23.7.05

Um fado errante

Peito sangrado pelo estrépito das balas.
Não sofre:
a dor sobrepõe-se, altiva,
na maneira de ser estóica.
Reclama de si a bravura
que vem servida numa fantasiosa inocência.
A ingénua covardia de se entregar
às dores de parto do mundo
- uma leitura oblíqua das coisas e dos seres,
como se houvesse nascido para as chagas
de todos os males que nele repousam.

Teimoso
punha-se a jeito para as obscuras, lautas
conspirações dos espíritos malignos.
Condoía-se de si
no desejo de outros penarem por ele,
alma perdida
errante
desamparada
nas desventuras dos males maiores.
Desconhecia
que renegava os outros,
eles,
cansados da dor de si mesmo.
Mas insistia,
uma e mais vezes,
na aclamação da dor que o fustigava.

Vivia
dependente da comiseração alheia.
Tortuosas as veredas calcorreadas,
ignorância de vivências diferentes
- a alegria de celebrar a vida,
roteiro para renegar a taciturna forma
de ver as coisas e os seres.
Aos caídos,
entregue nas mãos de um destino infortunado,
ou palmilhando os pequenos passos
de um fundo abismo
- um abismo cravejado de facas afiadas
que o esventram, já ferido de morte.

Cada alvorada
um sacrifício indolor.
Não:
nem a luz alaranjada no horizonte,
ou o azul celeste que vem pintar o céu,
nem as pessoas que trajam um sorriso esperançoso,
ou a simples brisa que refresca a manhã
- nada, nada retempera a doentia forma de ser.
Entregue nos calabouços da aridez,
por ele mesmo edificados,
um circulo vicioso que embala uma vida
cinzenta
triste
enfadonha
carente.

O oxigénio das causas,
só uma ilusão.
Anestesiante fictício
que o acorrenta à acrimónia de outrora.
Prossegue
inane nas motivações do descaminho.
Entristecido e desconfiado do mundo:
Porque o mundo
(que ele edificou)
nunca
o recompensou com a sorte que
nunca
quis encontrar.

13.7.05

Maré baixa

Um imenso areal molhado,
despojos da água recolhida
na timidez da maré baixa.
Os seixos espalham-se, inertes.
Esperam nova viagem
na cólera das vagas alteradas
aprazadas para a praia mar.
Aqui e ali
restos do oceano vazadouro
de coisas muitas:
um pedaço de pau
uma garrafa desbotada
um brinquedo amputado
milhentas conchas minúsculas
outrora refúgios de crustáceos vivos.

No templo da maré baixa
a calmaria emproa-se.
Não há vento
nem ondas
apenas uma suave maresia
que entra na respiração
e limpa as angústias povoadas.
Na maré baixa
o sinédrio do espírito reanimado
que embolsa a quietude.

3.7.05

Frenéticas andorinhas

Andarilhos, sem parar,
voos que espalmam a vertigem
do espaço que consomem.
Cruzam-se no pontilhado
de voos desordenados.
Numa coreografia caótica,
regressam ao ninho
quando o cansaço beija a noite.
Nidificam no sossego da luz escura
que se apoderou.

Lá fora
os foliões da noite
entretêm-se entre lufadas de álcool
que anestesiam o espírito.
Não perturbam o sossego das andorinhas,
que se preparam para outro dia
de voos que são correrias desalmadas.
Quando a alvorada toma conta do horizonte
despertam para o dia renascido.
Como renascido está o piar
que se solta com o fulgor do dia.
É a vingança sobre os noctívagos
que salgam os vapores do álcool
no sono para a próxima noite destemperada.

Cá fora
as andorinhas fazem-se à vida:
incompreensível, frenética,
com o doce e rápido bater de asas,
um mergulho no abismo
que, de repente,
renova a harmonia do voo rasante.