30.4.23

#2765

Quem sabe do silo 

onde fermentam

as intenções?

29.4.23

#2764

Meias-tintas

não fazem

cabazes.

28.4.23

Escritura pública

Retém o rio com as mãos

espreita entre as veias

o rumor do vulcão.

 

Adia a noite

o simulacro do medo

entre montanhas retorcidas.

 

Cobre o rosto com o luar

dita para o areal

as angústias datadas.

 

Acorda do pesadelo fortuito

deixa-o fermentar na podridão

e agarra-te às páginas sem cinzas.

 

E diz ao amanhã

em segredo fechado por todas as chaves

que já o tratas por tu.

Injustiças indocumentadas (100)

Não se incense a primeira mão

que a segunda mão

é sempre melhor.

#2763

Cedo ao cedo

para que não seja

tarde.

27.4.23

Injustiças indocumentadas (99)

Melhor será não frequentar ginásios

para largas as costas não ficarem 

com todo o peso da culpa

nelas arqueado.

À semântica o que não é da semântica

A semântica

tem as costas largas.

Os figurões

dizem que dizem

e depois desdizem

para no terceiro episódio

desdizerem o que tinham desdito

sem que voltem ao estado primitivo

de quem disse o que disse.

E os figurões

alardeiam o enfado

de quem é posto à prova

como se fosse crime

e de lesa-majestade

remexer na podridão 

por suas excelências segregada.

Como clausura do assunto

endossam a fatura 

à semântica.

Pobre semântica.

#2762

Não se disfarcem as pedras

se elas asfaltam o dia.

26.4.23

Injustiças indocumentadas (98)

Estou admirado:

ainda

nenhum tutor da superioridade moral 

se cruzou com 

cruzes, 

canhoto.

Sem filtros

Não sei se ouvem

as vozes que se convocam

para o que houve no futuro. 

Por dentro dos bolsos

um terrível nada

feito de um amontoado de pessoas

a mais improvável véspera que se encena

no fingimento dos paradoxos. 

Não sei

se de mim houve

bondade;

participo as fragilidades 

que de mim deixam um retrato nu:

dessa nudez que é embaraço

procuro cortinas baças,

que não se veja para dentro. 

Arranco às notícias

sob tortura (se preciso for)

as mentiras que contam. 

Não preciso dessas mentiras 

– ainda por cima 

não são piedosas. 

Não preciso 

de um disfarce a cobrir o mundo. 

E talvez também seja dispensável

a cortina baça 

que esconde a minha nudez. 

Injustiças indocumentadas (97)

Reinvenção do dicionário:

um contratempo

vai contra o tempo

tem de ser 

a medida do seu adiamento. 

Injustiças indocumentadas (96)

A inteligência artificial

não é um eufemismo.

#2761

A alvorada

cala o silêncio

e o siso esconde-se

no exílio.

25.4.23

#2760

Contra as ideias feitas

o futuro está a ser escrito

no compasso do presente.

Injustiças indocumentadas (95)

Na ponta da língua

não cabe tanta ciência

como dizem.

24.4.23

Tropeçamos

Erva daninha roçada pelos pés envidraçados

e areias movediças ultrapassadas ao entardecer 

a vizinhança que fala em maiúsculas

e um leilão que merca arrependimentos

até

que sobra um nada só igualável 

ao maior dos desertos.

 

Nisto

um escafandro

e a noção de exílio com nome de flor

que as gravatas às cornucópias

e um bando de calvos que mentem 

até com os dentes que deixaram de ter

não tem maresia entre os pesadelos.

#2759

A lua resgatada

conta o mau verso 

da noite.

23.4.23

#2758

Um anão 

dança no meio da sala

e ninguém deita o olhar

nos gigantes que também

dançam.

 

[Às vezes, a metáfora de geopolítica]

22.4.23

Injustiças indocumentadas (94)

A tara da montanha

impede

que seja movida

pela fé.c

#2757

Feita a autópsia à lágrima corrompida

os peritos lavraram o auto:

era do sol pesaroso

derrotado 

pela chuva fora da estação.

21.4.23

Mosto capital

A fogueira crepita,

o único embaraço 

ao silêncio. 

 

O vinho voraz

deitado no sangue

a combustão empenha-se 

nas palavras. 

 

O frio fundo

foi deposto

e lá fora o luar

serve-se da solidão. 

 

Oxalá tudo fosse

assim sereno

deserto 

sem a vozearia infinita

sem os arautos do fingimento

apenas

um punhado de exilados do dia

que, como gatos vadios,

celebram a cidade como ermo lugar. 

