30.6.19

Pensamentos TGV

Estou a tentar dormir.
Fecho os olhos.
Como quem fecha as janelas
ao pensamento.
E, todavia, 
o pensamento ferventa.
Os pensamentos passam à janela,
importunam-na.
Pensamentos mais rápidos
do que comboios de alta velocidade.
Tão velozes
que configuram uma mancha indistinta:
não consigo dizer
sobre o que são os pensamentos.
O sono postergado,
dedo apontado aos pensamentos
que continuam velozes
muito velozes
a importunar a tentativa de sono.
Não sei o que pensar.
Estava só a tentar dormir.

29.6.19

#1097

Abaixo o Verão.
A baixo do Verão.
Outono, ou Primavera.

28.6.19

Destino

A vigia constante
nas horas e minutos fulcrais
no tempo de resto banal
orquestrando as águas mansas
sem lugar a tempestades.

Uma certa normalidade

(como as pessoas gostam
de normalidade,
a norma sem dor).

Os olhos secos
desaprenderam as lágrimas.

Não é bom sinal.

A impassibilidade
é um disfarce 

– e os disfarces compulsam
o enredo fraudulento
as linhas enredadas na noite sem fim
um jogo de mentiras
que se mentem a si mesmo

(sem reporem o seu oposto).

#1096

Sound bite
as the sound
bites.

#1095

Sobre o vazio
derramo palavras despretensiosas
à espera dos juros.

27.6.19

Desembaixador

Não serviria para embaixador
de coisa nenhuma
se aos pergaminhos pedisse recomendação,
devolvida à procedência
por deserto destinatário. 

Não queria ser embaixador
de coisa alguma
por ficar a léguas da confiança validada
e ser apenas pária 
num cosmos de irredentismo. 

Não podia ser embaixador
de nada nem ninguém
por não jogar com a vontade
e à margem de mim ser palco.

#1094

A pele
em camadas de escamas. 
A palavra que muda
com o escamar a preceito.

26.6.19

Hoje ao longe

Esqueci-me de que é feito
o amanhã
e este lugar parece estranho
sem alguma vez dele me ter apartado
como se fosse a morada permanente
sem histórias para contar.
Não amuralhei as mãos
não as empenhei às forças gravitacionais.
Deixei que o corpo
falasse por mim
nas coreografias não dançadas
no restolho sério das visíveis luas de outrora.
Os lugares pareciam todos iguais.
Uma cortina transparente
e, todavia, infértil 
na empreitada de aclarar 
o significado dos lugares.
Talvez as mãos pudessem ser tecelãs
inventariar os fungos aceitáveis
as sementeiras promissoras
aos hotéis sem medíocre ornamentação
onde apenas contasse gente comum
gente desprovida de vaidade
sem saber do óculo flamejante que amplifica
suas imagens,
o logro ideal.
Atravesso o quarto
e sinto como se do outro lado
estivessem os antípodas do mar
e eu
militantemente cético
esbracejando como se ainda estivesse imerso.
Ah!
Se ao menos não estivesse nas mãos dos sonhos
podia apalavrar o que viesse ao púlpito da fala
e sabia que não há algemas 
a subtrair o equinócio da vontade.
Atravesso o quarto
de regresso ao ponto de partida
e não sinto o sal que tinge o mar
nem o corpo humedecido por suas águas.
A maresia não passa de um distante desejo,
a impossibilidade na ausência de faro.
Não é a noite medonhamente escura
que se atravessa no firmamento;
é o sonho não convidado
as grutas sem fim
a tempestade suicida
os olhos que capitulam ao pesar
as sombras arqueadas sobre o rosto melancólico
a aurora fracassada
o cais seco, lúgubre, abandonado
a impecável fartura que assombra a memória
os pés desalinhados na fronteira venal.
Os lugares voltavam de repente ao seu lugar.
A matéria fundente
chovia sobre lagos aclamados
e os motores ruidosos, indiferenciados,
emprestavam-se à tela que fugia do olhar.
Não temo as consequências do mundo.
Estou à sua altura
no âmago desta fragilidade sem adjetivos
penhor de mim mesmo
na contagem avulsa das páginas sem esquadria.
Fico à espera.
O relógio conta o tempo por mim.

#1093

Vou à medula
ao mais sombrio escondido
e ascendo com a claridade entronizada.

25.6.19

Dicionário

Embraio o medo
antes que venha a noite feérica
e os demónios tenham nela
sua madrugada altiva.
Nos cotovelos da chuva
tomo o avesso da poesia
e vejo como as quedas de água,
no catavento da primavera,
são a melodia sem reticências
o reparo não acintoso
dos equívocos que lobrigam nos outros.

