31.12.06

Welcome to the pleasure dome

Há um santuário
onde só o impossível é prometido;
lugar luxuriante
com as pedras almofadadas
sons que enfeitiçam os sentidos
e colchões amansados pela febre contida.
As searas queimadas pelo sol estival
são o leito onde vêm repousar os corpos.

É nesse santuário
que te recolhes na tua plenitude,
barca das amarras libertada
soltando a fúria que as correntes domina.
Vem a perfumada pele
deitar-se no relicário
receber as instruções que desnudam o roteiro
para o púlpito que trina a pulmões cheios.

No santuário
como se o tempo estivesse suspenso
e as flores que incensam o espaço
se dobrassem perante a dança dos corpos.
Uma anestesia fulgurante
murmureja aos ouvidos,
que latejam;
as luzes,
ora acesas ora apagadas,
em compasso com a passada,
algures ritmada,
outras vezes aleatória;
os dedos passeiam pelas pontas vertiginosas
quebram a anestesiante condição
devolvendo a imensidão das planícies douradas:
um sol, alto,
no céu que se perde
e nem nuvens nem brisa
apenas as lágrimas da transpiração
no exultante retrato dos corpos endeusados.

No apetecido santuário
somos apenas nós
sem liturgias nem cadafalsos;
encantada transfiguração dos corpos escondidos
através de uma encenação feérica.
Poderão
as mãos quentes e a boca faminta
com tanta sede,
para o santuário ser altar
dos corpos que se fundem
em uníssono
até um só erguido ao alto
ao lugar tão alto onde só alcançamos
quando, deitados,
os corpos repousam escoltados
pelas paredes do santuário.

Haveríamos de regressar ao santuário
uma e mais vezes:
por certeza que é lá
naquele lugar tão recôndito
que desatamos as pulsões aprisionadas.

12.12.06

Flores do encantamento

Pudesse colher
todas as flores do mundo
para beijar o teu encantamento.
Nadas nas perfumadas pétalas
és tu mesma a essência divina,
simbiose com as flores do mundo.

Os teus olhos exalam os elípticos eixos
de onde se expandem as pétalas
e todas as cores.
Povoam as ruas as encantadas tulipas,
ora penduradas nas varandas engalanadas
ora fazendo o chão com as pétalas tombadas.

Chegas
e sopras o perfume floral
aspergido a quem te abraça,
compensação não pedida
pelo encantamento que espalhas.
Sejam hortênsias viçosas
ou rosas com o botão que acabou de romper
ou mesmo
as pequenas flores silvestres que ornamentam,
discretas,
o altar que vem pisado pelos teus pés.

Recolhes as flores nos teus braços.
Neles cabem todas as flores do mundo.
A face rosada
a pele fina e suave
o adocicado odor que deixas no ar
sugerem:
a flor que enraizaste
enternecedor cálice de vinho
temperado com os taninos
que frutaram das flores inspiradas;
no teu doce olhar.


 

11.12.06

Cedo e tarde demais

O relógio avança, impiedoso.
Encurta o tempo útil que a vida conhece.
Cada segundo que passa,
mesmo os muitos segundos
que nem sequer se dá conta
que foram esvaídos,
matéria inerte emoldurada
num retrato dos tempos idos.
Apenas nostalgia
aqueles dias da revisitação do passado
entrega do presente nos braços do torpor.
O tempo definha.


Urgência em chegar mais cedo às rotinas.
Uns minutos mais cedo
fosse a poupança do tempo balão de oxigénio
soprando o tempo útil da existência.
E, contudo,
a perplexidade é uma interrogação:
apressar os ritmos é chegar mais cedo ao destino,
o desfecho extemporâneo?
Os olhos, a voragem dos sentidos,
devoram a informação
as artes que se entregam no regaço
as sensações inexprimíveis dos sentimentos.

Há,
na pressa de viver
a urgência em morrer?

A inquietação de sentir
que a urgência do modo não é elixir.
Os passos apressados,
o encurtamento dos minutos,
a catadupa de coisas agendadas
- tudo arroteia o agreste terreno
para depois perceber
muito mais por ver
por fazer
por dizer.
A angústia nomeia uma larga avenida
no labirinto das emoções.
Síntese de sentimentos ambíguos
- doce e amargo,
a cor e o negro embaciado,
tudo e mais no seu profundo contraste.
Sucessão de passos acelerados
e de quedas em profundos precipícios,
tão profundos
que o corpo parece planar na imensidão do vazio,
sem lugar para a queda amortecer.

Tudo se passa no interior de um pesadelo.
Enquanto o corpo se debate na vertiginosa queda
o tempo parece ter parado.
Desfilam
as imagens nevrálgicas do passado
momentos que compensa relembrar
e aqueles que a memória quer cegar.
Toda uma experiência de vida
compulsada no mergulho no precipício.
O corpo nunca chega a estatelar-se.
O sonho termina antes,
antes do chão ameaçador se fazer campa voraz.

Ao despertar
o sabor ácido do arrependimento.
Como o tempo já não regressa para resgatar.
Do imortalizado no lugar das memórias
não há lugar ao arrependimento.
Em vez da tranquila contagem do tempo,
sem pressa para degustar a vida lânguida,
a urgência do modo.
Pressa de viver
o receio que ao chegar ao terminal
tanto tenha ficado por conhecer.
Lá,
onde o tempo se compacta
para extrair toda a sumarenta existência,
sobra a angústia:
do que parece cedo
envenenar o entardecer das coisas.

O grande paradoxo.
Desorientado na encruzilhada fatal.
Ora cedo
ora com a perturbante sensação de que já é tarde
ou que a chegada se fez fora do tempo.
Os lamentos
apenas choros inconsequentes
pelo tempo que não volta a acontecer.
Módicos fragmentos dos episódios esparsos,
um atrás de outro
ceifando arbustos estorvos da passagem.
No calor tórrido do sol
faúlhas de incêndios consomem o arvoredo
vomitadas das distantes labaredas,
poisando no cabelo,
cortando a respiração.
Calor abrasador que destila o suor
- o suor de quem vive em correria,
por querer chegar cedo
aos lugares onde só tarde se arriba.

Calor dos sentidos tolda discernimento.
A febre de viver apressadamente desfaz a tranquilidade,
como navio à deriva levado pelo mar tempestuoso
contra as rochas que escondem a praia.
Fica a dor do embate nas rochas
o rescaldo da urgência do tempo;
esquece
que só os ponteiros do relógio ditam a sua marcha
não os simulacros que intuem a aceleração do tempo
sem perceber que o pavio se encurta.
Fica uma intensa dor
como se na boca
eclodisse uma pedra incandescente:
a urgência de cedo chegar
imprime a antecipação do final
que se anseia sempre adiado.

Cedo,
ou a sombra do tardio ocaso.

5.12.06

Não tenho opinião formada

Que sabes tu?
Apenas nevoeiro
impenetrável nevoeiro no meio de tanta sapiência.
Glosar o filósofo
certificar que nada sei –
e, sabendo-o, é tudo o que sei.
Dou voltas à cabeça
entro em complicados labirintos
perco-me em judiciosas encruzilhadas;
e saio,
airoso,
convencido do nada.
Há os que se atormentam
pela dúvida que se apodera,
outros negam-se a si mesmos
na ofuscação da dúvida;
eu quero cultivar a incerteza
as perguntas sem resposta
ou as respostas que transportam outras perguntas.
Perturbam-me os espíritos esclarecidos
os sabichões com resposta para tudo
imperturbáveis guardiães da certeza.
Urticária pegajosa
quando os vejo a catedrar.
A altivez da superioridade intelectual
só me faz querer conversar
com o maior dos algozes da ciência,
que lapidam o diamante da agnosia.
Ao menos sabem o que são
perdidos na incontinência do não saber
cientes das respostas que não possuem.
Os mestres de cerimónia da ciência ululante
são ilusionistas encartados
fautores do deplorável hipnotismo das massas.
Bem falantes
argutos na retórica
a imagem de infalíveis personagens
gente que disserta sobre os temas que venham;
aguçando o apetite nas massas
por mais sabedoria aspergida para a doutrinação do povo.
Opinam,
a eito,
sobre:
os foguetões na lua
as cheias no Douro
a nouvelle couisine
o cinema de Kusturica
os quadros de Arpad Szenes
as tácticas do mundano futebol
(que, na sua boca, sai do precipício da incultura)
a dogmática eclesiástica
os versos de Cesariny
(agora que o poeta morreu e as homenagens estalam na boca)
a qualidade das obras públicas
a música – do barroco ao clássico, dos Doors aos Smiths
os mercados financeiros
os presentes certos para as namoradas
o referendo ao aborto, mais as questões éticas agregadas
a arte da canalização
a previsão de tempestades
os molhos para o fondue
o automóvel mais amigável do meio ambiente
a política internacional
as melhores estações de esqui
os livros, literatura ou leitura técnica
os melhores conselheiros pessoais.
Cá para mim, só isto:
perguntem-me o que quiserem
e sempre a mesma resposta:
não tenho opinião formada.
Não tenho.
Opinião.
Formada.

Tejo adormecido

As águas lamacentas vegetam junto à margem.
Pela baixa-mar
o lodo que é toda a canseira de um rio.
Por entre o lodo
um homem vasculha a bicha
revolve a lamacenta terra acastanhada
enterrando as galochas na pastosa massa.

Ali à frente
o extenso estuário
anuncia a branca Lisboa na outra margem.
Muito ao longe
o casario esbranquiçado confunde-se
com a névoa demorada.
As águas repousam
lânguidas
logram a cama alargada em que se vêm deitar
no fim da cavalgada leito fora.

O chão amansado do Tejo
pressagia que nos poderíamos lá deitar
fazer dele o remansoso leito
onde gritam os mais belos sonhos.
Só uma falua que traga o estuário
descompõe o sossego das águas,
tímidas ondas sopradas pela proa.
As pequenas aves ribeirinhas
vogam nas águas levemente ondulantes
acima e abaixo
ciciando incómodos.

Minutos depois
o Tejo regressa ao sossego mortiço,
as águas paradas num espelho grandioso.
Não há vez
que não pare para contemplar o largo estuário:
não há vez
que não me extasie com a obra grandiloquente,
o rio que escavou um vale amplo ao aproximar-se da foz
espelho de água que estende braços para todos os lados
e contagia Lisboa,
cidade ajoelhada diante do majestoso rio.

Não será o Tejo rio selvagem – como o Douro.
Não avança por entre ladeiras escarpadas
contorcendo-se furiosamente entre fráguas,
mesmo junto à foz
onde rompe o granito alcantilado
antes de se deitar na boca do oceano alteroso.
O Tejo é massa volumosa de água
fluindo vagarosamente
rumo à embocadura do Mar da Palha;
o terreno plano da lezíria
domestica a fúria da torrente ribeirinha
no caminho para a foz,
um novelo que se estende no mapa de planuras;
mas um vórtice aquoso
que debita tantos metros cúbicos
invisíveis na sua fingida acalmia.

