12.4.23

Sindicância

Oxalá sejam astutas

as mãos que mineram 

os pesares. 

Não são as constelações

que nos dão de comer

nem se diga o mesmo

das inválidas especulações

que não passam de especulações. 

É por um rio sinuoso

que se mete o caminho afora:

não nos intimidamos

com o caudal que apressado segue

como se a foz fugisse

açambarcada pelo rio maior

açambarcada pelo ontem que não se repete. 

Os desfiladeiros 

fazem lembrar os sobressaltos

a matéria que dá congruência a tudo 

– a totalidade só se preenche

ao ser levitada pela incongruência. 

Não é a intimidação que nos trava. 

O rio demora-se

e o dó que o dia tem apressa-se 

em extinção. 

Não queremos 

que a noite seja. 

Não queremos 

que sejam as sombras a tornar-se gramática

e que as árvores sejam meros vultos

atiradas contra as margens que se estreitam

à medida do medo que se alimenta

nas veias transparentes. 

Ou então

procuramos exílio na noite

o necessário e temporário exílio

para não sermos vítimas da noite 

que se não vê. 

Escrevemos na lembrança do sono:

a manhã 

há de trazer a foz do rio

mais cedo do que tarde. 

Prosseguimos no sonho:

as folhas molhadas caem sobre a pele

derruídas pelo vento que dança com a noite. 

A pele diz o sossego que o sono convoca

na indiferença pelo ciciar do vento

arrumando o medo para uma nesga da memória. 

Continuamos a sonhar:

os modos contrafeitos nos usos sociais

os fingimentos que aplanam as montanhas

o cárcere interior que adultera a vontade

a miragem que enfeita o entardecer

o torpor que não rima com indolência

a noite consecutiva

apenas uma das muitas vésperas

que se costuram no amontoado do tempo. 

E já não sabemos

distinguir o sono do sonho e do resto

como se a ordem da consciência 

tivesse sido raptada pela fragilidade. 

Irrompemos

com os primeiros sinais de claridade. 

O rio ausentou-se. 

A floresta foi deposta. 

O dia nasceu sem o castigo das nuvens. 

O vento calou-se

cansado da boémia da noite. 

E nós

continuamos a demanda

uma foz qualquer

que seja o começo de outra partida. 

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