Embraio o medo
sentindo o corta-vento na sua função
e sem o rosto álgido
tomo-me 
por comandante de um navio sem matrícula
que sulca mares sem marinheiros
em vez de ruas apinhadas.

Sem o medo embraiado
meto a velocidade máxima ao chegar à enseada
e aos olhos famintos vem 
o ocaso bucólico
o mantimento sublime que despoja fronteiras
a cabine aveludada onde se consuma o amor.

Já não preciso de dicionários
para converter em verbo capaz
as estrofes demenciais que pareciam
cães vadios fugindo de donos que não tiveram.

Agora
eu sou meu próprio dicionário.

#1092

(Variação do #1091)

Não por acaso
obediência
rima com decadência.

#1091

(O sonho do governo, qualquer um)

Hibernem os protestos
em lampejo de lucidez,
ou disfarce de obediência.

24.6.19

Recuar para a frente


Um sábio aperaltado
com as cores de um sortudo
escreve o oráculo 
com os dedos desenhando no ar.
Não é indiscutível:
poucos lhe conferem crédito

(e muitos mais são os que não se filiam
em sapiências entronizadas nuns,
assim autointitulados,
predestinados).

O sábio continua a desenhar o oráculo.
Em transe
sem ouvir sussurros
que sugerem certas palavras
para o oráculo 

– um sábio tem de estar acima das suspeitas.

Os seguidores do sábio
não têm paciência para esperar pelo porvir.
Odeiam surpresas.
São inveterados domadores do tempo

(ou estão convencidos de sê-lo)

com a ajuda do sábio.
Quando o futuro os desautoriza

(a eles e ao sábio de que são séquito)

acusam o futuro 
de não se ter sabido aconselhar
com o oráculo desenhado pelo sábio.

#1090

A culpa não se partilha.
Assume-se a sua quota-parte.

23.6.19

Tarte

A parte mais importante da tarte
esta que
destarte
se consome no porte do gesto
sem que se negue o conceito
de arte.

A parte mais importante da tarte
aquela que
numa parte
se emudece no requinte do mosto
sem que se recuse o gesto perfeito
que dela se reparte.

A parte mais importante da tarte
uma que 
à parte 
se sacia do visível que está exposto
e depressa chama o verbo ao peito
sem que do restante se descarte.

22.6.19

#1089

Mais notícias
da capital do desimpério:
más notícias
da descapital do império.

21.6.19

Bandeira sem haste

Hoje
era dia de vestimenta solene
mas já não sabia
da causa da celebração.
Há por aí uns papalvos
que se deixam ludibriar
e são carne para canhão de efusividades destas
(a que os doutrinadores mandam chamar
identidade,
ou pertença 
– o que, no derradeiro caso,
é tão sintomático como cunhar a expressão
“sujeito passivo” para a simbiose 
entre quem deve impostos
e quem deles é credor).
Uns cobradores de fraque
a reboque de antropológicos desejos
exsudam os alinhavos da “pertença”,
irrecusável linhagem
a quem se ofereça no altar da identidade
assim devolvida aos anais da pertença 
– a equimose que cobre a pele
bulimia não reconhecida
em que se dissolve a autêntica liberdade. 
Uma espécie de morcela
onde foi fumigado o “sentir pátrio”,
ou coisa que o valha,
e à bandeira seja devida honrosa continência
a apalavrada jura do esvaziamento da pessoa,
como é da conveniência dos bastardos
que são os diletos propagandistas 
da “pertença”.

Termos em que
uma teoria subiu à boca
no suco gástrico de semelhante acédia:
os valentes gurus da portugalização
os pressurosos meirinhos da pertença
são casos de imperativo divã psiquiátrico:
levaram quinquénios inteiros
subsumidos na pertença
e de tanto serem escafandros da pertença
já se confundem a si mesmos
como esfinges que sintetizam a pertença,
arremedos de sebastiânicas personagens
(sem o malogro em que se deitou
o eterno prometido).

Termos em que 
lavro publicamente um orgulho:
andei em turísticas funções
pela capital do império
e muitas foram as vezes que me interpelaram 
em estrangeiro idioma,
o que me fez assentar a argamassa
da inidentidade.
E se à identidade estou em falta
ausentam-se as credenciais da pertença,
no enfim lago idílico
onde se expõe toda a pessoa sem grilhetas.

#1088

Quem imagina
os custos
de ser um políptico?

20.6.19

#1087

Inunda-se
de poesia
esta paisagem mental.

Alvorada


(Alvorada rasgando o Tejo, com a ponte como pano de fundo)

Olho o céu
que apresenta nuvens esfarrapadas. 
A madrugada espartilha-se
na tímida luz, ainda baça,
que a desapodera. 
As nuvens esfarrapadas
estão levemente tingidas por um rubor,
ainda emaciado,
o pressentimento da manhã. 
Detenho-me fixamente
neste horizonte que transborda,
levemente,
a quimera que é o reavivar do dia. 
Sempre soube
que a aurora,
mesmo não sendo boreal,
é um singular enriquecimento. 