Se o Douro bate com fragor
nas águas salgadas que o recebem
o Tejo adormece no estuário
espraiado diante Lisboa.
Os rios destoam dos elementos:
o Tejo amansa a fúria ao chegar ao destino
temperado pela hospitalidade do oceano
que penetra no Mar da Palha.

28.11.06

Peregrinação sangrada

Pedregosos caminhos íngremes escolhem
sede e batimentos cardíacos acelerados
no sacerdócio para os dedos dos pés que se cansam
quando a ladeira empina.

Pedras pontiagudas são como lacre quente
que sangra os pés cansados
punhais cravados que descarnam os pés
como se ossos ficassem à mostra, no seu ocaso.

Só a promessa do céu despejado
a aragem fresca que clareia as estrelas
só a busca da purificação ansiada
devota forças impossíveis.

Passo a passo, cortando a noite profunda
só as candeias acesas, na sua tímida luz,
incensam pedras duras que semeiam feridas
muitas folhas de calendário depois cicatrizes secas.

O tremendo poder mental pode com o resto
derrota adamastores que pairarem em todas as esquinas
afugenta esfaimados lobos que descerem da montanha
um gesto de mão fosse espada desembainhada.

Olhar perdido no distante horizonte
tudo desafia, mesmo o ameaçador breu,
e imprime andamento célere até ao cume
pois é o tempo que se esgota e a alvorada pressentida.

O púlpito do monte atrai batimentos do coração
resgatadas forças onde eram desconhecidas
com a aliada frescura da brisa nocturna,
até agasalho dispensável.

Peregrinos vencem demónios
derrotam falsos sacerdotes que exaurem energias
filisteus denunciados mirrando
perante o trote, indiferente, dos peregrinos.

Lá no alto, contemplação do prometido
lava a dor dos pés que sangram
anestesia cortes lancinantes
misturados com sujidade da subida.

Ostentam espírito coriáceo
envolvesse-os uma carapaça indestrutível
a sua fé indómita no auge de estatuto
quase sobre-humano.

Quando chegam ao alto
não apetece regressar pela descida;
dir-se-ia que se eternizam naquele lugar
sagrado altar que recolhe as suas almas.

Quando descem são apenas corpos
volátil essência, desmembrados do espírito preenchido
na sagração do pináculo da dura peregrinação
enfim, cultores do que tanto se prometeram.

No regresso
até finas ervas são ácido que corrói as feridas
facas cravadas bem fundo nas doloridas chagas
apenas o retorno aos mortais que foram.

Os corpos macerados não chegam
para olvidar delícias do espírito consumado
nem que se arrastem ladeira abaixo
nem que se percam num recôndito lugar, para sempre.

21.11.06

Vida vertiginosa

Estouvados
temem que se antecipe o fim da vida:
o coração pulsa a alucinante velocidade.
Na sua boca
as palavras crepitam
ávidas por serem lançadas
no dizer do que há-de ser dito
por receio do muito que há-de ficar por dizer.

Os minutos são vividos sem parar:
noites que se prolongam pela alvorada
sempre acordados
pelo marear da vida fulgurante.
O sono combatido
pois dormir é tempo
sem ver a luz da vida.
Desmaiam no encanto das calçadas aventureiras
aquelas que apenas os ousados pisam
no doce sabor da adrenalina viciante.

Entregam-se,
desalmados,
ao império do prazer
pé ante pé percorrendo as alturas
que separam precipícios abruptos.
Param diante dos precipícios:
enchem os pulmões de ar
fitam o que há para ver,
lá de cima de onde avistam as encumeadas.
Como se fossem imperadores
zelam pelos espíritos menores que vagueiam,
vegetativos,
cães vadios que erram em destemperos.

Dançam horas infindáveis
separam-se e reencontram-se
no magnetismo das almas gémeas.
Às vezes
nem palavras para cimentar a cumplicidade.
Se a alguns a morte vem bater mais cedo
não se deixam intimidar:
escolha deliberada é viver depressa,
com riscos,
desatinos que estalam na boca
feridas dolorosas que duram a cicatrizar.

Ciciam a altivez
que os demarca dos mortais.
Sem curarem que os mortais
perduram para além da sua imortalidade.
Ensinam:
não são os anos que duramos,
é a intensidade do tempo que levamos
sem arrependimentos fingidos
do tanto que haveria a fazer
e só restou emoldurado na galeria do extemporâneo.

Olham para trás?
Não têm tempo.
E nem sequer tentam espreitar
por cima do ombro do devir:
o amanhã deles é o minuto seguinte.

20.11.06

Touro sangrado

A faena discorre,
lenta,
como se passasse em slow motion.
O touro
exangue de forças
arremete com brandura contra a toureira
que passeia a pesporrência de quem adivinha
bandarilhas espetadas com um toque de Midas.

O bicho sangra no dorso
através das farpas dolorosas
cravadas no pêlo negro.
Volteia-se
troteia a custo
cerca a toureira
já sem a ameaça do bicho feroz
que o foi antes de covardemente domado.

O sangue carmim que jorra
enfraquece o touro.
Entra pelos olhos da toureira.
Dir-se-ia:
tinge a capa de um encarnado acérrimo.
As veias dilaceradas pelas farpas desumanas
trazem o sangue
que se mistura na negra pelugem;
definha assim o bravio animal
até ficar a jeito para a estocada final
da toureira impiedosa.

O público
alarve
aplaude.
Penhor da tradição
(seja lá o que a tradição significa
seja lá a força dada à tradição).
Excita-se
com o seu próprio sangue a ferver
pelo sangue do animal
que vai jorrando dorso abaixo.

A alarvidade impune,
ou a animalesca veia humana:
um festim impúdico
a ceifa da vida de um animal sem culpa
que não seja a desdita de ter nascido
bovino bravio.

Na arena
esfrega as patas na areia revolvida
enquanto a vista se ofusca
nas energias deslavadas.
Já nem o vermelho da capa o enfurece
idas as forças brutas
que outrora cultivou em campos abertos.

Despede-se
ajoelhado perante a carrasca
que esperou pelo instante final
das forças ausentadas.
Quando parou,
esgotado,
diante dela,
quando deixou de lhe fazer a corte
e nem a raivosa reacção ao feérico encarnado
o mobilizava;
sinal da sua inutilidade
sinal da função cumprida
apenas um corpo inanimado se espera
depois de cravada
bem funda
a espada que lhe secciona a aorta.

Até o ritual da morte
é um festim desapiedado:
a despedida da vida
é um lancinante percurso
que entusiasma alarves espectadores.
Ajoelha-se
debate-se
parece acreditar
que um raio o viria revigorar
ainda;
tomba de lado e esperneia
para gáudio da turba ensandecida
delirando com os urros intimidados do bicho;
não o socorrem
nos urros que clamam por uma piedade tardia;
só apetece deixar de ouvir os urros
sinal da função cumprida.

É um corpo inerte que jaz
sem ouvir o aplauso demorado
das bestas gentes.
Um corpo inerte
ainda sujeito à humilhação final:
uma orelha cortada
orgulhosamente ostentada em redor da arena;
e o cadáver arrastado para fora da arena,
que a função prossegue:
à espera de mais sacrifícios
que nos devolvam
à ancestral bestialidade.

14.11.06

Nos braços da areia dourada

Os grãos de areia
suspensos pelo sol em despedida final.
Uma cama sem espinhos
apenas o rosto ao vento
maças do rosto esfriadas pela brisa
que se deita com o sol poente.

Ao longe, o mar
depõe os sentidos perante a areia molhada.
Chega cansado
espumando raiva pelas forças exangues;
deita-se, num assomo final,
o mais que pode é molhar areia já molhada.

Há no salgado mar
os segredos guardados pelos navios
que o cavalgam.
Vêm diluídos,
obscurecidos pelas águas cristalinas,
morrer na areia acastanhada que recolhe a espuma.

O manto de água que viaja sem cessar
é a ponte entre continentes
a harmonia de terras tão longínquas.
Mar que testemunha os perfumes exalados pelas terras
e a têmpera das gentes que se acolhem
em diferentes lugares.

O areal é o leito do mar revolto
ancoradouro levadiço que o acalma
um chão tranquilo escavado pelas ondas
que se afundam e perdem a furibunda energia
ao tocarem a virginal cesta das areias.
Das areias moldadas pelo frémito do oceano.

Pela noite, só o luar
distingue a areia da escuridão das horas.
É aí que os grãos de areia cintilam
com a timidez da luz branca.
É a hora da luz escondida que desnuda
os recantos misteriosos da noite fugidia.

Os grãos de areia
ora repousam na quietude dos elementos
ora dançam, ensandecidos, mostrando a leveza
empurrada pelo vento feroz.
Cama que se faz e desfaz e volta a fazer
na praia imutável, o areal sempre grande.

A distância do tempo guarda segredos.
Os anos e a loucura da atmosfera
colhem o insólito a quem regressa
à praia emoldurada no divã das memórias.
Praia selvagem, revisitada nas suas diferenças,
como se o areal já nem fosse o mesmo, apenas indiferente.

Estranheza que se apodera do corpo:
o regresso ao local de sempre
agora lugar nunca visitado.
Só quando as mãos se entranham na areia
e os grãos escorrem entre os dedos gastos
há o resgate das memórias, o local perde a estranheza.

Aquela areia revolvida,
tragada pela força de tempestades
aviltada por turistas impiedosos
empurrada para remotos lugares pela força do vento;
aquela areia pode ser a mesma, ou outros grãos ali semeados.
Será sempre a praia onde o mar beija o sol poente.

2.11.06

Dá-me a tua mão

Em todos os lugares.
Houvesse a necessidade de sentir
os poros suaves da tua mão,
mão quente sobre o meu corpo
que grita por afecto.
Quero a tua mão
tal como ela é:
uma candeia que descerra a luz,
derrotando a escuridão.
É pela tua mão que me guio
entre as pedras afiadas que ferem os pés.
Indica o caminho dócil,
uma repousante expedição
até beijar o destino procurado.

Dá-me a tua mão
para sentir o pulsar que se encerra em ti.
Para,
através da tua mão,
ser um pouco do que és.
E dar-te um pouco do bom que há em mim.
Paramos diante de um campo imenso
onde as flores tecem uma cama violeta.
A brisa refresca as nossas faces,
tiritamos do frio que juramos nem sentir.
Que interessa
se atrás de nós arde uma pira
onde se incensam os demónios que deixámos?
Diante dos nossos olhos estão as flores,
dir-se-ia
o túmulo onde não importaria imortalizar
o resto dos nossos dias.

