31.7.18

#675

Cavalo come rainha:
a zoofilia pode ser no xadrez.

Saldos

Terreiro minado
das mercancias em saldo.

Não têm soldo capaz
os inebriados
os contumazes desaprendizes
seguindo a centelha ardilosa
antes de desaguarem no poço fundo
onde se empenham
(literalmente).

Salda-se tudo:
até a honra
que as honrarias 
são funestas imprecisões sem serventia
estrofes sabotadas no sofá gasto
e as mercancias a que não chega o soldo
convocam a creditícia lamúria.

Algumas mentes avençadas
tudo entenderam em devido tempo:
até os mais previdentes
reféns se põem da conspiração 
dos endinheirados:
o crédito é uma droga dura
o martelo pneumático 
que percute sobre as almas deslumbradas
com o preço da esvaziada alma
nas mãos dos pérfidos credores.

Algumas mentes avençadas
assim avisam
(sem cuidarem de aliviar 
o registo de interesses
em ocultação de suas avenças particulares).

#674

Auferir o infinito mapa nas mãos
enquanto corre o sonho
em seu fado ilimitado.

30.7.18

Autoteatro

Desossado
fiz o papel de mim
nesta peça sem preâmbulo. 
Suei a carne viva
no corrimão da estufa outonal
sem conselhos de previsão
ou oráculos em fornos avivados.
Por dentro da espátula forçada
não soube dizer
se foi difícil o papel de mim mesmo:
exigi o desprendimento cautelar
a emulsão de mim no seu exterior
nos preparos desarranjados
em constante vociferação
contrariando a corrente do cais.
As vezes que admiti
ser a personagem de mim mesmo
foram as mesmas
que adivinhei ser sacerdote
envergar uma sotaina e pregar mandamentos
ou a farda estiolada
e pregar em paredes nuas.
À saída do palco
dir-se-ia vir detido pela diferença.
Fazer de mim
contra os estilhaços de um espelho
(estes eram os preparos do palco
entre a fuligem noturna
e uma audiência em silêncio 
– ou, por vício de escuridão, 
de audiência sem audiência)
foi como tirar uma fotografia do avesso
e dar ao tabuleiro o mesmo jogo.
Folgo em saber
que não havia vivalma na audiência.

#673

No azulejo gasto
selo o inconfundível lugar,
o umbral das histórias sem ermo.

29.7.18

#672

Escrevo
porque não sei
de matemática.

28.7.18

#671

Marquei a casa da partida
no dorso do mapa 
(com uma faca):
não espero pela casa da chegada.

Infinito

Nesta cordilheira de espaços
desarmadilho as palavras:
agora não têm véus
e nem os eclipses contumazes
as conseguem deter.
Considero as hipóteses;
de vez em quando
a esquadria do tempo
incomoda-se
com os tenentes da soberba.
Acauteladas as velas por desembainhar
sobram todas as hipóteses
jogadas no palco por inventar.

27.7.18

O outono foi invadido pelo inverno

O feixe sem véu
(crisálida promitente)
desfaz os escombros inviáveis.
O outonal frio
deixa tudo em suspenso
como se a aurora se demorasse
para além do ponto de congelação.
Amedrontados
(este frio veio a destempo)
os crisântemos entumecem
com as gotículas de gelo 
abraçadas a seus caules.
Hibernam.
A geada
vista ao longe
deitou-se sobre os campos
como se fosse seu manto branco
e não se vê jeito de se recolher
ao estado líquido:
um nevoeiro pusilânime
persiste no resto da manhã.
Os idosos não têm lembrança
de ser tão frio a destempo.
No outono com sabor a invernia
as latitudes foram trocadas
e em seu lugar desponta 
o clima descompassado.
Os idosos são porta-voz
do invulgar estado das coisas.
Os mais novos
metodicamente desconfiados
interrogam-se interiormente
se os mais velhos não caíram na desmemória
ou se eles próprios,
de mais novos serem 
e por a desatenção ser estrutural estado,
nunca deram atenção ao outono.

