24.7.06

Sinfonia da beleza intemporal

Que interessa?
Se os atacadores
se prendem aos sapatos
as cordas dos violinos em sintonia
o sol,
radioso,
irradia as frondosas fontes de luz
e todos os meridianos se tocam
fossem eles um íman
onde se dobra a humanidade.

Que interessa
vogar em nuvens de utopia
mergulhar nas águas límpidas
ou gritar de peito aberto
todos os afectos,
os amores ou os desamores
experiências férteis?

Que interessa
dar os passos que julgas necessários
palmilhar as pedras sangradas
pelo mar alvar?

Nada interessa
na câmara escura onde as imagens
se diluem no silêncio doído.

Nada interessa
por entre os espinhos cravados
nas mãos calejadas.
Se nem a calejada pele
resiste aos derrotados espinhos que a sangram.

Há-de chegar o momento
do murmúrio
que tudo revela.
Há-de então tudo interessar
até
as insignificâncias pintadas a carmim
as pedras disformes que fermentam o encanto
as paredes de gelo derretidas
escorrendo montanha abaixo.

Tudo,
tudo matéria-prima
do ósculo do universo,
a elegia sacramental
da embriaguez da vida

Tudo interessa.

19.7.06

O que te apetecer

Não te apetece
gritar
com as cores todas
que encontras na algibeira?

Não te apetece
fugir
dar aos remos
sem curar da maré nem da maresia?

Não te apetece
saltar
tecer pantominas circenses
no grito mais alto da alegria?

(Ou) não te apetece
emudecer
apenas emudecer
pela escuridão alojada na alma?

Não te apetece
olhar
de olhos bem esbugalhados
para pormenor nenhum escapar?

Não te apetece
dançar
mesmo as melodias mais estranhas
e as que se entranham nos poros?

Não te apetece
dormir
um pouco que seja
só para sonhares tão belo?

Não te apetece
mentir
cavar bem fundo na concha
que te protege dos açoites do mundo?

Não te apetece
zombar
de tudo e de todos
sem seres excepção à regra?

Não te apetece
procriar
no convencimento que a prole
é a exaltação do sublime que és?

Não te apetece
escrever
as palavras conhecidas e outras inventadas
para nelas te reinventares num ser adorável?

Não te apetece
endeusamento
gratificação pelos feitos
empertigamento de um ego reprimido?

Não te apetece (antes)
anonimato
as pétalas fechadas
de um perfume que te é exclusivo?

Não te apetece
viajar
demandar as quatro partidas do mundo
rejeitar o sedentarismo letal?

E não te apetece
o que não te apetece
tudo e mais alguma coisa
ao sabor dos dedos espontâneos que te batem na face?

18.7.06

Olhos quentes

Fonte de luz frondosa,
a lanterna que indica caminhos
ou a bússola imperdível.
Abraços afectuosos
lugares irrepreensíveis
onde apetece demorar
navegar na calmaria que eles transpõem.
A densidade do olhar
prende a respiração
imersa na sofreguidão dos olhos resplandecentes.
Neles
altar das coisas grandiosas
há um planalto sem fim onde se resguarda
a suprema tranquilidade.
Diria: as arcadas da temperança
o património da quietude
onde a bonança repousa.
Desses olhos quentes
exala o fio condutor da perenidade.
E nem quando a morte vier
hão-de deixar de ser quentes,
os olhos.
Imortalizados na memória
ou perpetuados nas sementeira colhida,
filhos altivos herdaram olhos tão quentes.
Capazes de tingir o gelo em água
nem icebergues gigantescos demovem
a chama acalentadora que neles cavalga.
Curam chagas maiores
com o sopro idílico que vertem,
uns olhos quentes singulares.
Tão singulares
que só apetece
neles demorar
a eternidade que for possível.

17.7.06

Domar a raiva (os perigos)

Acamar a letargia
enquanto o epicentro da raiva
ondeia no limar da demência.

Algures, do escuro,
há-de vir um raio de luz
a candeia acesa para o dilema.

Os lençóis bem dobrados
iludem o lodaçal que a letargia é,
remoinho donde não há arte para fuga.

No entanto, acetinados,
os lençóis onde a letargia aconchega
ali estão, apetecíveis.

Na convidativa forma dos acamados
camisa-de-forças sem retorno
ou cálice com a doce cicuta da prisão demorada.

A salvação, única,
na recusa do convite apetecível:
a impreterível tortura de sono.

É alto o risco:
da demissão do que nos habita
apoderado pela mansidão que nos dilui.

Põe-se a modorra ladainha
e jamais se liberta dos poros
dos tímpanos, da visão amansada.

Quando invadir as células cerebrais
e deitar mão do pensamento
somos apenas criaturas disformes, desapoderadas.

É imperativo declinar o venenoso convite
denunciar o fétido leito feito masmorra
pronunciar o livre arbítrio;

porque

no livre arbítrio
se consome a essência de todos os eu
todos, sem excepção, com direito a sê-lo.