Há nas tuas mãos o rumorejar das águas
que sobem desde as profundezas
e irrompem
numa fonte escondida entre a frondosa vegetação.
As gotas
salpicam os arbustos em redor
toda uma vida alimentada pelo manancial
regurgitado pelas entranhas.
É assim que me sinto
entre as tuas mãos.
Renascido.
Preparado para as adversidades
que poisarem com um ar ameaçador.
Basta um gesto dos teus dedos
uma viagem na ternura da tua mão pelo meu cabelo,
e nada,
mesmo nada,
será força indómita
para vergar o vigor que nasceu em mim.

Repouso
deitado sobre a tua mão.
Sinto o odor,
o calor,
teus.
Consigo discernir
todos os poros da palma da tua mão.
Abres as mãos
e selas um beijo que avigora.
Aí,
todas as portas
que pareciam hermeticamente cerradas
abrem-se de par em par.
Apaziguam-se os ventos
que silvavam violentos urros.
O sol,
que teimava escondido detrás das nuvens plúmbeas,
solfeja raios admiráveis.
O mar sossega as ondas,
tornando-se chão espelho onde apetece levitar.
Tudo pela magia das tuas mãos
que atrevem a contemplação dos sentimentos maiores
reprimidos pelas pedras que perecem, intemporais.
E, contudo,
há uma pulsão irreprimível
que brota das tuas mãos.
E sabemos
que pela força delas conseguimos mover
até as raízes mais fundas de árvores centenárias.

As tuas mãos são um bálsamo.
Há nelas um frémito
que redobra a intensidade das coisas
revigora os sentimentos
que parecem apenas adormecidos.
Eles latejam,
lá no mais íntimo do ser,
com a bênção da cumplicidade
que soubemos instruir.
As tuas mãos esvoaçam enquanto falas,
fazendo desenhos no ar
elipses e outras coisas indescritíveis
enquanto preenches o discurso
com a expressividade das mãos dançantes.
Movimentos que inebriam
pelo sortilégio que empenham.
Enfeitiçado
tomo-te por uma maga
que deu sentido a um nomadismo desorientado.

As tuas mãos são os meus olhos.
Nas tuas mãos me entrego,
de olhos fechados,
sigo por onde elas me levarem.
Não interessa se vendado ou até cego,
pelas tuas mãos calcorreio todas as veredas
– das mais íngremes às que tragam o terreno plano,
das sinuosas às rectas que encurtam planícies sem fim,
às pedregosas
e às que se fazem caminho aveludado.

Vou
por onde as tuas mãos
me quiserem levar.
Confio
que não há encruzilhada que faça demorar
nem caminho errante debulhado.
Se as tuas mãos
são como candeias
que alumiam entre o breu da noite profunda.
Se as tuas mãos
são uma bússola entreaberta
o mapa que leva ao tesouro
que trazemos bem junto ao peito.

Escuto
o rumor do mar alteroso que chega a terra
soprado pela tempestade.
Não há que temer.
As tuas mãos
poderosos diques
que contêm a fúria dos elementos.
E por isso te rogo:
dá-me a tua mão.
O altar
onde fazemos a sagração
da nossa cumplicidade.

31.10.06

De um manual para as noites gélidas

Penhor de um gesto,
todo o afecto compulsado num afago.
O pijama de flanela,
como as cortinas de veludo
que abraçam a quietude do quarto
ou a límpida natureza balsâmica
da sintonia de sentimentos que se entrelaçam.


pelo alto da noite
há-de um embruxado fantasma
atemorizar o sono dolente.
Desenganado artífice da maldade
esbarra na vigorosa harmonia
dos amantes sitiados no refúgio só seu.

Vigilantes
espíritos coloridos
dançam e assustam os impiedosos vultos.
Apazigua-se o sono,
de portadas bem abertas aos sonhos fantasiosos.
Não que eles sejam émulos
da vida que se leva;
apenas a charneira entre a parcimónia
dos sentimentos preenchidos
e a ternura recolhida nos olhos cerrados
pelo sono pueril.

É pela noite
(quando a insónia empurra as pálpebras para cima)
que se revelam os segredos
encerrados na luz do dia.
Transfigura-se o corpo
nas formas traçadas pelas sombras
da luz mediana.
Repousam os corpos cansados
na planura dos poros suados,
um aluvião tão fértil
onde nem os mais apertados nós persistem
na atadura de marinheiros obstinados.

Há-de a noite não ter fim
no idealizado exílio dos amantes.
Há-de a noite sem fim
limpar a névoa diurna
enxugar as lágrimas
e a revolta dos sobressaltos
da vida levada todos os dias.
À noite,
pela escura,
nem de candeias carecem
os amantes apossados pela paixão febril.
Apenas a luz intensa deles exalada
o marejado chão que vidra os olhos
os dedos percorrendo a pele macia e quente
ou as palavras ciciadas
que só têm lugar em sussurros.

A noite eterna
sem as cortinas baças do fumo
nem as lágrimas que marejam olhos impacientes;
apenas um terreiro imenso
onde os corpos se despem de si
na fusão que os cinde num promontório sibilino.

Na noite masculina
só altares pincelados com as pétalas perfumadas
e o champanhe vertido nos corpos extasiados;
só a entrega recíproca
ao remar num uníssono movimento.
Um vórtice:
afectos
palavras adornadas de magia
olhos aquecidos pela fervente alquimia dos corpos.

Um diamante por lapidar;
na sua indomável força
um farol que alcança tão longe

onde o âmago já deixou de o ser.

24.10.06

A quimera

Os montes traçam o sinal do degredo
um porto balsâmico onde os refúgios se descobrem.
Não é de ouro que partes em demanda
nem de vento apenas bonançoso
ou uma magistral correria atrás da luz quimérica.
A quimera está algures
lugar que não se procura
lugar que te encontra entre veredas virgens
caminhos idos só porque nunca dantes travados.
É a alquimia dos sonhos
que te fornece a bússola.
Deixas-te guiar por ela,
sintas,
ou não,
a navegação por estima,
uma bolina que vai e vem
arqueada nas curvas que o vento tece.

Empenhas o corpo cansado
sabes que o destino oferece a recompensa maior:
o tributo ao que tanto procuravas
um corpo então repousado no desígnio cumprido.
É essa a quimera
desafios com os salpicos do mar tão longínquo
e ainda assim perene,
presente na maresia que acama a ossatura.

Partes
com o fito bem traçado
(mas sem rumo ordenado):
encontrarás a quimera, de tanto porfiar.
Não interessa
quanta parafina queimada
na candeia que espalha a luz na noite escura
ou as feridas que laceram os pés gastos
nem o andar cambaleante ao cabo da busca perseverante;
não interessa
os montes escalados
as colinas travadas
os rios caudalosos atravessados
as cidades que te desconfiavam como mendigo
os choupos onde dormitavas ao relento.
Nada interessa
ao fitares o desafio
que te fez erguer na procissão solitária
ainda que haja uma imagem desfocada
um escurecimento da beleza da paragem tão ansiada.

Quando chegas
os corpos amontoados nas camionetas imundas
as ruas que escorrem esgotos nauseabundos
as paredes sujas das casas escalavradas
as almas indigentes que cobiçam os andrajos que levas
– tudo semeia a dúvida:
para quê ter partido
se o destino é a imagem desfocada
antítese da quimera espiolhada?
Para quê ter partido
se à chegada encontraste
apenas
uma miragem?

17.10.06

Segredos

Nas veias
a seiva que segredamos.
Um sussurro quente
sílabas todas soletradas
a batida seca das teclas compassadas
de um piano a preto e branco.
No esconderijo
é o lugar dos segredos.
Um couraçado blindado
onde nem as andorinhas pousam.
Um lugar sempre escuro
desconhecido do sol.
Não que os segredos
sejam masmorras dilacerantes;
ou uma apneia dos sentidos
o martírio hipnótico que desorienta;
apenas um refúgio
que só os amantes sabem,
onde as coisas planam na sua intemporalidade.
É lá que os segredos pertencem à cumplicidade.
Descerram a intimidade
e deixam de ser segredos
– menos para os que deles continuam longe.
As palavras balbuciadas a custo
defenestram os torniquetes da alma,
esconjurados os fantasmas de outrora
malévolos vultos que semeavam flagício.
Dos segredos
pelos segredos,
a emancipação altiva
ou a exorcização do passado desconfortável.
Fantasmas já não fantasmas
através do alívio da partilha dos segredos.
O limbo encerrado
com as janelas abertas na comunhão
dos segredos.

10.10.06

Corpo ausente

Havia um corpo com as velas acesas
um perfume incensado colorindo o ar
uma cascata de sons a ocupar os lugares.
Às vezes diluía os suores nocturnos,
a necessária diálise do espírito acometido.
Outras vezes pegava no corpo
e redesenhava-o
(como gostaria que ele fosse:
um santuário adónico
onde se demorassem ninfas várias
que nele se vinham saciar).
De repente, reparou:
esse era o corpo desenganado
um esboço de desejos inúteis.
Nem músculos
nem quadris esbeltos
olhos azuis
ou um escalpe impecavelmente louro.
Apenas aquele corpo,
banal,
habitual,
o corpo que todos os dias vestia a existência.
Corpo adormecido
Pastor fiel de segredos incontáveis
e mapa dedilhado por dentro e por fora.
Um lugar
que de tanto ser familiar
entrara no roteiro do desconhecido.
Cada poro, cada pêlo, cada gota de suor,
as melenas soltas, as olheiras enegrecidas,
os músculos fatigados, as mãos tão gastas
– cansativos sinais do torpor que exauria as forças
traçava a rota da rotina cansativa.
À noite,
escondia o corpo nos lençóis
(fosse o abafo um vitral de transfiguração).
Rondava os cobertores o esboço do corpo desejado
um fantasma, apenas,
delírio da imaginação sempre pesarosa.
À noite,
despedia-se do corpo
abria os lençóis aos sonhos
que materializavam o corpo escondido nos cantos recônditos.
Naqueles lugares secretos
que só os sonhos podem revelar.

4.9.06

Diz o que a tua alma

Diz o que a tua alma
sangra
chora
transpira
mas diz o que a tua alma.

Sentinela maestra
penhora dos alvores
onde nascem os vapores iluminantes.
Deixa-a falar
enquanto o sol desce
e perfuma o horizonte
com o vulto das andorinhas:
o singelo arquear das asas
que descerra o vulto negro da noite.

Nem assim
calará a tua alma
pedaço que jorra o tudo que és
– do bom e do mau
que a alma não cuida das distinções.
E se a noite teimar
se ela quiser ir onde não ousas
conserva cada grama da tua alma
para que ela possa falar.

Dizendo o que a alma
suspira
anseia
cativa
desespera
o refúgio mais alto da tirana razão.