Injustiças indocumentadas (93)

Dos vira-casacas

não se digam cobras e lagartos

que vestir o casaco do lado do forro

não é grande estética

e conforto.

#2756

Às vezes

apetece o exílio

atrás de um eclipse.

20.4.23

Por suposto silogismo

Se desse mel houvesse escamas

seria como vírgulas a destempo

ou um eclipse a adiar a penumbra.

 

Se do forte não houvesse fala

seria como um voto sem antídoto

ou um peixe a recusar a água.

 

Se às cores se arrancasse a pele

seria como uma enseada insociável

ou um idioma sem tradução inventariada.

 

Se dos braços levitasse o silêncio

seria como baixar âncora longe do cais

ou uma espera interminável no avesso da luz.

 

Se o remédio fosse calar a voz

seria como aceitar a desliberdade

ou um punhal cravado no pensamento.

 

Se em estilhaços acabassem as prosápias

seria como aplaudir a armadilha das vésperas

ou a lotação com astronautas de contrafação.

#2755

A mentira desengonçada

a mentira militante

a mentira à mentira

a mentira

a.

19.4.23

Eletrocardiograma

O conciso dia

abriga-se da escuridão campeã

junta o vento razoável

e armadilha os precipícios esperados. 

Serão os nomes avulsos

os senhorios das almas desemparedadas

serão eles 

a fabricar as convulsões apátridas. 

Hoje

só quero ser herege de todas as verdades

repatriado para um lugar zero

onde tudo pode ser contado

desde o início. 

As nuvens foram desenhadas por esquilos

e só falta saber o nome do arquiteto. 

Talvez as nuvens escondam nomes

e os estendais onde ganham cor

esqueceram-se 

de se avivar com as cores precisas. 

O murmúrio ganha peso

dissolvendo o silêncio da madrugada. 

Nos cafés 

onde as pessoas se despedem do torpor

a louça frange, estridentemente:

é de propósito

que o dia depressa se apressa

e não há melhor cafeína 

que o estrondear das chávenas. 

Os sinais anestesiam a fala

a derradeira instância da inércia

obrigada à derrota 

pela roda-viva que não tarda. 

Vai começar a grande farsa.

Injustiças indocumentadas (92)

Sorte, e grande,

para contrariar

os jogos que se chamam

de azar.

#2754

Riscas

o sangue do dia

com um lápis a doer,

à espera da voz mestiçada.

18.4.23

Aqui não há rede de segurança

O céu temperamentalmente outonal

cospe sombras sobre o avesso da noite. 

Vozes efémeras casam-se com a distância

esmaecendo a caminho do silêncio. 

A cada minuto

há não-sei-quantos praticantes da mentira

não-sei-quantos mentores do passado

não convencidos que o tempo segue para o futuro

não-sei-quantos mortos nas estradas

não-sei-quantos embriões logrados 

no sexo interrompido. 

As páginas dos livros incendeiam o vento

enquanto esperam

que a noite recupere o seu lugar. 

Alguém diz

tenho medo dos sonhos

tenho medo

que pressintam o pesadelo 

em que se torna

a vida. 

As pessoas querem o seu exílio

por fora do perímetro puído que as expropria. 

Querem

um futuro de poesia

em vez do pesadelo contínuo

através das assinaturas de jornais

e noticiários televisivos e seus ademanes 

– profetas da malquerença

e oráculos de utopia. 

#2753

“De”

pela parte

da mãe

ou do pai?

 

[Sociologia avant la lettre...]

Injustiças indocumentadas (91)

Matar o tempo

(dizem)

a tempo do tempo

falsamente imorredoiro.

#2752

Os dedos

como raízes

bebem na maré

enquanto se prometem

florestas protegidas.

17.4.23

Noruega! (Súplica)

Dezassete de abril

trinta graus centígrados

e ainda mal a tarde 

alvorou.

Mau, tempo

que mau tempo.

Sondagem

A hipótese

não se rende

com duas palavras meigas

nem se entrega

nos braços de um sacerdote 

sem remorsos

a menos que seja convencida

que é um desacontecimento. 

 

Todas as lápides

não podem tanto

como a gramática da pele

que se tatua de palavras fortes

e dá ao corpo as catedrais possíveis

onde se convoca uma arca de flores

a amostra da Primavera

que encena a sua exuberância. 

 

No resto do tempo

as hipóteses 

somam-se à toalha da mesa. 

#2751

O leiloeiro 

não desistiu de encontrar 

quem dá menos.