19.6.19

#1086

Contradição de termos (exemplo):
free shop.

18.6.19

Abóbada

Responde ao sussurro da lua
em páginas seguidas
por versos meticulosos
em gramática invulgar.

Responde ao vagar da maré
sem esquecer a cor da maresia
com os braços em honesta demanda
do amor inconfundível.

Responde ao rumorejar da manhã
em janelas adornadas pelo orvalho
no olhar ainda estremunhado
e desfaz o medo do dia restante.

Responde ao silenciado entardecer
enquanto a noite se liberta
e compõe as estrofes singulares
com o sangue vertido na caligrafia amestrada. 

#1085

Deste vento
o ciciar tangente
cortando raso a pele fria.

17.6.19

Sonho & pensamento

Às vezes, penso:
gostava de ser um jacarandá.
às vezes, sonho:
gostava de ser um jacarandá
no auge da fruição florida.
Gostava.
Penso
que sonhar não é danoso
e sonho
que pensar não é armadilha.
O jacarandá que eu gostava de ser
em soprando os sonhos disfarçados de pensamento
não tem o sonho de se tornar eu.
O jacarandá
embebido em seu profundo sonho matricial
não pensa o mesmo pensamento meu.
Talvez não consiga ser ojacarandá
mas ainda meto as costuras
na hipótese de ser comoo jacarandá
em sua florida fruição.
Ouço os violinos disfarçados de sonho
e os verbos que lhe dão corpo
em pensamentos ecoados na bruma tardia:
o jacarandá despido mostra o inverno
e eu só sonho
em pensamentos erráticos
com o seu primaveril estado.
Anoto a traição do pensamento ao sonho
(ou será o contrário?).
Anoto.
E sei que das minhas mãos
erguem-se pétalas azuladas
que em sonhos inclassificáveis
a mim vieram como dádiva do jacarandá escolhido.
Sei que das minhas mãos
o pensamento reescreve-se em sonhos
(ou será o contrário?)
E a matéria final 
não será o cais
apenas um apeadeiro
a porta da partida para a viagem seguinte.
À frente, 
haverá outro jacarandá à espera de flores;
à espera dos meus sonhos
corporizados pensamento.

#1084

Esta é a trincheira
agora,
no eloquente teatro
das coisas não perpétuas.

16.6.19

Vida

“Recusar o ruído do mundo”, 
in “O Sopro”, de Tiago Rodrigues, 
Teatro Nacional de S. João

Se em dúvida persistir:
a trovoada é da vida
a as trevas ficam à guarda da morte.

No silêncio
(como se fosse conventual)
ferventa o húmus em que amanhece
a vida
destroçando a cortina espessa que esconde
a morte.

O mundo inteiro
não precisa de ser aval
da vida sem freios;
o seu ruído é dano
e o silêncio sua antítese
recolhimento em forma de fortificação.

15.6.19

Seleção natural

(No 40.º aniversário de “Unknown Pleasures”, de Joy Division)

“There is no room for the weak.”

Quem determina a fraqueza:
os que são atirados 
para o pântano da fraqueza,
ou os que,
do altar de onde se dizem fortes,
se incumbem de dele excluir os fracos?
Não é seleção natural
(ou ficaria provado
que por ausência de justiça
deus não conhece lugar).
Hipótese a considerar:
que o alfabeto que serve de grelha
adulterado esteja
e os que fracos se admitem
são os que mais fortes se constituem.

#1083

O arranha-céus,
mas longe disso.

14.6.19

Profecia

Diziam
que as ruas estavam atapetadas
pela bonomia indiscutível
e os pressupostos enraizados
estilhaçaram-se num rumor demorado. 

Diziam
que as manhãs eram o ubere fértil
onde a pele falava com as divindades
e os verbos estéticos eram devolvidos
em paga. 

Não diziam
a aprazada maledicência
a tirania do fingimento
as máscaras em vez de rostos
a militância dos mastins que ferram o osso
exaurindo a carne potencial. 

Diziam
em vez disso
que se podia esperar pelo amanhã
sem medo de ter medo
no xadrez não gasto da vontade
a favor da maré 
que sussurrava na sombra da maresia. 

Diziam
categoricamente
as estrofes arrancadas das flores
à medida que o anoitecer limpava o dia
e o sol tomava seu descanso
nas costas do horizonte. 

Diziam
em apalavradas cortinas corridas
que não temos herança
a não ser os títulos da alma
o impecável escanhoar do dia
a matéria incomensurável
dedilhada em guitarras ancestrais
no ímpar ornamentar das páginas admitidas. 