Tu
e só tu
na companhia da alma que fala
nem que seja
para que só tu a ouças.
Não hão-de fantasmas acometer
quando tudo se resolve na leveza da alma;
livre das amarras pusilânimes
quantas vezes fruto putrefacto
da auto-mutilação dos sentidos.

(Em Limerick, Irlanda)

24.7.06

Sinfonia da beleza intemporal

Que interessa?
Se os atacadores
se prendem aos sapatos
as cordas dos violinos em sintonia
o sol,
radioso,
irradia as frondosas fontes de luz
e todos os meridianos se tocam
fossem eles um íman
onde se dobra a humanidade.

Que interessa
vogar em nuvens de utopia
mergulhar nas águas límpidas
ou gritar de peito aberto
todos os afectos,
os amores ou os desamores
experiências férteis?

Que interessa
dar os passos que julgas necessários
palmilhar as pedras sangradas
pelo mar alvar?

Nada interessa
na câmara escura onde as imagens
se diluem no silêncio doído.

Nada interessa
por entre os espinhos cravados
nas mãos calejadas.
Se nem a calejada pele
resiste aos derrotados espinhos que a sangram.

Há-de chegar o momento
do murmúrio
que tudo revela.
Há-de então tudo interessar
até
as insignificâncias pintadas a carmim
as pedras disformes que fermentam o encanto
as paredes de gelo derretidas
escorrendo montanha abaixo.

Tudo,
tudo matéria-prima
do ósculo do universo,
a elegia sacramental
da embriaguez da vida

Tudo interessa.

19.7.06

O que te apetecer

Não te apetece
gritar
com as cores todas
que encontras na algibeira?

Não te apetece
fugir
dar aos remos
sem curar da maré nem da maresia?

Não te apetece
saltar
tecer pantominas circenses
no grito mais alto da alegria?

(Ou) não te apetece
emudecer
apenas emudecer
pela escuridão alojada na alma?

Não te apetece
olhar
de olhos bem esbugalhados
para pormenor nenhum escapar?

Não te apetece
dançar
mesmo as melodias mais estranhas
e as que se entranham nos poros?

Não te apetece
dormir
um pouco que seja
só para sonhares tão belo?

Não te apetece
mentir
cavar bem fundo na concha
que te protege dos açoites do mundo?

Não te apetece
zombar
de tudo e de todos
sem seres excepção à regra?

Não te apetece
procriar
no convencimento que a prole
é a exaltação do sublime que és?

Não te apetece
escrever
as palavras conhecidas e outras inventadas
para nelas te reinventares num ser adorável?

Não te apetece
endeusamento
gratificação pelos feitos
empertigamento de um ego reprimido?

Não te apetece (antes)
anonimato
as pétalas fechadas
de um perfume que te é exclusivo?

Não te apetece
viajar
demandar as quatro partidas do mundo
rejeitar o sedentarismo letal?

E não te apetece
o que não te apetece
tudo e mais alguma coisa
ao sabor dos dedos espontâneos que te batem na face?

18.7.06

Olhos quentes

Fonte de luz frondosa,
a lanterna que indica caminhos
ou a bússola imperdível.
Abraços afectuosos
lugares irrepreensíveis
onde apetece demorar
navegar na calmaria que eles transpõem.
A densidade do olhar
prende a respiração
imersa na sofreguidão dos olhos resplandecentes.
Neles
altar das coisas grandiosas
há um planalto sem fim onde se resguarda
a suprema tranquilidade.
Diria: as arcadas da temperança
o património da quietude
onde a bonança repousa.
Desses olhos quentes
exala o fio condutor da perenidade.
E nem quando a morte vier
hão-de deixar de ser quentes,
os olhos.
Imortalizados na memória
ou perpetuados nas sementeira colhida,
filhos altivos herdaram olhos tão quentes.
Capazes de tingir o gelo em água
nem icebergues gigantescos demovem
a chama acalentadora que neles cavalga.
Curam chagas maiores
com o sopro idílico que vertem,
uns olhos quentes singulares.
Tão singulares
que só apetece
neles demorar
a eternidade que for possível.

17.7.06

Domar a raiva (os perigos)

Acamar a letargia
enquanto o epicentro da raiva
ondeia no limar da demência.

Algures, do escuro,
há-de vir um raio de luz
a candeia acesa para o dilema.

Os lençóis bem dobrados
iludem o lodaçal que a letargia é,
remoinho donde não há arte para fuga.

No entanto, acetinados,
os lençóis onde a letargia aconchega
ali estão, apetecíveis.

Na convidativa forma dos acamados
camisa-de-forças sem retorno
ou cálice com a doce cicuta da prisão demorada.

A salvação, única,
na recusa do convite apetecível:
a impreterível tortura de sono.

É alto o risco:
da demissão do que nos habita
apoderado pela mansidão que nos dilui.

Põe-se a modorra ladainha
e jamais se liberta dos poros
dos tímpanos, da visão amansada.

Quando invadir as células cerebrais
e deitar mão do pensamento
somos apenas criaturas disformes, desapoderadas.

É imperativo declinar o venenoso convite
denunciar o fétido leito feito masmorra
pronunciar o livre arbítrio;

porque

no livre arbítrio
se consome a essência de todos os eu
todos, sem excepção, com direito a sê-lo.

12.7.06

A bondade dos deuses

Sacrificiais ritos,
não os corpos ungidos
com a benevolência divina;
corpos flagelados
corpos dilacerados pelas bombas
que ecoam a voz dos guardiães de um deus.
O sangue que escorre é o grito dos deuses
as metralhadoras e o terror
na voz dos deuses
ou pela voz dos que dizem falar por eles.

A interrogação:
e os deuses não são um imenso oceano de bondade?

As imagens do mundo
desnudam outra verdade,
impiedosa
cruel
martírio inacabado
impensável altar de sacrifícios
o ímpio odor da antítese do que são os deuses.

Estarão os deuses excomungados
pelos guardiães da zelosa ortodoxia
que clama em seu nome?
Serão ainda mais miragens
na boca apodrecida dos que usam violência
para vingarem o nome do deus supremo?

Na entrega desassombrada aos destinos divinos
o acto empenhado da ausência de si mesmo
deificação de uma imagem sem substância
e amesquinhamento dos dissidentes.
A morte,
quantas vezes.

Na cartilha do agnóstico
deus
entidade inexistente;
a fazer fé nas crenças alheias
sinónimo de uma benevolência infinita
simulacro de um celestial
prémio Nobel da paz.

Andamos todos enganados
mais os zelosos reitores das religiões
na enérgica demonstração de superioridade
do seu deus.
Ou deus é um embuste
conivente que é com as intolerâncias
as violências diversas
o sangue derramado
as vidas ceifadas em seu nome.

Se deus é a fonte da vida
como pode tolerar que em seu nome
mortos sejam tingidos
com as setas venenosas da sua doutrina?

11.7.06

Ecos perdidos

Do alto de um castelo alvar
o grito a pulmões abertos:
protesto sofrido
pelo desamor que milita
nas avenidas por onde nascem
espinhos que se cravam nos pés.

Ao vento
os ecos diluem-se nas serranias em redor;
lá ficam,
perdidas,
as sílabas gritadas
com a força de pulmões trinados.

Batem nas árvores e nas rochas,
as sílabas exangues de tanto uivarem,
e sabem que no seu repouso
nada fertilizam
– apenas o seu túmulo,
derradeiro,
a ensandecida rouquidão da voz
distante, cansada.
Uma enseada escondida
que só elas conhecem.

Revolvem as folhas húmidas
de uma noite fria.
Buscam um canto seco e quente
para nidificar.
Espera-as o nada
ou o tão elevado altar
onde se resguardam,
eternamente.


onde ninguém visita:
o seu sepulcro
a elegia das palavras perdidas
que podiam embelezar-se,
ganhar vida própria,
ascender ao patamar do património partilhado
pelo séquito de bebedores de palavras inebriantes.

Outro o seu destino:
fadadas para serem,
como milhões e milhões o são,
espúrias sílabas
só importantes para quem as soltou
– e só naquele momento de exaltação.

Sem poderem aspirar à grandeza intemporal
das palavras emolduradas
no lugar onde as coisas são eternas.

5.7.06

Efémera buganvília

Hiberna longo tempo
escondida das armadilhas do clima.
Longos meses só o verde da ramagem
árvore anónima, como tantas,
sem beleza que a distinga.

Entra o Julho.
Das bagas pendentes
irrompem uns tufos vermelhos.
A buganvília desperta da letargia duradoura
desfralda-se em vistosas flores carmim.
Se outrora a árvore permanecia anónima,
uma entre tantas,
agora que das suas ramagens
descem as flores imperiais
reina entra as demais
remete-as a espectadoras da sua beleza incomparável.

Tão bela
que as demais se acantonam em seu redor
num tributo que ela merece
pelos curtos dias em que mostra os tufos avermelhados.
São quinze curtos dias
de fuga da timidez invernal.
Quinze curtos dias
a passear o esplendor
que a faz ascender ao Olimpo do arvoredo.

Impossível passar ao lado dela
e não parar,
por uns instantes sequer,
na contemplação dos tufos garridos.
O sinal da efémera condição floral da buganvília.
Temente pela sua timidez,
ou temente pela morte futura
se por tempo demais desnudar os tufos carmim,
a buganvília rejeita o perene esplendor.

Oferta um curto tempo
para o êxtase da sua pujança colorida.
Depois,
tão depressa como despontaram,
os tufos envelhecem.
As cores engalanadas intimidam-se
e os tufos perdem a febril vivacidade
começam a tombar, subitamente apodrecidos,
jazendo no seu cemitério:
o chão abriga a copa da árvore.

A buganvília despede-se na sua curta aparição.
Promete engalanar-se quando passar um ano.
Refugia-se no seu castelo interior,
egoísta.
Ou então apenas o tempo para recuperar
das energias exangues de tanta cor irradiar
nos dias em que se desnudou.

19.6.06

Nem que fique só a memória das tuas palavras

Na tua boca
nadam as palavras,
esbeltas,
como os gestos inebriantes de uma sereia.
Mágica na articulação das frases
emprestas um brilho impossível
porque impossível para todos
menos para ti.

Mesmo as palavras mais arrepiantes,
ou até as que horrorizam,
todas escapam com a leveza das pétalas
que levitam pelo vento errante.
Podem ser tontas, inconsequentes,
podem ser admiráveis ou fogosas:
lá vêm, em catadupa,
na furiosa incandescência de uma tempestade
cerebral.

Se eu pudesse
arquivava-as, todas.
São como os pequenos grãos de sal
aparentemente dispensáveis
mas todos, sem excepção,
ingredientes sequenciais de uma roda dentada.
Preciosos,
como as palavras quer ecoam da tua boca,
ouro fundente que se prende
no sótão das memórias.