#670

Acordo. 
Uma multidão de dedos 
tateia o meu corpo 
como se fossem aranhas tentaculares.

26.7.18

Às de trunfo

Tenho o trunfo farto:
meia-dúzia de ameias
entrelaçadas no nevoeiro
onde se aninha o pensamento. 
– E de onde te antevês
congeminas as palavras servis?

Falo ao ouvido da manhã
na insonora estafeta 
que convida ao colóquio. 
– Não te sobram braçadas
nas algas pueris no dorso das ondas?

Ouço o murmúrio da chuva miúda
nas costas da atenção
enquanto os gatos se escondem
em muralhas de sono. 
– E não te é dado saber
dos capítulos sem páginas
da vetusta purificação na rima tardia? 

Abraço o tempo teimoso
na mirífica varanda
que ampara o precipício. 
– E se o vento atroz
conspirasse no pulcro entardecer
e fosse semente do caos?

Bordejo o rio seco
na angustiante paisagem estiada
sem a secura das interrogações
como passadeira inviável. 
– E lutas com as mãos cheias 
na aspiração da justiça sem medo?

Tenciono não jurar outra vez
nos meandros da memória bastarda
pela contemplação do tapete que me espera. 
– E consegues sentir
a turbulência a fiar o sono
os remendos de alma dilacerante
numa lamentação infecunda?

Desato os penhores
na demissão dos embaraços
que se alinhavam no estertor à volta. 
– E que razão fabricas
à razão das horas enfeitadas
com tão eloquente destrunfo?

#669

Sociedade contemporânea do fingimento:
um ninho de mitómanos.

25.7.18

#668

Ficávamos atónitos
quando a professora de francês 
esbravejava:
“nas minhas barbas!”.

Contagem líquida

Verto no lago sem nome
as dúvidas excedentes
como se o lago,
de tanta água conter,
precisasse de um acréscimo.
Esta é a gravata
que me aperta a carótida,
o nó górdio sem resposta.
O chão molhado
também recebe chuva
e não é por isso
que a chuva perde serventia.

#667

Deixo de acontecer
no penhor das chaves amorfas
enquanto o sol se emacia no céu abatido.

24.7.18

#666

The right side.
The write side.
The bright side.

Pólvora seca

Revejo 
o bolso esfarrapado
de onde caiu a vergonha.
Revejo
a farsa inteira
o mar sem cais por perto
os sonhos adulterados
as palavras erradas
o tempo sem modo
sem medida.
Revejo 
como se estivesse no cinema.
As ondas deitando-se
sobre meu rosto.
Na arquitetura sem regra
destronando as palavras
num desmodo a eito
no recanto lúgubre
onde foi temporada.
Luto por nada rever
nesta contemplação impróvida
não convocada
refém de uma sonsa recusa
em emparelhar o pretérito.
Revejo 
o que não quero
antes de à memória
se soerguerem as contundente lembranças.
Revejo 
o que a indomável vontade patrocina
como se as flores tivessem perdido cor
e no mar já não houvesse marés
e as palavras ficassem todas vazias
pungentemente sem sentido.
Perco-me 
num arquipélago
num arquipélago de um homem só
num arquipélago de que não há mapa
e não quero ser o tutor da cartografia
antes quero
que a matéria enquistada na poeira
seja desalinhada da memória.
Vejo ao longe
a linha do comboio
e fico à espera
horas e horas e horas 
que se fazem tempo adulto
e não passa nenhum comboio.
Talvez o sono
(adulterado)
precise de música
e de exorcizar mitos que nunca foram
para juntar os despojos nas mãos
fazendo semente a um lugar diferente.
As ondas deitam-se
sobre meu rosto 
– e eu continuamente seco.
Sem saber da justiça
do segredo dos gatos
de muitos idiomas
dos preparos da alma
do degredo dos inúteis
e das ciências muitas que não foram
apeadeiro.
Não tem importância.
Às perguntas
encomendo o ritual da insubmissão.
Prefiro assim:
a tempestade que desembainha o pensamento
no cadafalso das memórias
(se for preciso).
Até que as ondas se deitem
sobre meu rosto
e eu aprenda a ficar molhado.