Injustiças indocumentadas (90)

Há o rei disto 

o rei daquilo

e o rei daqueloutro

só pode ser 

uma monarquia interrompida.

16.4.23

Didascália

Emparedado pela memória

como se os remos

arrumassem a maré contrária

e tudo no dia 

fosse a simetria do esperado.

 

As flores deitadas nas jarras

ficavam para memória futura:

 

logo que as pétalas ficassem maduras

e o embaraço 

se congeminasse na eira

os relógios dariam voltas atrás

e a inveja do futuro seria a rua deserta

aquele lugar a que ninguém ia

 

nem que governos ciosos 

malbaratassem

subsídios inúteis.

 

Emparedado pela memória

na intuição dos dias

devorados em rapsódias circundantes

a pele ateada no areal

abraçada ao sol ecuménico.

E um instante que se demora

à espera que o futuro 

seja um juramento.

#2750

Falavam de redenção.

Recusava.

Não estava moribundo.

15.4.23

#2749

O membro do governo 

faz as perguntas

e, com diligência inexcedível,

redige as respostas.

A Filosofia 

devia ser cancelada.

#2748

[Derivação – ou consequência – do #2747]

 

Incumbência:

instruir os editores

para mearem as páginas:

numa metade o texto original

na outra as luzes em dádiva ao leitor.

#2747

Termos 

em que temos os tempos

da linguagem em fora-de-jogo.

#2746

Encurralado

entre o deserto ermo

e a metrópole hermafrodita,

o precipício a estalar na boca

a qualquer momento.

14.4.23

As bocas que dança com os nomes

São as bocas 

que dizem os nomes.

E os nomes

ensinam as bocas.

As palavras são mediadoras

a ponte entre os nomes e as bocas

que sem as bocas 

os nomes ficam sufragados pelo silêncio

e sem os nomes

as bocas não sabem de que terra são.

Do silêncio não se diga

que impede os nomes:

todos os nomes não deixam de ser

se o silêncio for instalação duradoura.

Uns nomes têm palco

e outros não:

não se ofendam os mártires da igualdade,

uns nomes têm palco

falam com as suas bocas

há bocas outras a falar de si;

outros nomes vivem do anonimato

as suas bocas falam

não há quem nomes que ouçam

e mais nenhuma boca recita os seus nomes.

As bocas todas deviam ensinar

aos nomes sem exceção

que a miragem da igualdade

devia ser metida 

em museu a preceito.

Injustiças indocumentadas (89)

Alto Douro.

Alto Douro.

 

[Para ser lida, a segunda estrofe, “Altooo Douro”]

#2745

De astronauta disfarçado

meteu as mãos ao barro

esculpiu a sua própria lua

e partiu rumo ao exílio.

13.4.23

Jogo quase olímpico

Epicentro;

as furnas levitam o magma 

das almas sem paradeiro.

 

As folhas das árvores

derruídas pelo Outono

apreciam o ocaso

o fusível para as cores adulteradas

em movimentos desorganizados

de sindicatos sem certidão.

 

Diz-se

outra vez

sem saber se é por recusa

ou como hospedeiro da rotina

sem sequer intimidar 

os diseurs.

Abandona-se o lugar

deixado vago aos bancos ausentes

os bancos que podiam ser de bancos

se ainda houvesse jardins.

 

A matéria viva

toma conta do sol

fermenta a carne incindível

demorada no crepúsculo efémero.

Os cardumes pressentem-se

o mar é a sua morada

e não há pesqueiros no perímetro

nem um matança no fio do horizonte.

O ultraje

é afim do arrependimento

não se pode cativar a hipocrisia nos outros

sem cair na indigência

de não se reconhecer hipócrita.

 

O sal tempera as cicatrizes

põe as feridas à prova.

Não é provação à medida

ou à desmedida encomendada:

o sal

é a alma mater das cicatrizes

o incentivo

para tantos serem mineiros.

De todas

a pele de pêssego

cobra os impostos diferidos

e sabe-se

é a exemplar seda que cobre os corpos.

 

Na véspera

o medo era apenas

uma intendência.

Fingia-se não saber 

a linguagem do medo

fingiam-se

exílios em grutas sem mapa

em vez de almocreves desossados

irrompendo contra as palavras párias.

 

Era assíduo ouvir

por vezes

como se dizer 

por vezes

fosse a promessa que faltava

para colorir os dias vindouros.

Se houvesse

um matadouro dos lugares-comuns

não seriam de sangue

os seus vestígios.

