poros.
Assobiariam andorinhas rampantes
não fosse o forno aberto a meio do dia.
As pessoas arrastam os corpos
pelas veredas vagarosas do dia.
Pedem aos jacarandás
que intercedam nas divindades
que aferroam o tempo que faz
– por acreditarem nos poderes dos jacarandás
por suplicarem a ajuda das divindades,
ou deve ser por as credenciarem.
Se olhassem
para o mercúrio de um termómetro
ser-lhes-ia levado ao entendimento
que não há divindades com dedo na meteorologia
não há intercessão das árvores inertes
nem porventura chegam às divindades
a não ser por projeção da incapacidade 
dos homens.
É neste estado
(de liquefação dos corpos e do resto)
que o esteta empoleirado no arco de granítico
proclama:
abriguem-se sob os jacarandás
se querem que o calor derreta o seu bastão.
E bebam
de tudo o que for possível
álcool de preferência
que, num ápice,
arrefecem em hibernação.

23.7.16

Torre bela

O arco melódico
entra no firmamento
sem supor franjas inertes
na tradução das inclinações serenas.
As pedras não estão encardidas:
todos os pés nelas passeantes
cuidaram de as tornar alvas
purificadas no desejo dos beijos
contumazes.

As pedras dançam
remexem-se
remoem com intensidade
os terramotos interiores
os que já tiveram tempo
e os que estiverem por vir.
É na torre bela
majestosa interpretação das almas maiores,
das almas que tudo compõem
com a prestidigitação dos singelos dedos,
que as paisagens se dilaceram
as lágrimas se enxugam em lenços vivos
os freios se libertam na magnífica orla da vida.
Na torre bela
onde a moeda que conta
é a fruição dos sentidos cunhados
nos mais preciosos metais
enfeitados com as flores macias
e com perfume embriagante.

Para
num êxtase
tudo se entregar ao altar
onde somos curadores da audácia
mestres na destreza
que é dobrar o braço ao risco
e às carantonhas que são imagem sombria
sem esteios terem,
porque não deixamos.

22.7.16

Dilemático

Um desfiladeiro sem baias
mesmo no epicentro de tudo
desafia o corpo leniente.
Os músculos apertados
berram o medo do precipício;
o desfiladeiro pode ser fatal
tamanha a altura da queda
se o corpo desajeitado
não for diligente.
Porém
o corpo pode ser prisioneiro
da letárgica indolência
se recusar o desafio do desfiladeiro.
É matar ou morrer
- atira o observador atento,
atraiçoado por uma desatenção:
na apoplexia do dilema
o corpo sabe
que é morrer, ou morrer.
Só não sabe quando chega primeiro.

21.7.16

Mãos arcaicas

As mãos cansadas ditam o suor
em erupções convulsivas.
As mãos debatem-se em suas rugas
são o espelho de um navio decadente
ocaso que espera pelo tempo devido.
As mãos velhas
protegem-se das arestas vivas
da convivência com as cinzas depostas
nos canteiros vazios.
Vulcões incandescentes
que degelam glaciares inteiros,
fogos ininterruptos que derrotam o torpor.
As mãos servis
abraçam a árvore centrípeta
cingem-se à cintura fina que espera
um abraço demorado
ou um beijo que levite.
As mãos com as rugas todas
são um mapa gasto na lassidão do papel
uma voz gutural e, todavia, em surdina
o plástico tornear das marés vivas
que teimam em adulterar as cores vivazes.
Mãos destas
em serena coreografia das palavras vitais
congraçam o desgaste do tempo.
Mãos cansadas e enrugadas
apaziguam o temor pelo tempo exíguo.
Colhem o sal do tempo
e transfiguram-no em casas sadias
retemperadoras
templos soalheiros à espera de quimeras.
E o mar todo
refugiado nas palmas das mãos.

20.7.16

Eureka

As bainhas da ideia
coziam-se com os ramos
das árvores primaveris.
Debatiam-se, as palavras
– as palavras particularmente certas –
no tojo florido das serranias altas.
Antepunham-se vozearias interiores
desafiando a alvura da ideia,
demónios na vez da contraprova precisa;
nos copos amarelos
a espuma da cerveja convocava
os repensares que tivessem carestia,
um chamamento aos olhos felinos
desembaciando a terra do pensamento.
Em linha
perfeitamente atirados por cima do ocaso
as fazendas translúcidas levantavam o véu
e os copos já despidos
celebravam os campos dourados
onde a ideia se mostrava,
ufana.

19.7.16

#43

Procuração a tinta-da-China
(indelével e sem mácula)
para não caucionar
retrocessos ou arrependimentos.