#665

E se aos costumes
mandarmos as mordomias
que se aninham na ferrugem?

23.7.18

#664

E aquelas interrogações
que caducam com dois pontos.

Pelourinho

Que enredos
anuncia dinastia corrente,
que porta-estandarte se afivela
na baía que se estreita no ocaso,
que histórias se contam
e quantas podem contar com 
a mentira como costura?

Os reinos não se perpetuam
no estorno das páginas dedilhadas.

A lente parece vívida,
ninguém diz que parece baça;
e, todavia,
encontra-se baça.
Os olhos destreinados
(ou então apenas acasmurrados)
fiam-se em seu próprio viés.
É como os reis e as rainhas
de reinos pelo mundo fora:
não aprenderam a ser atavismos
e do lustre obnóxio ostentam pergaminhos
com a bênção de vassalos
com o pensamento embainhado
nas curtas estrofes da “tradição”.

Ora,
dos enredos não consta a tradição:
a palavra livre é, 
no preparo da não capitulação
aos dogmas assegurados.
Ou a história do porvir
será uma mentira maior que as certezas 
de um mitómano sem remédio.

#663

Não passarão.
Não,
passarão.

(Para o americano que quer promover a extrema-direita na Europa)

22.7.18

Torre

Da torre
vejo a miragem
que embacia a pele. 
Combino
as esguias paredes
com o viveiro sem enfado.
E o nativo esgar
moldado com minhas mãos
projeta o cimento em que assentam
as escadas por onde somos sufragados.
Da torre de menagem
conspiro pelo bem da humanidade.
Arranjo o sal intenso
e deixo que sejam as palavras
o capataz de todas as empreitadas.
Da torre
desenho a homenagem
possivelmente num celeiro fértil
contra a maré da pérfida desconfiança.

#662

Inventamos o futuro
no dorso dos dias
de que somos suseranos.

21.7.18

Transformação vital

É possível 
que o refogado queime
sob escolta do lume desatento. 
É possível
que se junte num todo
os despojos do refogado
e se invente novo tempero,
um concentrado qualquer,
o aproveitamento de um lampejo
ou apenas um acaso,
no fortuito jogo a que obedecem os acasos. 
Assim como assim
há vinhos late harvest
e até as uvas no limiar da podridão
servem para vinhos.

#661

O artesão das luas
caiou o dia
com seu olhar telúrico.

20.7.18

Mercado dos rumores

O sal sujo
na lombada das frases
vívido rumor desembainhado.
Costuram-se as bocas fartas
à mercê 
da mentira idolatrada pelo rumor.

O sono sem espinhos
aconselha a irrelevância do rumor.

Mal se recomponha o dia
e as traves sejam mestras 
das paredes que abjuram logros 
(pois os logros 
são a rebelião que não tem valimento
a insubmissão fraudulenta
um levantamento contra as páginas brancas)
aos eixos voltam as coisas 
dantes descompostas.

Sujo 
é o sal do rumor
à força metido na boca de seus fautores.

#660

Ecoa o silêncio da noite
no fundo peito
e eu não desisto.

19.7.18

Filatelia

Estas são as décadas
do sangue venal como escombro
das casas fundidas em nuvens plúmbeas
dos corpos transidos no precipício da noite.

As décadas
do impossível congeminar de verbos
do proibido véu que se arca sobre o peito
e
da imperturbável nascença da manhã
das janelas estendidas nos parapeitos do sol
dos archotes que emprestam luz
aos palcos desmontados.

Das décadas imberbes
dos rostos apenas laterais por falta 
de intrepidez
da cábula dos sentidos
dos fingimentos arpoados em capuzes
da perfeita incapacidade de quase tudo.

