20.11.06

Touro sangrado

A faena discorre,
lenta,
como se passasse em slow motion.
O touro
exangue de forças
arremete com brandura contra a toureira
que passeia a pesporrência de quem adivinha
bandarilhas espetadas com um toque de Midas.

O bicho sangra no dorso
através das farpas dolorosas
cravadas no pêlo negro.
Volteia-se
troteia a custo
cerca a toureira
já sem a ameaça do bicho feroz
que o foi antes de covardemente domado.

O sangue carmim que jorra
enfraquece o touro.
Entra pelos olhos da toureira.
Dir-se-ia:
tinge a capa de um encarnado acérrimo.
As veias dilaceradas pelas farpas desumanas
trazem o sangue
que se mistura na negra pelugem;
definha assim o bravio animal
até ficar a jeito para a estocada final
da toureira impiedosa.

O público
alarve
aplaude.
Penhor da tradição
(seja lá o que a tradição significa
seja lá a força dada à tradição).
Excita-se
com o seu próprio sangue a ferver
pelo sangue do animal
que vai jorrando dorso abaixo.

A alarvidade impune,
ou a animalesca veia humana:
um festim impúdico
a ceifa da vida de um animal sem culpa
que não seja a desdita de ter nascido
bovino bravio.

Na arena
esfrega as patas na areia revolvida
enquanto a vista se ofusca
nas energias deslavadas.
Já nem o vermelho da capa o enfurece
idas as forças brutas
que outrora cultivou em campos abertos.

Despede-se
ajoelhado perante a carrasca
que esperou pelo instante final
das forças ausentadas.
Quando parou,
esgotado,
diante dela,
quando deixou de lhe fazer a corte
e nem a raivosa reacção ao feérico encarnado
o mobilizava;
sinal da sua inutilidade
sinal da função cumprida
apenas um corpo inanimado se espera
depois de cravada
bem funda
a espada que lhe secciona a aorta.

Até o ritual da morte
é um festim desapiedado:
a despedida da vida
é um lancinante percurso
que entusiasma alarves espectadores.
Ajoelha-se
debate-se
parece acreditar
que um raio o viria revigorar
ainda;
tomba de lado e esperneia
para gáudio da turba ensandecida
delirando com os urros intimidados do bicho;
não o socorrem
nos urros que clamam por uma piedade tardia;
só apetece deixar de ouvir os urros
sinal da função cumprida.

É um corpo inerte que jaz
sem ouvir o aplauso demorado
das bestas gentes.
Um corpo inerte
ainda sujeito à humilhação final:
uma orelha cortada
orgulhosamente ostentada em redor da arena;
e o cadáver arrastado para fora da arena,
que a função prossegue:
à espera de mais sacrifícios
que nos devolvam
à ancestral bestialidade.

Sem comentários: