31.7.23

Schnaps

O diretor abusava do schnaps

num lugar onde ninguém sabia

o que era o schnaps.

Mas gostavam 

que ele desse dois dedos de schnaps

pois ficava afável

deixava de deitar olhares de intrusão 

nas senhoras

deferia a eito

e contava histórias anedóticas

sobre um seu alter ego

que não assumia ser ele

porque talvez tivesse vergonha

dele próprio

fora das imediações do schnaps.

O diretor

tinha trejeitos de germanofilia

mas nunca tinha ido à Germânia

mas dizia ser perito

nas variedades conhecidas de schnaps.

O diretor

assoava-se convulsivamente

depois de beber schnaps.

Bebia schnaps

primeiro às escondidas

depois escancaradamente

precisava de um aditivo

para ser respeitado pelos que tutelava.

O schnaps ganhou fama

e, sem que se possa dizer em público,

muitos e secretos admiradores.

Injustiças indocumentadas (145)

Fervia

em pouca água

e “quase sempre”

a cem graus centígrados.

#2862

Um caudal sobressaltado

a sela amotinada

o dia 

que não fica por adiar.

30.7.23

#2861

O remorso

dispensa

correção monetária.

29.7.23

#2860

Atiradas as circunstâncias à vertigem

às mãos as flores audíveis.

28.7.23

M&M (no recato da ironia)

A mascote mastigada

amofina o mastro amanteigado

mantém-se miragem

dantes mosto medieval

um amanhecido mural

que amesquinha o marasmo.

A mascote mirífica

mendaz como musas amestradas

monta nas margens imóveis

mercando o mar almiscarado

na métrica malsã dos maestros

os que molham as mãos nos mastins

e medram na macilenta maçã

miando contra as murças 

que amaldiçoam os magos.

Injustiças indocumentadas (144)

A fina força

é uma força 

sem força

de tão delgada

o ser.

Injustiças indocumentadas (143)

Em prol

da prole.

#2859

Detesto detestar.

E isso

é detestável.

27.7.23

Analgésico

Cobrisse todo o ouro

o mar 

sistematicamente

 

coibisse a humanidade

de mutilar a alma

ilegitimamente

 

contasse todas as lágrimas

a pele

desmortificando o dia

militantemente

 

cobrasse o rédito íntegro

sem a avareza dos luditas

a luva sortílega

avisadamente

 

cortasse toda a neve tardia

as alvíssaras

coloquialmente

sentadas sobre o soberano

 

sem trono.

#2858

De acordo com o museu

os anjos precisam de dieta.

[Parece antiparlamentarismo primário, mas só parece]

A assembleia

é para

(nos fazer)

tolos.

É a barca dos fingimentos

e nós os idiotas lerdos

fabricando fingidores.

26.7.23

Talião não era boa pessoa

Dente por dente

vestimos a selva

e no lugar de um vulcão

no lugar de museus

e das grandes obras da humanidade

damos vida ao rosto da morte

à selvajaria de tirar as vidas do palco

só porque a vingança

faz as vezes 

de lei.

Do dente ao dente

passamos do olho ao olho

até sermos todos

obreiros da cegueira

e já nem sabermos

onde estão os olhos outros.

Injustiças indocumentadas (142)

Alguém sabe

a que sabem 

as águas de bacalhau?

#2857

Um murmúrio

deita-se na pele

verte o eco da manhã

e tudo ganha paradeiro. 

25.7.23

Ninguém diz nada

Tingidas as lágrimas

na baía dos acasos,

na vez 

dos destroços de um naufrágio

que adulteram o areal. 

Dos náufragos

não há notícia;

 

se foram doados ao mar

deles 

será a sepultura maior

um epitáfio com o salitre 

como verbo.

Injustiças indocumentadas (141)

O Restelo

não tem culpa

dos velhos que lá moram.

#2856

Dou de caução

o magma que eviscera

o ónus da angústia. 

24.7.23

O aparato da lua não se mede aos luares

Pelo meio do luar

as facas arquivadas no arnês

e só o luar

o bocejo apetecível da lua com boca grande

e uma pequena verruga numa das orelhas

afinal

apenas um piercing que a lua apostou.

A lua nunca diz adeus:

anoitece nas mãos gradas

e promete ser viável

enquanto o mundo se entretém

a dar umas voltas sobre si,

a transpirar saudades da lua.

Há quem diga

que a Terra devia ser o satélite da lua.

#2855

Um fio de medo

sobre o orvalho:

a manhã 

não se intimida.

23.7.23

#2854

O lamento sepulcral 

– ou luto fulcral – 

dádiva 

de uma evasão espectral.

22.7.23

#2853

Sitiados 

pelo sentimento precário

à espera 

da voz centrípeta. 

21.7.23

#2852

A manhã desce sobre o sonho

os versos regressam 

à impureza inicial.