Descompromisso

O cobrador de promessas
amanheceu irado.
Tivera maus sonhos:
deixara de haver gente madraça
no respeito das promessas próprias.
Sabia.
de ciência certa,
da impossibilidade das pessoas,
das pessoas todas,
serem diligentes
no deve e haver das promessas.
Mesmo assim
o cobrador de promessas
estava com o coração a mil à hora
um aperto interior
que quase tirava a respiração.
O cobrador de promessas
continuava sem entender o temor:
não era preciso estudos
ou ser cientista com nitidez de análise
para extorquir aos autos da espécie
a mitomania sem remédio.
Pois se os da espécie
eram dignos
da mentira que sobre os próprios se abate,
que abutres julgaria o cobrador de promessas
estarem de atalaia ao seu alpendre?
Confessou
aos seus próprios fantasmas:
receava que a espécie tivesse uma epifania
e de repente,
sem exceção,
perdesse as rédeas da mentira
e acautelasse todas as promessas
com selo notarial;
temia
o cobrador de promessas
que a demissão rimasse
com a redenção da espécie.
O que o cobrador de promessas
não quis ver
é que as promessas só podem ser cobradas
por quem delas é autor.
Afinal
foi ao cobrador de promessas
que se deu um assalto dos vultos interiores,
os máximos julgadores das intenções,
das ações
e das omissões.

18.7.16

Sentinelas

Atravessamos as ruas de mãos dadas
o fardamento contra os atropelos
sem aviso.
Vamos ao encontro da âncora maior
onde deixamos o suor sem pesar
e ganhamos o tempo de volta.
Colhemos na pétala branca
o mapa de onde somos
e sabemos ser matéria que desconhecíamos.
Respiramos no fundo do desfiladeiro
as rochas duras sentidas nas mãos
nas ameias contra anjos fingidos.
Arranjamos as paredes cardadas
onde deitamos os corpos cansados
no ocaso que pratica a penumbra.
Não povoamos contrafações a eito
nem sequer como amostra
por sermos tutores do nosso devir.
Celebramos os esteios fundos
os cálices de onde bebemos
os lençóis cúmplices
os mastros irrefreáveis
o tempo que detemos em contemplação
as lágrimas que dão mote aos corpos 
entrelaçados
as feitorias de onde avistamos calmaria
as paisagens pintadas 
com a cor dos nossos nomes.
E concebemos,
pela plenitude que a nós vem
na avidez dos corpos inquietos,
a casa inteira de onde nos entronizamos
imperadores
com o selo do sol suado em sua solenidade.

16.7.16

Da minha janela

Da minha janela
a aurora que cicia os segredos.
Da minha janela
o vento húmido entrando
nos ossos.
Da minha janela
a paisagem fetiche devolve
o ardor em cadeiras arqueadas
sob o doce jugo do desejo.

Da minha janela
colho as flores balsâmicas
que vêm às mãos sedentas.
Da minha janela
deito o peito ao mundo
num relógio sem arestas
e proclamo a totalidade das coisas.
Da minha janela
deixo o tempo vagaroso
deixo-o ser um lago vistoso
onde o olhar se demora em contemplação
sem notar no desmaiar da luz.

Da minha janela
remoo os víveres maçadores
que memórias sem freio teimam
deitar no palco abraseado.
Da minha janela
povoo o porvir com pedaços de mel
e pinto as paredes com cores lunares.

Da minha janela
abro os braços inteiros.

#42

Não bebo as lágrimas
derramadas em fráguas íngremes
nem o sal transido
em léguas noturnas.

15.7.16

Tutelar

Um imenso poço de petróleo
onde as algas interiores se lavam
na impureza das lavas.
Apóstrofes indignadas levitam no calor
sem se saber se as mãos se apertam
ou se terçam num tear frio e redentor.
Ou, talvez,
tudo o que interessa é o cerzir das luzes
em estando os céus à espera de tempo.
Diziam-se:
ditados só para reforçar ideias
estrofes perdidas entre páginas sem rosto
palavras macias entre os dentes cerrados
preces avulsas entre paredes caiadas.
E então
abrindo as mãos
– como se estivessem prontas
para abraçar rimas sem rumo
e estrelas descidas ao chão
– cintilavam os olhos sequiosos,
as diletas personagens fruindo na imaginação,
e deitavam-se no palco sem pano
as imagens belas
as paisagens extravagantes
os caudais velozes
à espera de domar os impávidos escrutinadores
das almas.
Da lava funda
em fervente jato
o imundo petróleo que tudo purificava.

14.7.16

#41

Sabia de fonte segura
que gritos emudecidos ecoavam
na trovoada seca
enquanto dentro das casas
choravam de medo as paredes suadas.