Mas não haveria operários,

ou uma autofagia dilacerante 

cortaria tudo a eito

em pequenos estilhaços

de nós sobrando um ermo infecundo;

o precipício habilitado

para as vias de extinção.

 

Formulário coloquial:

aceitam-se a concurso

todas as fragilidades

as inventariadas 

e as que esperam 

em reserva;

num concurso de males

vence o que for de menor

estatura.

#2744

Decreto

o objeto secreto

como remédio direto.

12.4.23

Sindicância

Oxalá sejam astutas

as mãos que mineram 

os pesares. 

Não são as constelações

que nos dão de comer

nem se diga o mesmo

das inválidas especulações

que não passam de especulações. 

É por um rio sinuoso

que se mete o caminho afora:

não nos intimidamos

com o caudal que apressado segue

como se a foz fugisse

açambarcada pelo rio maior

açambarcada pelo ontem que não se repete. 

Os desfiladeiros 

fazem lembrar os sobressaltos

a matéria que dá congruência a tudo 

– a totalidade só se preenche

ao ser levitada pela incongruência. 

Não é a intimidação que nos trava. 

O rio demora-se

e o dó que o dia tem apressa-se 

em extinção. 

Não queremos 

que a noite seja. 

Não queremos 

que sejam as sombras a tornar-se gramática

e que as árvores sejam meros vultos

atiradas contra as margens que se estreitam

à medida do medo que se alimenta

nas veias transparentes. 

Ou então

procuramos exílio na noite

o necessário e temporário exílio

para não sermos vítimas da noite 

que se não vê. 

Escrevemos na lembrança do sono:

a manhã 

há de trazer a foz do rio

mais cedo do que tarde. 

Prosseguimos no sonho:

as folhas molhadas caem sobre a pele

derruídas pelo vento que dança com a noite. 

A pele diz o sossego que o sono convoca

na indiferença pelo ciciar do vento

arrumando o medo para uma nesga da memória. 

Continuamos a sonhar:

os modos contrafeitos nos usos sociais

os fingimentos que aplanam as montanhas

o cárcere interior que adultera a vontade

a miragem que enfeita o entardecer

o torpor que não rima com indolência

a noite consecutiva

apenas uma das muitas vésperas

que se costuram no amontoado do tempo. 

E já não sabemos

distinguir o sono do sonho e do resto

como se a ordem da consciência 

tivesse sido raptada pela fragilidade. 

Irrompemos

com os primeiros sinais de claridade. 

O rio ausentou-se. 

A floresta foi deposta. 

O dia nasceu sem o castigo das nuvens. 

O vento calou-se

cansado da boémia da noite. 

E nós

continuamos a demanda

uma foz qualquer

que seja o começo de outra partida. 

#2743

Rasgo

se preciso for

as palavras 

pela sua inteira parte.

11.4.23

#2742

 

Afinal

deus

é um bidon.

Tanque de combate (ou: a alegoria desbeligerante)

Nunca tive um oceano na boca.

Nunca tive os olhos tatuados.

Nunca tive mágoas por idioma.

Nunca tive aparatos nem comendas.

Nunca tive o desassombro do orgulho.

Nunca tive migrações cevadas no dorso.

Nunca tive sortilégios em pautas adornadas.

Nunca tive preces nem quimeras.

Nunca tive o arnês por gramática.

Nunca tive a montanha russa nas veias.

Nunca tive a alquimia dos farsantes.

Nunca tive algemas em vez de perímetro.

Nunca tive a lua em partitura hermenêutica.

Nunca tive a generosidade dos déspotas. 

Nunca tive o açor no ponto de mira.

Nunca tive fortificações encenadas.

Nunca tive arsenais de estultícia

 

(ou a estultícia de arsenais).

 

Nunca tive a baía perene.

Nunca tive de embainhar o futuro.

Nunca tive a cortesia dos diplomatas.

Nunca tive a heresia da hipocrisia.

Nunca tive de meter ferro e fogo no silêncio.

Nunca tive o empréstimo de um epifania.

Nunca tive de arrendar hipérboles.

Nunca tive de amesendar em urbes infames.

Nunca tive de costurar as feridas incensadas.

Nunca tive de mentir às mentiras.

Nunca tive de servir extáticos anciãos.

Nunca tive de atropelar a angústia.

Nunca tive de errar num labirinto.

Nunca tive amoras nas manhãs húmidas.

Nunca tive o passaporte do ocaso.

Nunca tive a chave de navios insubmissos.

Nunca tive a esmeralda sufragada em poesia.

Nunca tive disfarces do disfarce concêntrico.

Nunca tive medo da liberdade.