20.7.23

Anatomia do silêncio

As vozes urdem o silêncio medonho

espreitam pelos poros das laranjas

como se por eles inventassem escotilhas

e condenassem o mar a ser um cais.

 

O silêncio já não é medonho

ao concorrerem as vozes gongóricas

um certame impraticável 

onde todos falam

uns em cima dos outros

outros por cima de outros mais

num emaranhado de palavras demencial.


O silêncio é medicinal

quando deixa de ser medonho

e os mecenas 

desfraldam os seus melhores tapetes

para receberem a gramática do silêncio.


O silêncio

recebeu o prémio Nobel

da igualdade.  

Injustiças indocumentadas (140)

Vamos 

ao estado da nação 

– ou 

ao estado da noção

ou à noção do Estado.

Injustiças indocumentadas (139)

Passagem de nível.

Passagem

de 

nível.

Com nível.

#2851

Não risco do futuro

o dedo diligente

no estuário

onde o futuro se congemina.

19.7.23

Trovoada seca

Não seja pormenor a denúncia

os despojos não aceitam dádiva

sem o fermento que valida a demanda

e o exílio não conta para o currículo.

Amanhece o diadema

em conspirações avalizadas por druidas

não se consuma a poção macerada

ou os ossos puídos derruem.

O espelho fortuito desaprova a privação;

esperam-nos

comboios de mel

uma contígua alfinetada na angústia

os favos em forma de espada 

e a boca que aguenta a obturação do medo.

#2850

Aliso o estuário

onde se avistam as palavras

o dorso caiado

não adormece no penhor do luar.

18.7.23

Neopantagruélico

Levamos os remos ao rosto furtivo.

As arcadas desacertam a baunilha do dia.

Atemorizados

os abutres fogem da carne vivaz

o sangue retesado engana-os por mal:

estamos a salvo.

 

Fala-se de vingança

de brio e de destemperança

dos bolos artesanais que avivam a lembrança

sem ser sempre esta usança.

 

Os cardeais não são apenas pontos.

Servem-se, sumos,

que matar a sede não se recusa.

 

Já a vagem do dia:

para ser espremida até ao magma

até ficar apenas a casca derruída

o farol que dispensa 

instrumentos de navegação.

 

Os remos não se escondem das mãos.

São o seu arnês

nas águas agitadas que fogem da gastronomia.

 

Lemos os remos

somos agiotas dos temperos

inventamos os compêndios

e agitamos os sentidos.

Injustiças indocumentadas (138)

Matar a sede

não é homicídio.

#2849

Calígula ou barítono,

a hesitação agoniante

antes de responder à pergunta

“o que queres ser em crescido”.

17.7.23

Dólar, dólar

Queria um dólar

o câmbio fortaleza

e nem sabia

que no lugar em que estava

o dólar não tinha serventia

valia tanto

como uma nota de monopólio

ou a palavra jurada dos solenes coveiros 

que condenavam a mátria

à irremediável dissolução do futuro.

Dessas juras solenizadas

não se extraía em memória futura

o saldo em mitomania 

– e ninguém se lamentava

ninguém queria contas prestadas.

Invocassem não ser o caso

sobrava

aos mandantes hasteados com o aval popular

a imperícia;

tal como 

a do dólar naquela mátria

que não sabia da serventia do dólar

a tão glosada nota verde

ali,

estranha como idioma não aprendido.

Injustiças indocumentadas (137)

Um, 

armado até aos dentes

vai perder a peleja

porque o outro,

armado até aos olhos,

lhe passa a perna

(e os dois, talvez,

a caminho da autofagia).

#2848

Não se escureça o momento

a censura 

não tem pernas para andar.

Injustiças indocumentadas (136)

Perdeu a cabeça.

A quem a encontrar

solicita-se devolução

aos perdidos e achados.

16.7.23

#2847

Precisas de molduras

se queres aprender

a transgressão das fronteiras.

15.7.23

#2846

Pergunta 

ao futuro

e fica 

à espera.

14.7.23

Injustiças indocumentadas (135)

Contra os karmas

murchar, 

murchar.

Injustiças indocumentadas (134)

Fazer a vida negra

é racismo sistémico

ou desumanidade?

#2845

Só deixamos de ser estaleiros

quando nos olham

moribundos.

13.7.23

Plural

Sabes do crepúsculo

o sabre luminar de que é feita 

a bainha do dia

o lampejo de mediania que é suficiente

sabes

do furacão circuncidado

a ametista escondida no bolso

o microscópio por onde arde a angústia

sabes

de que matéria é feita a fala continua

nos antebraços do esqueleto ancestral

se ruínas são elevadas a património armilar?

#2844

Os sonhos são maiores

quando são

sem o sono por perto.