Diziam
sem medo do medo
que seria uma litania não esconjurar os vultos
assisá-los no leito barroco
contra as manobras dos volúveis
em apeadeiros remotos. 

Diziam
o que se podia dizer
e até o que se julgava
ter ficado por dizer
na demencial embriaguez das palavras;
o teatro mais alto
onde até as mãos pequenas tocam o céu.

#1082

Metáfora para uma vida:
a multidão em sentido contrário
como maré caudalosa.

13.6.19

Lei de bronze

Tirando os tapetes
o chão em sua nudez
e os olhos desembaraçados de peias. 
Todas as ameias são um refúgio
e um refúgio acontece
quando se tem algo a esconder
ou quando grita ao ouvido
a necessidade de um esconderijo
contra os malefícios do exterior. 
Por isso,
as máscaras. 
Os fingimentos repetidos. 
A dissimulação,
um eufemismo adestrado pelos mitómanos. 
E quem os pode julgar
se a maresia insinua um universo homogéneo?
Não chega a ser contrabando;
no limite, 
um teatro imenso
desdobrado em palcos numerosos
e a função de ator transgredida
no papel que todos assumem. 
A bruma incendeia a lucidez
nos algoritmos espaçados que untam,
com matemática autoridade,
o fingimento que deixou de ser. 
Não se compõe o campo alisado
com sílabas destacadas no logro imperial;
os homens são o seu próprio covil
e não se importam,
não estão a cobro da anestesia
que não passa de pretexto para caucionar
o tão organizado caos
o imenso baile dos fingimentos. 
As ameias
são simples couraças
em que todos se protegem
das mentiras dos outros
e das que contam a si próprios.

#1081

Para ser “alto quadro”
que altura é a mínima?

#1080

Dedicado a quem lamenta
ter perdido o paradeiro do tempo:
não se pode perder
o que se não tem na mão.

12.6.19

Estroinas

Estas tremuras
no logótipo das mesuras
não rebaixam as tonturas.
Soubesse das agruras
dos valentes feitos miúras
em pleito com suas cesuras
e quem se importava com as coisas puras?
Talvez só as cavalgaduras
que desconfiam das coisas maduras
e só apreciam tempuras
em suas precoces cozeduras.
Agarram-se às faturas
sem tempo para as manhãs impuras
e deles não é o altar das ternuras.
E fogem das palavras duras
por medo de serem tomados pelas curas.

#1079

Dizer “dou de barato”
é uma entorse à teoria do valor
(o que é dado não tem preço).

11.6.19

Mosto

No leve rumor
da transparência
entre rostos seráficos
e bengalas perdidas na floresta:
não é ao acaso
a empreitada estimada;
o diafragma retesa-se
a respiração adia-se
falta algum oxigénio
e o raciocínio embotado pinta o cenário 
– ninguém sabe do seu paradeiro
e a geografia perdeu estima. 
Julgo que se trata
de uma amálgama desatenta
e a transparência 
é aspiração vertida para fora,
só para fora,
no beijo álgido 
que não deixa um estremecimento. 

Perguntem aos estorninhos
o que diz a sua lavra. 
Perguntem 
aos sacrificados
no óbice de suas falas.
Perguntem aos modernos gladiadores
que alimentam a energia que parece perene. 

Os nomes irmãos falam em uníssono
mesmo quando discordam.
Falam. 
O que parece traduzir-se em boa nova. 
Rompe-se a letargia. 
Reagem os obstetras de colóquios impensáveis. 
Os anátemas 
soçobram à violência do tempo
e é quando se descobre
a frivolidade da transparência. 

Eu sempre tive por desconfiáveis
os que se oferecem ao panteão das virtudes
ao trono suportado em “valores”, 
numa competição sem mecenas
apenas uma exibição de pós-aburguesamento
sem intervalo na crónica dos (bons) costumes. 
Eu sempre tive 
por nada confiáveis
os que em si mesmos conhecem
os lugarejos onde apascentam
a transparência.
Eu sempre tive por desconfiável
que tanto lustro seja aditivado
a um pergaminho que se deseja solar.

#1078

Acerto a fala
pelo meridiano rasurado
e a pauta alinha-se no ceptro esperado.

10.6.19

#1077

No ulmeiro fora do mapa
desdisse das mágoas
seus remédios.

Dança

Arranquei o sal aveludado
do teu corpo exposto.
Em troca
sublimei os faraós encantados
e o verbete do desejo saciado.
Aos nossos pés
depôs-se a noite testemunha.
Depois
a mão tocou num pedaço teu
e os relógios fecharam os olhos
no verbo intemporal
que dissemos em uníssono.