12.7.06

A bondade dos deuses

Sacrificiais ritos,
não os corpos ungidos
com a benevolência divina;
corpos flagelados
corpos dilacerados pelas bombas
que ecoam a voz dos guardiães de um deus.
O sangue que escorre é o grito dos deuses
as metralhadoras e o terror
na voz dos deuses
ou pela voz dos que dizem falar por eles.

A interrogação:
e os deuses não são um imenso oceano de bondade?

As imagens do mundo
desnudam outra verdade,
impiedosa
cruel
martírio inacabado
impensável altar de sacrifícios
o ímpio odor da antítese do que são os deuses.

Estarão os deuses excomungados
pelos guardiães da zelosa ortodoxia
que clama em seu nome?
Serão ainda mais miragens
na boca apodrecida dos que usam violência
para vingarem o nome do deus supremo?

Na entrega desassombrada aos destinos divinos
o acto empenhado da ausência de si mesmo
deificação de uma imagem sem substância
e amesquinhamento dos dissidentes.
A morte,
quantas vezes.

Na cartilha do agnóstico
deus
entidade inexistente;
a fazer fé nas crenças alheias
sinónimo de uma benevolência infinita
simulacro de um celestial
prémio Nobel da paz.

Andamos todos enganados
mais os zelosos reitores das religiões
na enérgica demonstração de superioridade
do seu deus.
Ou deus é um embuste
conivente que é com as intolerâncias
as violências diversas
o sangue derramado
as vidas ceifadas em seu nome.

Se deus é a fonte da vida
como pode tolerar que em seu nome
mortos sejam tingidos
com as setas venenosas da sua doutrina?

11.7.06

Ecos perdidos

Do alto de um castelo alvar
o grito a pulmões abertos:
protesto sofrido
pelo desamor que milita
nas avenidas por onde nascem
espinhos que se cravam nos pés.

Ao vento
os ecos diluem-se nas serranias em redor;
lá ficam,
perdidas,
as sílabas gritadas
com a força de pulmões trinados.

Batem nas árvores e nas rochas,
as sílabas exangues de tanto uivarem,
e sabem que no seu repouso
nada fertilizam
– apenas o seu túmulo,
derradeiro,
a ensandecida rouquidão da voz
distante, cansada.
Uma enseada escondida
que só elas conhecem.

Revolvem as folhas húmidas
de uma noite fria.
Buscam um canto seco e quente
para nidificar.
Espera-as o nada
ou o tão elevado altar
onde se resguardam,
eternamente.


onde ninguém visita:
o seu sepulcro
a elegia das palavras perdidas
que podiam embelezar-se,
ganhar vida própria,
ascender ao patamar do património partilhado
pelo séquito de bebedores de palavras inebriantes.

Outro o seu destino:
fadadas para serem,
como milhões e milhões o são,
espúrias sílabas
só importantes para quem as soltou
– e só naquele momento de exaltação.

Sem poderem aspirar à grandeza intemporal
das palavras emolduradas
no lugar onde as coisas são eternas.

5.7.06

Efémera buganvília

Hiberna longo tempo
escondida das armadilhas do clima.
Longos meses só o verde da ramagem
árvore anónima, como tantas,
sem beleza que a distinga.

Entra o Julho.
Das bagas pendentes
irrompem uns tufos vermelhos.
A buganvília desperta da letargia duradoura
desfralda-se em vistosas flores carmim.
Se outrora a árvore permanecia anónima,
uma entre tantas,
agora que das suas ramagens
descem as flores imperiais
reina entra as demais
remete-as a espectadoras da sua beleza incomparável.

Tão bela
que as demais se acantonam em seu redor
num tributo que ela merece
pelos curtos dias em que mostra os tufos avermelhados.
São quinze curtos dias
de fuga da timidez invernal.
Quinze curtos dias
a passear o esplendor
que a faz ascender ao Olimpo do arvoredo.

Impossível passar ao lado dela
e não parar,
por uns instantes sequer,
na contemplação dos tufos garridos.
O sinal da efémera condição floral da buganvília.
Temente pela sua timidez,
ou temente pela morte futura
se por tempo demais desnudar os tufos carmim,
a buganvília rejeita o perene esplendor.

Oferta um curto tempo
para o êxtase da sua pujança colorida.
Depois,
tão depressa como despontaram,
os tufos envelhecem.
As cores engalanadas intimidam-se
e os tufos perdem a febril vivacidade
começam a tombar, subitamente apodrecidos,
jazendo no seu cemitério:
o chão abriga a copa da árvore.

A buganvília despede-se na sua curta aparição.
Promete engalanar-se quando passar um ano.
Refugia-se no seu castelo interior,
egoísta.
Ou então apenas o tempo para recuperar
das energias exangues de tanta cor irradiar
nos dias em que se desnudou.