Nunca tive o penhor das almas sitiadas.

Nunca tive certezas sobre as dúvidas.

Nunca tive dúvidas a não ser sobre as dúvidas.

Nunca tive interrogações órfãs.

 

Tirando 

tudo isso 

que nunca tive

sou tudo 

por dentro

do que tive.

#2741

Como o navio

que invade a tempestade,

o dia que nasce

à espera de vésperas.

10.4.23

À parte da pátria que parte

À pátria que a pariu

a pútrida pátria

que se parte 

no presidiário partido.

À pátria putrefacta

penhor do pequeno possível 

pináculo da proverbial purga

onde se procrastina o porvir

para ser povoado por um punhado.

À pátria perdida no piolho pior

pústula e pérfida, 

possuída por pelintras não probos,

proclamo

por patrocínio em parte incerta

a apátrida pulsação que me percorre

em parte 

por seres parte da perversa porta

que se opõe à paciência

em parte

por seres pusilânime

na posse que prometes

e não é tua parte.

#2740

Segregava

a Primavera ostensiva

no desabotoar das flores

feito o inventário do Inverno

sepultadas as chaves da hibernação. 

9.4.23

Taberna dos beócios

Antes confundir

concelho com conselho

do que LCD com LSD.

 

(Ou vice-versa,

que agora a dúvida

falou mais alto.)

#2739

Do dia estrénuo

ao formulário do medo

um roda inteira do mundo.

8.4.23

#2738

De toda esta terra 

aquém de si mesma

quanta é 

a contrafação do sangue?

7.4.23

#2737

A claridade vacila

à medida da voz trémula

que se levanta 

a jeito do entardecer.

6.4.23

Injustiças indocumentadas (88)

Anagramas 

com elevado viés 

incluído:

left e felt.

Manifestação

Dou à boca as palavras cãs

onde sobem os socalcos

até serem o mais alto trono

no promontório geodésico

onde tudo se oferece 

no estuário do olhar.

 

Deixo outras palavras 

não mudáveis

serem a cintura da tarde.

Ao mundo que não ouve

não digo que anda ao deus-dará,

digo o nada que ele que ele dispensa.

 

Se a matéria ampla for presságio

deixo as mãos no caudal do rio voraz

e nas pregas da idade apregoo as lições,

as estátuas perenes cingidas

no relógio sem nome.

E se na véspera forem todos mastins

escondo-me no espólio sem paradeiro

e deixo aos nomes 

a veia anónima que os consome

e os deixa utilmente anónimos.

 

Todo o sangue vazado

é mil oceanos coléricos

e os ossos

as cordilheiras submersas

as lápides que silenciam 

tantos segredos.

Injustiças indocumentadas (87)

“Estou-me nas tintas”,

disse,

sem (a)notar

os vapores tóxicos a que se expõe

quem está imerso em tintas.

#2736

Demitiu o arnês

e nomeou 

a montanha russa,

uma roda-viva 

em carne extasiada.

Injustiças indocumentadas (86)

O mantra,

não o manto.

5.4.23

Injustiças indocumentadas (85)

Caído o queixo,

o chão virado do avesso

adejando sobre a cabeça.

No dicionário, a Primavera

O mar

parecia o verniz do dia

como se fosse possível 

emoldurá-lo.

 

A maré 

cercava as rochas

um cerco de sal e linhagem

imperturbável.

 

O rio

queria saber do sal do mar

enxertando-o de imodéstia

e soberba.

 

A lua

era testemunha à distância

ainda mergulhada no seu sono

diurno.

 

A Primavera

já mais do que um esboço

deixava em legado as suas páginas

aveludadas.

#2735

Eis a alquimia da Primavera

os pássaros doidejando

como se fossem bardos

em coreografias coloridas.

4.4.23

Liturgia segundo os apóstatas avulsos

Dédalo das más intenções;

que se metam as palavras 

em marcha-atrás

e as más sejam boas intenções:

os espírito afidalgam-se

as solenidades são honradas

em vez de serem consumidas

pela banalidade da rotina.

Uma litania atravessa os claustros

onde se evoca a grandiosidade 

do futuro.

Testas-de-ferro diplomados

querem açaimes

querem

silêncios que evaporem as falas:

conspiram contra as vozes bastardas

vozes que estilhacem o bem adquirido

e a motivada mentira que atravessa 

os dias.

Em vez de uma bandeira

uma coroa 

auréola as cabeças sem tenência.

Há generais a mais

e solenidades a menos

e os festins

em devida preparação

não são de assinalar com ausência.