No fim da história
hão-de vingar as palavras que legaste.
No fim da história
hei-de acarinhá-las junto ao meu peito
para sentir o murmúrio que elas entoam
como se fossem a ressonância da tua voz.

14.6.06

Needless to say

Há palavras que ecoam na barreira do silêncio
como se fossem
pedras pontiagudas da barreira de coral.
Palavras que cavalgam na parede da ilusão
merecedoras do mais irrisório silêncio.

Há outras que apraz ouvir murmuradas:
é no suave trinar do murmúrio
que exalam pétalas perfumadas.
Há as palavras sentidas
que se soltam das entranhas do ser
com a pulsão enérgica dos instintos telúricos.

Palavras que arrebatam
convocam um gesto que se desfaz em afago.
A melodiosa sucessão das estrofes do poema
que se tece,
na sua fragilidade genética,
produto final de cores garridas
um turbilhão voraz de águas fortes:
salgadas, ou doces,
águas que purificam.

Há, porém,
o sortilégio das palavras desnecessárias.
São entoadas nos olhares
nos gestos,
na cumplicidade que não se pode descrever.
Nas palavras que aparecem indizíveis.
Na sua desnecessidade, preciosas estas palavras.
Silêncios de ouro com mensagens codificadas
que apenas os penhores dos sentidos
percebem na sua largueza.

Nos silêncios meticulosos
bebe inspiração o sentimento mais alto.
Vêm alados no esvoaçante trovão
que incendeia, qual candeia dócil,
os querubins doravante.

Na imersão das palavras desnecessárias,
(que não são inúteis)
as dobras de uma lombada debruada a ouro
o ouro tão precioso da matéria incomensurável.
Um banho que refrigera
apazigua demónios
temperança de um bálsamo apenas feito de palavras.

Das palavras que se dizem
das palavras genuínas,
mesmo das palavras fátuas.
Mas sobretudo
das palavras sentidas
e não escutadas
apanhadas nas ondas que desligam
da penumbra do sono letárgico.
Acima de tudo
das palavras
que nem sequer é necessário proferir.

13.6.06

O mendigo, pela manhã

Manhã deserta
poucas almas acordadas.
Sim o mendigo
recostado no granito dos correios
a palitar os dentes
com o pau do algodão doce
algures perdido no chão.

12.6.06

Corpos febris no avatar do desejo

Os lábios sorvem as gotas de suor.
Extasiam-se, na languidez do acto.
Lá de cima
um solfejo ritmado incendeia o compasso.
Há na suave curvatura dos rins
a magia visual que destempera,
povoa o ensandecimento selvagem.

Pelas mãos, braço acima,
repousando no pescoço perfumado.
Às vezes o deleite emparelha-se
com a lentidão premonitória,
uma dança provocação alimenta o rubor.
Pelo meio,
beijos transpirados,
a vontade de selar o corpo que se desvela
a suprema vontade de a emproar imperatriz
do meu desejo.

É este acto animal:
poço de paixão.
Instantâneos irrepetíveis
campo vasto onde todas as rosas se avermelham
todos os ramos se erguem no viço imparável.
Um campo tão quente
altar onde se sagram os corpos entrelaçados
e vinga o desejo vibrante.

Sempre a redescoberta,
em mais um acto de poética luta dos corpos.
Realização pela entrega ao outro
pela entrega do outro.
Recíproca luz, ou não, não interessa:
apenas o império dos corpos
empossando o reinado da paixão
na exaltação carnal das veias que pulsam
à espera do jactante fim.

Por fim
o sossego no restolho da luta
que desarrumou os lençóis
fez tombar o candeeiro
empurrou os corpos para o tapete.
Onde jazem, vitoriosos,
por entre as despojos da batalha.
O olhar que se troca
sanciona o silêncio cúmplice:
os corpos foram senhores do seu desejo
sem espartilhos ou descaminhos
primeiro guiados pelo travo doce da pele
no grito tão alto do espontâneo sentir.

Os corpos, esses,
imperadores do canteiro carnal
onde
por momentos
os amantes se entregam
esquecendo-se
que o demais existe.

5.6.06

Lágrimas de ouro

As lágrimas coalhavam o sal da memória
eram lancis onde bordejava a planura do espírito.
Intemporais.
O sal turvado enriquecido pelo sabor dos poros
entretanto percorridos.
Das lágrimas furtivas, o espelho:
os olhos marejados
lagos imensos das lágrimas retidas.
Do choro entristecido
do choro amargurado
do choro dos desventurados do amor
ou apenas do choro da alegria irreprimível.

Sempre lágrimas
um mar chão que se perde
pele abaixo
na tez enrugada que absorve as lágrimas.
São fugazes, mas sofridas:
a muita dor que as percorre
extingue-se na curta vida em que se consomem.

Os teus olhos são testemunhas
das lágrimas sentidas que se soltam
batem asas
e escorrem uma gota esparsa.
As lágrimas
vertem o turbilhão de estados de alma contraditórios:
a dor de viver
a dor pela dor dos outros
ou apenas a comiseração pela felicidade de quem a tem.
São monumentos
elegias da intensidade do frémito
que as empurra no emolumento das emoções.
São aviltantes?
Jamais.
Telas tecidas
na espontaneidade dos afectos desencontrados
ou no torpor do deserto lancinante
ou na solidão condoída.

As lágrimas têm a cor que lhe queremos dar.
O verde da alegria incontida
moldada nas lágrimas altivas;
o negro de um luto sentido
a saudade da pessoa querida ora partida;
o amarelo doentio
dor que consome a pacatez do corpo
expele as lágrimas como expoentes da dor tão forte;
o vermelho das efervescências
mergulhos em desavenças que ferem
ou o pranto da humilhação que verga em derrota.

Mas as lágrimas juntam-se
no fermento de um só sentido:
salgadas são
sentidas saem
e lavam o espírito.

4.6.06

Emanharado enigmático

No emaranhado
tecem-se os caminhos.
Gelificam-se os dedos dos pés
de tanto errarem nas artérias escuras.
Algures
de onde os raios luminosos se desprendem
há-de estar a resposta.
Por agora
apenas o desconcerto das ruas erradas
o mistério por desbravar
escondido no enigma celeste.
As teias desdobram-se no escarlate gotejante.
As teias tecem-se em si
e dobram-se sobre os incautos que passam.
Eles
palmilhando o emaranhado,
apanhados no alçapão da translúcida teia
e na anestesia que os exaure.
Quem sabe
a teia que manieta,
a resposta para o emaranhado enigmático.

30.5.06

O labirinto sem saída

Os caminhos do labirinto
adocicam o desafio que é ser.
Na combustão lenta
o pavio consome-se em marcha repousada,
indelével.

São as intermitências que contam
não a lhaneza que irrompe, feérica.
Pode vir o fósforo, aceso,
acendalha da fogueira que se há-de consumir.
Pode vir, espevitado,
que as impurezas lhe não dão guarida:
as faúlhas tardam
escondidas no véu escuro
que demora na combustão.
Emparedado no vácuo latejante
nem com sopros alongados desperta.
Se, por instantes,
umas fagulhas esboçam espreitar
entre o negrume da lenha
assoma a humidade imperatriz a cercear a fonte.

O labirinto, insondável.
Nas encruzilhadas que se sucedem
nem o fogo altivo se distingue.
Houvera ele de aparecer a escurecer o horizonte
e uma pista teria para a saída.

Dorme ainda a fogueira
manietada pela humidade malsã.
Lá fora
na colina vizinha do labirinto
as cinzas não se libertam da letargia.
E enquanto o fogo não levitar a candeia do fumo
o labirinto permanece
prisão sem saída.

25.5.06

Afecto ausente

Desconhecia os encantos escondidos
mesmo ali, ao lado das ruelas por onde passava.
Absorto na modorra existencial
na atracção pelo precipício que as coisas contêm,
desmembrado de corpo e mente.

Aliás
por vezes
desconfiava que tudo em si
era desmembramento
– como se as pernas andassem para lados diferentes,
a cabeça ao contrário do tronco
a mão direita acima do cotovelo
as orelhas no fundo das costas.
Achava-se a pessoa mais ridícula do mundo.
E definhava
na lentidão dos assomos de esquizofrenia
por entre os passos trocados de uma dança ignóbil
nos abraços que nunca dera.
Esboçava esgares de cinismo
ao ver afectos trocados entre anónimos transeuntes.
Por andar distante de si a necessidade dos afectos.

Aliás
por vezes
desconfiava que a chacota dos afectos
era mais uma doença que o visitara:
a inveja por viver fora da casa dos afectos.
Desdenhava-os
ria-se para dentro,
gargalhadas que só ele ouvia,
ao testemunhar
uma mãe acariciando o filho
os namorados abraçados com ímanes
o padeiro e a familiaridade com o cliente
o velhinho entregando afectos a um cão vadio
o simples “boa dia” cortês do jornaleiro.
Mortificava-se
por sempre ter fugido dos afectos
encerrado nas masmorras onde se refugiou.
Delas não se conseguia libertar
como se um pêndulo pairasse, sem parar,
sobre a sua cabeça
no hipnotismo da perene ausência dos afectos.
No isolamento propositado
sabia-se consumido por desconhecer os afectos
as sensações não experimentadas
mas que ele augurava boas,
a julgar pela entrega das pessoas aos afectos.

Aliás
por vezes
queria-se emancipar das altas ameias
de onde a vista nada alcançava.
Em momentos de lucidez
– que confundia com ensandecimento precoce –
só desejava sair à rua,
sorver o odor das pedras da calçada
das flores acabadas de romper dos seus botões juvenis
e olhar nos olhos dos desconhecidos
entregar-se em beijos retemperadores
abraços apertados
presentes às crianças que as fariam mais felizes.

As masmorras acabam sempre por vencer,
a sua tenebrosa escuridão
que esconde os afectos
embrutece o esquálido desiludido da vida.
Resta-lhe esconder-se,
dormir muito;
que nos sonhos, ao menos,
pressente o toque mágico dos afectos com os outros.

Aliás
por vezes
Apetece-lhe jamais acordar
daqueles sonhos frondosos que,
no púlpito da alvorada,
trazem o amargo sabor da vereda espinhosa do resto do dia.

Velho adormecido

Descansa na esplanada
enquanto o tempo de esvai
como as águas do rio, lânguidas, para a foz.

Contempla a ponte
feita das pedras gastas
tão gastas como a sua pele tomada pelas rugas.

Os cabelos brancos que esvoaçam
dizem-lhe que houve tempo
em que a juventude foi rainha.

Agora, enquanto o tempo se demora,
bate-lhe à porta a nostalgia
povoada pelas recordações que ungem o presente.

Entrelaça os dedos das mãos
e sente a pele rugosa
a batuta das adversidades semeadas vida fora.