12.7.23

Late harvest

O sol de julho

é como as fornalhas

onde se funde o aço:

se houvesse metáfora do inferno

o Verão que nos tortura

seria a metáfora entre todas. 

 

(Não se confirma

que inferno 

rima com Inverno.)

#2843

Croissant.

Croix sante.

#2842

Como coiotes

de atalaia

à espera 

da próxima presa.

11.7.23

Manual da impossibilidade

As facas em descanso

deixam a pele na letargia

os acasos justapostos pelo ocaso da memória

e nada se credita à devoção

o amor tem os braços de um polvo

para não fugir nos interstícios do sono. 

 

Esta é a matéria válida

o desassombro 

das vozes que murmuram o paladar da alma

desarrumando os conspiradores

os que erguem

insatisfatoriamente

barragens elefantes brancos

e mesmo assim o caudal abraça-se 

ao rio restante. 

Tatuada a astúcia em forma de verbo

o corpo é um santuário à prova de derrotas

sem haver 

quem o consiga desfeitear. 

 

Podem ser medonhas as ondas

temível a lava de todos os vulcões por junto

podem todos os olhares açambarcar a tirania

deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade

podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas

e os pederastas da estultícia desfilar 

na passerelle

ostentando a sua indigência

podem os deuses, 

adormecidos, 

esquecer-se da bondade

que os padrinhos seculares 

descombinam do olvido

derruídos pelo esplendoroso labirinto

onde se terçam as solenes proclamações

o desejo que torna árida a aridez

e devolve ao avesso à fazenda legítima. 

Os cabelos 

cavalgam o dorso das ondas

dir-se-ia

amaciam o horizonte atrás delas deitado

como se o outro lado do mar

estivesse à distância de duas braçadas. 

Que ninguém proteste a impossibilidade. 

 

O seu antídoto

é a vontade arrematada

contra a indulgência 

que se disfarça de medo.

 

#2841

Perdidos e achados:

achados os perdidos

estamos

perdidos nos achados.

#2840

Não dirás

indiscutível

se não quiseres ser 

verdugo da tolerância.

10.7.23

Porto forte

A saliva foge das cicatrizes

o remorso incendeia-se na manhã

os sonhos são o prolongamento do medo

as sílabas obedecem ao quociente

para que nada fique 

sem raiz quadrada.

 

O pelourinho

foi demitido da praça

os inquisidores estão nus e ao deus-dará

e já nem as viúvas lamentam oxalás.

 

Honestos 

os chás orientais com rótulo disfarçado

e desonestos

os vinhos do Porto made in África do Sul.

 

Os reclusos estão viciados na biblioteca

e os catedráticos delinquem às escondidas.

 

E tudo, ou quase,

virado do avesso

como se do avesso

as coisas perdessem o avesso

e se tornassem

coisas.

Injustiças indocumentadas (133)

Por acaso

por ocaso.

#2839

O nome de uma flor

uma qualquer

em vez de heróis forjados

em livros de História.

9.7.23

#2838

Não é em vão

que vão te tornas,

a escada da decadência

é o vau inadiável.

Injustiças indocumentadas (132)

Portugal

(não é)

dos pequeninos.

8.7.23

#2837

Era a oliveira falhada

os ramos ressequidos de fora

mas era uma oliveira.

7.7.23

Cem barreiras

Vou às portas de um país basco

sem medo do ricochete 

das balsas de exilados

com fome de colinas adelgaçadas

pária de um idioma sem paradeiro

das fronteiras que acabam depois

nas manhãs condensadas

que se acastelam

nas costas do mar.

Injustiças indocumentadas (131)

É quanto barata 

– quão de terceira classe –

a carne para canhão?

#2836

Dizer adeus

é encomendar alguém 

a deus?

6.7.23

Confissão

Que sabemos 

da árvore noturna

dos humores que fabricam o orvalho

da matéria-prima de que é feito o sangue

dos inviáveis dias 

que se arrumam no dicionário?

 

Toda a água contida no rio

desfaz-se num mar totalitário

e digo 

que não há maior gesto democrático. 

 

Se estamos à mercê da contingência

se só sabemos que do outro lado da página

medra a luz crepuscular 

de que serve sermos arquitetos do porvir

se depois acabamos engenheiros

a fazer o levantamento dos destroços

e repor o que do passado puder ser salvo?

 

Não aprendemos com o futuro

e ficamos à espera da fala do passado. 

É essa a nossa tragédia comum. 

 

Um lampejo de vozes exaustas

a pele que se gasta com o reviver

e o sangue em banho-maria

sempre à espera 

do próximo apeadeiro.

Injustiças indocumentadas (130)

Uma ação de formação,

ou deformação.

Injustiças indocumentadas (129)

Um pé de vento

quantos dedos tem?

#2835

As ruas arrumavam a solidão

sabiam que havia um dia

consecutivo.

5.7.23

A oficina do exilado

De cada rua demandada

a granada desaprovada

que se amotina na contramão

de um corpo que precisa de corrimão. 

 

Deste espólio que se agiganta

não há vivalma que se espanta

caem as mãos como um machado

no estio nunca atrasado. 

 

À água funda o oráculo resgatado

fundeia o espectro destinado 

o estuário tardio e sem bainhas

só deixa emergir as entrelinhas. 

 

No ocaso a jura pertence

o lugar deixado ao luar incense 

e os poros de matéria combustível

escondem a força invisível. 

 

As estrofes que atapetam o calendário

contrariam o provável mortuário

cortando a eito a temível passadeira

para no miradouro ser devolvida a canseira. 

 

O jacarandá incendeia a alma promissora

e avaliza a luz encantadora

a fala junta-se ao orgulho matinal

num diadema seminal.

#2834

Joga-se o jogo do fingimento

a fugir de todo este

fingir.

4.7.23

Vinificação

Ouvem-se as vinhas

o aroma que prometem

enquanto esperam nos socalcos

pelo tempo que vinga.

Os artesãos não conspiram a solidão

que o vinho ajuramentado precisa de colo

precisa de mãos sábias 

que o despoja de ardis 

e matéria pretensiosa.

Logo agora

que a empreitada ganhou peso

e a desdieta é da culpa

do terroir

 

(por já terem, 

talvez, 

sido extintos

os termos em português).

#2833

De que sangue

é feita a noite,

de que sangue

se amestram 

os sonhos?

3.7.23

Mecenato (em proveito próprio)

Adivinhei o estado comatoso

à volta do adro voejavam abutres disfarçados

e o oriente devolvia o sol

ainda infante

ainda assembleia dos desejos.

As ruas apinhadas de silêncio

fingiam as vozes suadas

fingiam

que sabiam ver debaixo das pálpebras

e as pedras guturais que segredavam os rumores

desatendiam as preces embaixadoras.

 

Os corpos 

eram atirados para a falésia

mas voavam

tão leves

que se acreditava que era intencional.

 

Os gatos lutavam pelo lugar

houvesse uma gata que fosse para disputar

e antes que os preclaros se abespinhem

diga-se 

que os gatos não leem os gurus de amanhã

nem vão às manifestações participativas.

 

(Porventura

propor-se-á

numa bem-aventura assembleia

a destituição da natureza

ou a sindicalização 

das gatas.)

 

O cio dos gatos é indiferente

e os varões pendidos na madurez invejam

tão profilático desejo

toda a carnalidade sem o véu dos costumes.

A usura

a maldita usura

levar-nos-á à decadência

e depois

à extinção.

 

(A menos que as assembleias participativas

se substituam à usura

e, salvíficas,

decretem que tudo o que se opõe 

à desmaterialização

está condenado à proibição.)

 

A encenação não conta,

adverte o pai na direção da filha

e ela

insistindo no descomportamento

mostra a língua e duas caretas

às meretrizes que se mercam 

na rua feita montra.

 

Ah, se ao menos o mundo não tivesse arestas

e as chaves não fossem segredos

as bocas diziam os nomes ao acaso

e já ninguém participava no medo;

se as cortinas se mantivessem subidas

e já não houvesse clareiras por recusar

as fogueiras não se extinguiam

nem à força de chuvas estrénuas.

 

Esgotado o tempo 

já não se sabe se ele se gastou

ou se atirou contra 

os que dele são párias.

Injustiças indocumentadas (128)

A coça

que coça.

Injustiças indocumentadas (127)

O amigo é da onça

mas 

a onça não é do amigo.

#2832

Privilégio extravagante

é ser testemunha 

da erupção do sol.

2.7.23

#2831

Rasgo

a fuselagem dos dias bastantes

as lágrimas que são refúgio das árvores

mas não consigo rasgar

os diamantes que são a safra do futuro.

Vassalagem

Deste dar à corda,

a roda dentada que porfia

nos dias seguidos

a visionária sabedoria de viver. 

Os tribunais andam distraídos

e as ruas incendeiam-se 

com as vozes cansadas

em motins de despensamento. 

As manhãs são como úberes.

As vozes ainda em murmúrio

com medo de se revelarem

estremunhadas

expiam os pressentimentos 

cifrados nos pesadelos. 

De cada vez que chove

deito as mãos para sentir as gotas

acolho a chuva no cabelo desprotegido

e vejo

em cada gota que entardece em meu rosto

um oráculo que se escreve a tinta-da-china. 

De cada vez que chove

sou eu

essa precipitação ousada

vertida sobre o adro sem curadoria. 

1.7.23

#2830

Não esperei pelo passado,

o nome fez-se à falésia

no luxo vertical da ousadia.