Refugia-se nos claustros da nostalgia
o impulso para a solidão em si
olhando a constelação de coisas pequenas de tanto dizer.

Por entre as memórias
as mais recentes, funerais de amigos que partiram,
o tremor que se apodera ao pressentir que a porta se fecha.

Apela à memória mais longínqua
iludindo o que o espera – e atormenta;
descerra imagens frondosas, sem rugas ou cabelos brancos.

Nesses tempos
o coração palpitava com força
e tragava com vigor todos os segundos do dia.

Uma gaivota com silvo estridente
desperta o velho para o dia de hoje
e vê, com os olhos cansados, as crianças que rejubilam.

Erro fatal invejá-las
que cada coisa tem a sua idade
e o tempo é o reduto do que já foi gasto, irrecuperável.

Por todo o lado
a brisa fresca arrefece as ilusões.
Sabe o velho que lhe resta esperar.

20.5.06

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Manifesto da rebeldia militante

Amotinados
rebelam-se no ardor das causas.
Entregam-se às faíscantes lutas
desenfreadas bebedeiras
ideia emproada em razão só,
sem contestação.
Rebeldes
feridas por cicatrizar
pela relutante caminhada
por janelas com vidros quebrados
cravados na pele rija das palmas dos pés.
Ensandecidos parecem
ao puxar o lustro à razão das ideias.
Cegados por uma vara lancinante
andam aquém do discernimento,
fugazes entre as constelações do ser.
Emparedados no rigor da doutrina
agrilhoados a estreitos túneis escuros
onde a luz não ousa penetrar
tão pesados os muros
tão densa e fétida a atmosfera.
Amotinados
no suave apascentar da modorra
protestam,
a voz alta,
contra a acalmia anestesiante.
Tudo o que querem
é romper com as águas paradas
que se abeiram da estagnação letal;
outro quadro sem dóceis consentimentos
pessoas falantes sem o estigma do rebanho
que segue,
ordeiro,
pastores aviltantes.
Domina-os o método:
não o admitem,
acaso a pardacenta existência mudasse
e almas recobrassem o hélice enérgico,
eles iriam em busca de outro paradigma
outro furioso desencontro com a normalidade.
Eternamente insatisfeitos
neles
(e por eles)
fermenta o desprazer.

16.5.06

Gato atropelado

O gato morto
preto
a ser retirado da estrada.
Um homem
papel na mão
pega o gato pela cauda.
Sepulta-o na relva imunda
de beira de estrada.
Desfaz-se do papel
cospe para o chão
o ritual no nojo do acto.
O cadáver
ao menos
descansa do esquartejamento
por apressados automóveis.
Não será um enojado e indiferenciado
amontoado de carne triturada
a esvanecer-se com os rodados
que martirizam o que já nem cadáver seria.
O destino fatal do gato:
mais honroso
na coragem daquele homem
que dignou o apodrecimento final
do cadáver do infeliz gato.
A desdita tem momentos de sorte.
E vale alguma sorte
quando
cadáver já feito
ao bicho
a indiferença dos despojos?

14.5.06

Violinos dançantes

Canta-me a tua voz
o som melodioso
das cordas de um violino
debruado a ouro.
Os sussurros que entoam no ouvido
a mágica melodia da voz convicta
voz cálida que aquece os sentidos.
Vale a voz por mil instrumentos
como se orquestra fosse.
Uma afinada orquestra
que povoa o imaginário
com paisagens verdejantes
o céu pontuado por nuvens arquitectónicas
os montes que anunciam
férteis vales onde se descobre o rio
que retempera os sentidos.
Lá, onde as rãs coaxam
e os pintassilgos vivificam melodias piadas
onde a tua voz
me conta as coisas que quero ouvir.
Os acordes soltam-se
na finura das palavras selvagens.
Escoam-se com o tempo;
pudessem emoldurar o tempo
quando elas faziam acreditar
que vivíamos numa fotografia do tempo.
As ilusões são isso mesmo:
enganos dos afectos
emoção que deslumbra os sentidos.
A musicalidade da voz,
na entoação sublime das cordas dos violinos,
apenas uma dança imaginada
no tempo em que as ilusões eram reais.
Guardo na memória
a melodiosa voz que pertencia às ilusões.
Retenho comigo
o violino de onde essa voz se soltava.
E se a frieza de um coração empedernido
repôs a ilusão no quarto das recordações
tenho em mim o violino harmonioso;
não vá dele necessitar
por as ilusões reclamarem espaço
algures
num destes dias.

9.5.06

Sagração da alvorada

Os primeiros raios de sol
anunciam a luz clara.
Tonifica-se a alma
tinge-se o espírito com a frescura matinal.
Há na alvorada uma magia incomensurável.
Quando chega, discreta,
rouba a noite escura.
As cores e os odores renovam-se no que são.
Ganham vida
e emprestam-se ao ambiente
sequiosos da simplicidade da luz solar.

Primavera.
Amanhece mais cedo.
Os olhos estremunhados acordam
bebem a renovada luz do dia
pespegando o sol que,
breve,
alto vai cintilar.
Quando a alvorada gentil cedo se levanta
há um canto do dia escondido
na penumbra nocturna que ficou atrás,
derrotada na luz triunfante.
Vaga imparável
esquadrinha os cadinhos do céu.
Pinta-o de azul.
Antes há-de tingi-lo,
por instantes,
no alaranjado rubor do sol
que trespassou o breu nocturno.

Os pássaros acordam primeiro.
Deliciam-se com a mágica alvorada
no chilrear exuberante nas copas das árvores.
Pressentindo a luz caridosa
as flores soltam-se do resguardo nocturno.
Pássaros e flores
mão dada com a alvorada,
hospedam os transeuntes
(ainda a sair da letargia do sono)
para o dia frenético na cidade desassossegada.

Quando o sol se põe alto
já adolescente,
a alvorada despede-se na manhã.
Sem o encanto da alvorada branca
nem o sossego das ruas desertas.
Fina-se a alvorada
quando as ocupadas almas
batem a porta de casa e saem.
Vigorosas ou contrariadas,
apressadas ou lânguidas ainda,
para a rua já fremente.

Outra alvorada à espera
ciosa da luz
primeiro trémula, depois refulgente.
A saciar o apetite dos fogosos e indomáveis
amantes do bodo da vida.

8.5.06

Sapiência dolorosa

Unges a tua erudição,
pérolas agraciadas aos incultos permanentes.
Colocas-te no Olimpo dos sapientes
tradutor da instrução dos asnos impenitentes.

Deambulas nas danças insondáveis
pequenos os passos incompreensíveis.
É na erudição tão elevada que te refugias.
Até de ti mesmo.

Um dia,
tão inebriado
com assanhado conhecimento
esqueces-te de pôr o olhar em ti mesmo.

Ao despertares das incuráveis tarefas
da sapiência que espalhas,
vês ao espelho quem não reconheces.
Já não és tu, apoderado pela criatura em que te tornaste.

Virá o tempo da redenção.
Livros, enciclopédias,
mais os dicionários,
estulta matéria-prima de um desassossego.

Virás a tempo de recuperar o tempo?
Emancipação do castelo onde te aprisionaste
tocar nas pessoas, ora de caras belas
ora horrendas faces com verrugas e tudo mais.

Falar, sair do altar, caminhar
andar por sítios escondidos da tua torre de Babel
e saber que a ignorância que foi teu combate
é a aura de um povo tão feliz.

Só não saberás:
se renascido estarás
ou endemoninhado pela cruz que te crava
chaga ardente bem fundo.

6.5.06

Sonho, loucura

O sol de rompante tingido de vermelho.
A ruborizada cara da tímida desmascarada.
Máscara dos foliões do Carnaval das ilusões.
O desengano acometido aos passionais militantes.
A crença cega: ideias, pessoas, superstições.
O gato preto escondido dos que o esconjuram.
A ignorância que fermenta com a bonomia dos incautos.
Olhos fechados ao mundo, acríticos seres que vegetam.
Anomia interior que desagua num árido deserto.
Pisam areais escaldantes,
as areias que espalham miragens encantadoras.
Ensaiam sonhos do que não são.
Em miragens mais se revolvem
como se as areias crepitantes fossem
os lençóis que os aquecem.
Contemplam estátuas grandiosas
que só aparecem diante dos seus olhos.
Estátuas que enobrecem feitos impossíveis.
Quando acordam
assustam-se com a exiguidade do quarto que os aprisiona.
Amordaçados,
sem acesso à palavra que chama por socorro,
das amarras da camisa-de-forças já não se libertam.
Quando beijam a acalmia
percebem a ilusão dos sonhos que os mantêm ligados à vida.
Apetece cerrar os olhos
mergulhar no profundo sono,
sorver os sonhos idílicos,
paisagens brancas,
onde tudo é alvura
(o céu, as estrelas, o mar, a relva).
Como branca é a nuvem onde levita a liberdade esquizofrénica,
apenas uma liberdade onírica
fantasiosa
nua
na crueza do nada que bafeja bem alto
quando os sonhos já estão a pedir para serem sonhados
outra vez.
Aí sabem que levitam
na leveza que jamais os visitara,
passos lentos que pousam em nuvens almofadas.
Lá, onde as pessoas têm faces límpidas
olhos encantados pela luz pura;
onde os dedos se entrelaçam no afecto irreprimível.
Com o tempo
aprendem a viver espoliados do discernimento,
a droga vital e adorável
lenitivo da aquietação compulsiva.
A tranquilidade exasperante que nunca incomoda,
trajecto sem curvas nem encruzilhadas,
cumprido a eito, sem esgares,
ou um mar nunca encapelado
nem quando o vento fresco se deita
no mar que teima em ser chão.

Fogem,
fogem das coisas que são
das pessoas que existem
fogem deles mesmos quando fantoches alheios se tornam.
Ou apenas fantasmas propositados que se ensimesmam.

2.5.06

Ode à vida

Há almas que encontram paz na morte.

Sei que virás.
E sei que preparado não estarei
para te receber.
Pintam-te de negro.
Esconjuram-te, ensandecida és,
por desapertares os nós da vida.
Doentia e fatal
chegas um dia e ceifas a respiração.
Saltitas entre a penumbra,
para que ninguém te veja quando,
traiçoeira,
sorves ingénua alma para o alçapão.

Tu chegas a todos os mortais
que o são,
terrena e frágil condição,
por tu seres o que és.
Vestes de negro
quem chora a perda de quem levaste,
antecipando o choro invisível
da sua própria partida,
quando decidirdes que o indómito dia chegou.

Por tua culpa
vilipendiam o preto,
tu que cobres com manto de tristeza
os que sofrem com a despedida de quem levas
contigo.
Desapiedada,
dizes-te fiel da balança,
penhoras o equilíbrio da espécie.
Dizes-te
cultora da demografia aceitável.
E contudo
és cega quando tomas em teus braços
os mortais que o deixam de ser
quando se despedem dessa condição.
Será por isso que te dizem traiçoeira?

Por mim podes vir quando quiseres.
Convenço-me que sim,
que podes vir quando quiseres.
De preferência,
sem hora nem dia marcados.
Cá estarei,
não de braços abertos,
na jactante luta contra ti.
Há vida tanta por viver
que um sopro resoluto te afastará
Para algures,
um sítio que nem sei onde.

Virás,
as vezes que vieres,
e terás um obstinado amante da vida
insaciável no apego das coisas,
das pessoas, dos afectos.
Insaciado ainda por tanta vida haver.
Esse é o bolor que te incomoda,
ó morte tenebrosa:
para longe,
longe do horizonte.

30.4.06

O quarto gelado

Num losango iluminado
rangem os dentes,
tiritam com o frio não aquecido
pelo losango.
Lá pertencem
os ossos dobrados
pelo ressequido, gélido ar que dói.
Nem agasalhos
nem uma bebida quente
para resgatar os corpos do torpor.

A noite longa promete saga interminável.
Os corpos abandonados ao gelo
olham para a fumarola soltada
pela respiração resignada.
Na janela depositam-se os cristais de gelo.
O ar límpido
desnuda a lua cintilante,
empresta a nitidez ao ar cortante.

Naquele quarto
apenas o silêncio quebrado
pelos corpos incomodados
– que se movem no encalço do calor
no ensaio da ilusão do frio translúcido.
Ou o silêncio violado
pelo gemido dos dentes,
pelo frio tão letal.
Os corpos aninham-se
fossem adivinhar que o ninho
descobre uma réstia de calor.

O gélido chão entra pela carne
apodera-se dos músculos
enraíza-se,
toma conta dos ossos.
Algures a meio da noite
a dormência latejante anestesia os sentidos.
Dedos que não se sentem
o frio que deixou de ser uma dor
ou os sentidos que se ofuscam.
Alucinam os sentidos
enganando os corpos já entorpecidos.

Ou se apressa a aurora
ou o fantasma da despedida acena,
sorrateiro e indesejado,
cruzando as paredes de madeira.
Ou se apressa a aurora
semeando a luz que afugenta
as armadilhas dos precipícios,
ou o maior dos cadafalsos,
ali encerrados,
no refúgio derradeiro.

A luz aguada do losango
mantém os olhos acordados.
Impede que os olhos se recolham,
quem sabe?,
no derradeiro adormecimento.
Tomara
que luz tão tímida
franqueie o portão ao majestoso sol.
A alforria daquele cárcere necessário.

26.4.06

Frágil incerteza

Que mistérios explicam a fragilidade
de uma massa tenra e, contudo,
pétrea?
Por mais voltas que dê
não sei onde encontrar
a nascente da fonte que me sacia.
Revejo as voltas que a água dá
montanha abaixo:
plácida no estio
vertiginosa no dilúvio que se deita
nos contrafortes da serra.

Ainda que os olhos sejam as testemunhas
da dureza da pedra
os recortes da água descendente
desnudam a fragilidade da granítica serra.

Nem sempre a vista alcança:
onde se esconde a fragilidade
na penumbra da imperturbável rocha,
ou a coriácea força que levita
de um corpo tão frágil.

Um quadro
com as pinceladas da antinomia,
onde as coisas certas estão fora do lugar.
Nem as certezas são seguras
na indefinição dos termos.

É a altivez das coisas que se redescobrem
não no seu contrário
mas na sua essência esquadrinhada.

22.4.06

Louco errante

Vagueia, perdido.
Nem sequer carente
de um ponto cardeal
na bússola que não tem.

Desencontrado da lucidez
mete fala com os passeantes
remexe o lixo
e nada nem ninguém procura.
Deambula em desnorte
nos andrajos propositados
calças desafiveladas varrendo a sujidade
camisola coçada e rota
manchas de vinho tinto nas mangas.

Erra pelas ruas da cidade
desafiando a placidez dos bem-postos cidadãos:
uns incomodam-se
desviam a cara no refúgio da hipocrisia;
outros guardam a perturbante imagem
não se desenvencilham do incómodo.

Com um esgar alucinado
assusta a criancinha que passa.
Da progenitora tão protectora
vem a reprimenda ao louco,
dedo em riste,
“que maçada, que maçada”.

Atónito,
o louco errante
fecha-se na luz escura
do quarto de onde nunca saiu.
A criancinha,
um petiz como ele,
a guisa de brincadeira
que apressados adultos de dentes cerrados
não são mestres.

O louco não se entristeceu.
Nunca marcou encontro com a tristeza;
nem sabe onde encontrar a alegria.
Tristeza, alegria, choro, riso
acidentes no mapa que tacteia
pelos anos fora.

Saltando de passeio em passeio,
ora querendo ir em frente
ora ameaçando que recua,
o mundo insondável do louco errante
tresmalhado do rebanho dos lúcidos.

Irado parece
na prisão dos tortuosos becos onde desagua.
Ou apenas a suave opressão da tranquilidade
não ser achado nas contas dos deveres
que aos lúcidos pesam.

20.4.06

Voz salgada

As palavras levitam
atiram para cima de todos
o sal quente da tua boca.

Tanto há-de ficar por ouvir
mais o sabor perdido do sal
das palavras por entoar.

Pelas articuladas palavras
que ecoas,
as algemas de ti mesmo.

Sobem dos pulmões
vomitadas com o ar ofegante
dos sentidos alterados.

É o sal da vida,
emoções desenfreadas
sorvidas no cálice frio.

Essas palavras,
mais as que estão por dizer,
o cativeiro dos empenhados.

Extasiam-se,
como se salgada
fosse a plenitude da vida.

Nos sonhos e nas evocações
é essa voz salgada
que desfralda no alto mastro.

Voz que açambarcou
todo o sal de todos os oceanos,
agora só um legado de insípida água.

Houvera alguém de aprender
a destilar o salgada tua voz
e a desdita firmada na pequenez das palavras.

O sal da tua voz é o ouro valioso
o penhor da grandeza das palavras
que soam, cantadas, com o sabor salgado.

19.4.06

Espólio

As cinzas adornam as páginas dobradas.
Um restolho que passeia na memória,
o espólio do tempo fugido.

Na máquina do tempo
as imagens percorrem a tela
fogem quando as quero reter
por uns instantes.
Recordações
que fazem esboçar um sorriso,
ou
experiências dolorosas,
quantas vezes de uma dor procurada
como caçador furtivo
persegue a sua presa.

Eram tempos
em que a tristeza
não queria viver abandonada.
Tempos
do ar plúmbeo
cores carregadas com as sombras
sempre presentes.

Desse tempo
guardo feridas já saradas.
Revejo as cicatrizes abertas
o vermelho carmim do sangue exposto;
revejo-as
património da indecisão,
o fausto manjar da perturbação
sorvida com deleite.

Desse tempo
apenas o restolho que foi pousando
com a calmaria dos anos.
O espólio nos meus braços,
enternecedora imagem
do ontem não renegado.

Apenas vontade:
não dedilhar as páginas para trás
deixá-las inertes no seu sono eterno.
Houve tempo que passou:
empedernido
esquálido
emoldurado
numa fotografia que retenho,
o sopro gélido que petrifica a memória.

Só isso,
e nada mais,
quero do tempo ido.

18.4.06

Vulcão domesticado

A aeronave filma o vulcão,
temerária,
no voo de pássaro.
Mostra a cratera do vulcão
como ninguém a descobre
do sopé da encosta.
Uma larga boca
vomita as fumarolas
que adivinham lava incandescente
a ser regurgitada
– só não se sabe quando –
das entranhas da cónica montanha.

O cinzento
tomou conta da paisagem.
Cobre-se com os fumos
fugidos das frinchas que irrompem
das basálticas rochas.
A montanha troa,
irada,
assusta quem não a conhece.

Os nativos,
habituados ao mau humor do vulcão,
convivem com a feérica actividade.
Não querem temer
a distracção dos elementos:
o arrebatador mar de lava tórrida
ladeira abaixo,
tragando o que encontra
até repousar no fim do declive.

Têm pesadelos:
o vulcão,
furioso,
a vomitar lava que explode
num tétrico fogo-de-artifício.
Na aurora humedecida
olham de relance para o vulcão.
Fitam o cume
na ansiedade de quem clama
pelo sossego da grande montanha.

Sé então,
serenados espíritos,
descem os olhos
pelos contrafortes da montanha.
Há gerações
sempre o mesmo ritual:
um coração inquieto
pulsa veloz
desperta dos pesadelos
com a aura da bela montanha.

Tementes,
orando todos os dias
para que um bom deus os proteja
de um vulcão que promete
despertar.

11.4.06

Mar arrebatador

Desta terra
levo comigo o oceano.
As lágrimas que nele tumultuam
com a espuma fina que se perde
nas rochas enegrecidas.
Todo o sal que cristaliza
nas pedras gastas pela fúria das ondas.
A dor,
a dor sussurrada
pelos gemidos das ondas em dias de tormenta.
O odor da maresia
que invade a ossatura
nas húmidas noites de Verão.
À mistura com o nevoeiro
que se alimenta na maresia invasora.

Desta terra
guardo as imagens do mar tão belo.
Dos pescadores
e da sua imperial paciência,
das traineiras que fogem do rio,
remam contra a embocadura do estuário,
como quem se mete na boca do lobo.
Das gaivotas
em coreografias dementes
na demência de quem busca alimento
entre os restos já desaproveitados.

Desta terra,
o mar,
ou apenas
o longo lençol azul
que se deita na calmaria da brisa.
Longo mar,
infinito horizonte,
o travo ora doce, ora amargo,
demoníaco ou sublime
curador de exaltações singulares.

Partirei,
levando em mim
a lembrança
de toda esta água salgada
que inspira.

Nos meus olhos
todas as gotas do mar imenso.

9.4.06

Roseiras bravias

Das roseiras
o bailado de odores.
Ungido pelas pétalas
que foram leito
das dóceis gotas do orvalho
nocturno.
O sol da primavera,
já alto,
fornalha incandescente
que devolve o orvalho
ao etéreo.
Reluzem as pétalas
das rosas douradas,
tingidas num quadro de ostensiva
beleza tranquila.
Singular sabor
hibernação nutrida
na coreografia
das cores
e dos aromas
das rosas.
Para quem as quiser contemplar.

4.4.06

O navio candeia

Quando era pequeno
o navio aportava nas águas calmas.
Trazia no porão
o sal das terras distantes;
a miragem de terras
que nunca hei-de ver.

O navio
com a escolta de rebocadores
extasiados com a visita.
Já não sulcava as águas paradas,
empurrado pelos bravos rebocadores
até ancorar no cais velho.

Mostrava o garbo
da muita mercadoria empacotada
nos enferrujados, sujos contentores.
Ficava parado,
dias,
à espera
da lenta marcha dos estivadores
do langoroso desembarque da mercadoria.
Esvaziado de algum conteúdo o navio
outra se encavalitava
nos corredores desamparados.

Dava o navio
notícias do progresso do mundo.
Para mim
o repositório do navio vagarosamente
entrando no porto
hasteando uma bandeira colorida
que esbraceja tão devagar,
no ritmo de uma brisa
inesperadamente tranquila.

Envelheci.
Perdi o rasto do navio.
Só não sei
se a falta de tempo
– ou a desventura do navio ter fugido da minha vista –
selou o decesso do grande barco.
Não sei
se foi desmantelado
num longínquo estaleiro
nas águas gélidas do Báltico.
Ou se a surpresa reserva mais visitas
que saltam fora da minha órbita.

Qualquer dia
estou de visita ao porto.
Espero pelo navio
como quem espera por regressar
à infância deixada lá atrás.

No tempo do rasto perdido.

3.4.06

Parque das nações

A suave doçura das framboesas
crepita.
Contrasta com a acinzentada luz
das nuvens que escondem,
tímidas,
o temerário sol.
Lá fora,
as pessoas passeiam
digerem vidas atribuladas
esventram as sinuosas curvas da vida
no gelo quebrado pela tepidez
primaveril.
Não as crianças:
na algazarra
só conhecem a inocência da bondade.
Os mais velhos
ora repousam na esplanada
ora palmilham a calçada que adeja o rio.
Dão tréguas aos espinhos aguçados
cravados na garganta sangrada.
A hora do descanso,
refrigério dolente
um tempo que apetece imortalizar.
Não,
os espinhos crivados
não derrotam os sentidos;
só o perfume das framboesas
repousando na boca
no hiato das adversidades.
Oxalá
todo o tempo fosse
captura dessa
bonomia.

(Lisboa)

28.3.06

Perfume

Na tua pele
o aroma exaltado das amoras.
Fragmentos,
alva ou ruborizada
apetece tragar as pétalas perfumadas
soltadas de cada poro.

Às vezes adormeço sobre ela.

No vento soprado
vem o hálito que reconheço na tua pele.
Ou nas velas que incendeiam a noite escura
o odor roubado à tez esbranquiçada.
Um percurso sem espinhos,
aveludada avenida,
tactear vagarosamente os centímetros da tua pele.

Ungida pelos dedos extasiados
com a fragrância de morangos silvestres,
tágide que recobras os sentidos.
A pele adormece
saciada nos sentidos
e a cabeça repousa no leito que ela oferece.
Vertem-se as lágrimas enxutas
e a tua pele é o santuário onde os dedos
sabem dançar.
Esboçam estátuas imaginárias
contornam as curvilíneas dobras
que escondem mais mistérios.

Na repetição dos dias
há sempre novos segredos
resguardados na tua pele.

21.3.06

Dez minutos

Dez minutos
para dizer poesia.
Para estender a mão.
Olhar bem fundo, nos olhos de alguém.
Dez minutos chegam
para cativar a temperança.
Pequenos gestos
fortuitos ou pensados
espontâneos ou provocados.
Nos dez minutos
em que a nuvem passa
encobre-se o sol
e as cores tingem-se de sombra.
Nem assim,
dez minutos algures e depois,
o rasto da luz se perde no sempre.
Dez minutos
Hão-de tardar senão
em derrotar a sombria obstinação.
Tarefa singela:
Só, e só apenas,
dez minutos de contemplação.

14.3.06

Lampejos da primavera

As cores enrijecem
no troar da cálida temperatura;
anúncio da invernia que se despede,
em breve.

O cansaço do frio que torce os ossos
e da chuva-sempre-demais
– mesmo quando rareia –
apregoa outro hemisfério.

Pássaros
em voos inebriantes
cantam a alegria de contágio às pessoas,
em breve.

Das árvores
desponta um tímido, mas alegre, bouquet
o perfume que abre a porta
do armazém dos pesados agasalhos.

As pessoas soltam-se do acabrunhamento
no aligeirar dos corpos
que querem respirar
por todos os poros abafados pela invernia.

7.3.06

Desintoxicar

Fugir
no tempo que há
longe da matilha palavrosa
sem saber onde
é o refúgio.

Cura de desintoxicação
e demanda do belo
que rareia
como volúvel é o ar na altitude
da montanha.

A singeleza de pequenos passos
como se o terreno
pudesse ser dedilhado
e todas as pequenas pedras
apanhadas do solo.

Em todas elas
a impureza escrita
do solo pedregoso e sujo;
retiradas ao solo
purificadas na mão hospedeira.

Pequenas pedras
disformes, angulosas,
disfarce da putrescência
que clama o refúgio,
pedras agora debruadas a ouro.

5.3.06

O outro lado do espelho

Os olhos retratam o que vês
deste lado do espelho?
Será um sonho, a visão
deste lado do espelho?
Seja a fantasmagoria
que te acompanha;
ou a fuga do cenário medonho
que te leva a ver as coisas
deste lado do espelho
– quando, afinal, estás do outro lado do espelho.

O corpo não te deixa passar a linha
deste para o outro lado do espelho.
Quando cerras os olhos
e mergulhas no denso sono
duvidas de que lado do espelho
te encontras.
Tudo, apenas,
uma miríade de incógnitas.
Se certeza há é a ausência
da certeza.
És dois hemisférios,
dividido entre ambos os lados do espelho.

Ponhas o pé de um lado ou do outro
inquietam-te as sombras doentias
de te saberes abandonado do lado fugidio.
Percebes as vozes que gritam
do lado de lá do espelho,
a confusão de palavras que se atropelam
a absurda linguagem sem sentido.
No lado em que ficas
só há silêncio
um silêncio que ensurdece
os ouvidos repletos de loucas vozes
que vozeiam palavras vãs.

No sono
a moldura de um pesadelo:
a encenação do que acreditas ser
na vida em que estás acordado.
Quando a aurora te resgata do sono
a inércia da desrazão fala alto:
se quando sonhas
não são apenas sonhos de que sonhas
um turbilhão que te sufoca
em camadas mais densas
de te não saberes existência.

De olhos no espelho
sempre com a inquietante lucubração
de que outros olhos,
porém teus também,
te fitam
do lado de lá do espelho.
Na louca ansiedade loquaz
levantas o espelho:
só parede.
Nem o reverso do espelho
alguma coisa esconde,
a não ser uma tela acastanhada
o biombo do outro lado do espelho
um mistério por revelar.

14.2.06

Namorados perenes

A beleza discreta.
Palavras frontais que desarmam.
Dedos quentes que percorrem com prazer
O meu corpo.

Quis-te dar tudo.
O sol de todas as cores.
Pintar os quadros mais belos
Pintar a tua pele macia,
um resplandecente sopro
que trouxe pureza de ar.

No teu altar
percebi como as coisas são:
reais, não imaginadas.
Caí em mim
agraciado pela temperança
de seres tu ao meu lado
namorada, sempre namorada.

À noite,
encamisados nos lençóis que nos recolhem
só um beijo
para a renovação dos sentidos.
Parece pouco;
na idealização do amor impossível, decerto.
não é de impossibilidade que careço.
Apenas palavras curtas e acertadas,
gestos sublimes e tão intensos.

Sentir
que há alguém
que divide uma vida
alguém
que franqueou as portas da sua vida
à minha existência.

Uma partilha.
De mim por ti, em ti por mim.
Um travo adocicado
que dá sentido aos sentidos.
Olhares, pele, carícias, palavras.
Ternura.
Um património que soubemos levantar.
Nosso.

11.2.06

Matéria solúvel: cartilha do agnóstico

As cortinas da metafísica escondem
almas torturadas por divindades estarrecedoras.
Oram verdades inconsubstanciáveis
para o rebanho calar no véu da fé.
A cegueira de quem teima em ver na escuridão.

Os sacerdotes, metidos nos seus trajes,
vomitam a verdade, lava rubra,
como escaldante será à boca do vulcão;
patrulham a vida dos crentes,
uma porta aberta para a candeia dos sacerdotes.

Pregam a virtude a viciosos seguidores:
volúvel prédica, só encher o verbo
tão fátuo como o não foi
todo sangue derramado
em nome de superiores credos.

É a lava fervente que jorra colina abaixo.
Repousa nas ladeiras
Cristaliza convicções
Leva a vida de quem dela espera
terapêuticas virtudes.

Espera-os o remanso da vida prometida
que chega mal os olhos se cerram
definitivamente
numa escuridão relapsa
Torturante nada tão angustiante.

Das fés germinaram sementes de ódio;
pelas fés, espalhadas por todas as terras,
sinais da antítese do que elas reclamam ser:
morte em vez de vida;
ódio em nome de um amor retórico.

10.1.06

Em demanda da ternura

Escolher para ti um trono de ternura.
Regressar aos beijos
repousados na tua pele branca.
Soltar as amarras
que enregelam os afectos.

E depois,
pela noite,
acolher-te nos meus braços
residência dúctil para a tua fragilidade.
Sem aprisionar a leveza escondida.

Lá fora,
enquanto sopra a ventania invernal,
escondem-se os fantasmas de antanho.
Braços férreos empurram-nos
para latitudes distantes.

Os fantasmas,
como o vendaval,
escurecem a gélida distância cultivada.
São a bolorenta lassidão dos dias
que se dobram, repetitivos, esquálidos.

Há lugar a toda a ternura de outrora.
Haja força para derrotar
as vesgas madrastas que não ficaram vergadas.
Rancorosas, teimam em fertilizar
a pantanosa existência.

Haja forças; mas encontrá-las,
mister difícil?
Só nas acabrunhadas facetas
do asceta que vive mergulhado
na escuridão de afectos.

Varram-se as lâminas pedantes
das profecias negras que ondeiam;
Enxotadas sejam
e reentre o excitante hábito
de saborear as pétalas adocicadas da ternura.

Outra aventura será só misericordiosa
do pleito pela comiseração.
Camisa-de-forças anestesiante
que faz passar os dias
como se longos minutos fossem.

Perder o tempo,
ele já tão fugaz?
Tontice de um louco
que não escuta a poeira louca
apoderada dos seus sentidos.

Tudo ou nada
– sem lugar ao intermédio.
Ou a nau que parece parada;
no rebobinador da existência,
a consciência que andava, sorrateira.

Inércia letal,
divã de um comodista apaziguamento.
Recobra a quentura em ti,
espolia essa inércia
nas prateleiras do perdível.

Saberás então
que um sussurro lânguido
preenche todo o espaço
que vai daqui até à lua.
Ela, vigilante, espera pela demanda.