Esperam décadas
firmadas no estirador virado a poente:
as décadas
que se não querem émulo 
das décadas em seu frontispício perdido;
décadas 
arrematadas às tenazes incompletas
o postal do tempo que dizima o arrependimento
e se compõe no pano mais fino
no linho leve onde tudo deixa de ter peso
no autocarro sem parar
que flui no impenetrável mister
da fortuna terçada nos dedos próprios.

#659

A terra do fogo
perdida de véspera
no labirinto empalidecido.

18.7.18

#658

O jovem político protesta:
(fulano) 
é um bom exemplo de um mau exemplo.
Ninguém lhe pede
um mau exemplo de um bom exemplo?

Notário

Dou de mim a medula
o ar cheio de aroma floral
uma orquestra em fase lunar
a constelação de mãos desatadas
um tirocínio de graça 
a porta sem freio
o freio sem chave
a carne franca 
as árvores mindinhas 
o véu desembaraçado
um esboço humildemente atirado
o avesso das verdades sem mentira serem
um espelho desembaciado 
a corrida desenfreada
a noite exangue
o arquipélago do pensamento
a aspiração da bondade
os olhos limítrofes
o cimento à espera de água
a dúvida sacramental
a luminosa estátua redesenhada
o coldre vazio
a clepsidra perdida
uma alvorada sentada no suor combinado
a hermética condição
o segredo com um destinatário
a teimosia sem remédio
alguma loucura disfarçada de provocação
(ou a provocação no alpendre da loucura)
a curadoria da lava recriada
a sombra sem chapéu
o sangue efervescente
o legado sem estimativa
um lago bordejado por uma quimera
a combustão das veias compiladas
a conspiração do pensamento 
uma provocação embebida na carne
o sonho majestoso. 

17.7.18

Resistência de materiais

O farol
beija o nevoeiro.
Demora-se.
Atreve as papilas gustativas
no sal rude do nevoeiro
temperado com a espessura do mar.

O navio
congemina a entrada no cais.
Avança.
A medo: 
o mar está enfurecido
e a noite medonha incendeia o palco.

Parece inverno.
Está setembro no auge.
A tempestade 
desagua em terra
com foros luciferinos.
Ninguém estava a contar.
A culpa terá de finar celibatária:
imprevisto,
o fenómeno,
não podia ser abraçado pelos peritos.

Debaixo da ponte
os cães vadios escondem-se
da noite tempestuosa.
Protegem-se uns aos outros
e dos outros 
(homens).
Refreiam desavenças;
as matilhas já não são concorrentes.
Os mais fortes dão guarida aos frágeis.
Os bombeiros não têm tempo
para apreciar.
Passam ao lado da lição.

O rio segue caudaloso.
À sua passagem, 
um tremor alucinante.
Parece que o cais vai ceder.
Os engenheiros sossegam toda a gente.
Os cálculos foram diligentes
e a resistência de materiais 
está garantida.

Também ninguém estava à espera
do cataclismo.
Nem o farol 
que com sua luz intensa
abre avenidas entre o denso nevoeiro.
Nem os peritos
que não souberam prevenir a tempestade.
As pessoas perguntam:
devemos confiar nos engenheiros
e na resistência de materiais?

#657

À noite servil:
tempero teu dorso
com a saliva de minhas sílabas.

16.7.18

#656

Humano,
o mano.
Ó mano,
humano.

#655

Desfaço 
um espelho de água
com os dedos diluente.

Oriente

O oriente
devia ser
o padrão da orientação. 
Em vez do norte
que afivela as bússolas. 
Pois se do oriente
o verbo se extrai
e depois se soma ao substantivo
tudo se consuma
para o norte o trono perder
e orientados passemos a estar
(deixando de se falar
de alguém que se norteia). 
Para depois 
de tanto se fitar o oriente
galgando oriente atrás de oriente
se descobrir 
à casa da partida ter chegado
(ou dela nunca ter desamarrado).

15.7.18

Escultura

Com gesso
esculpi as mãos maestras
e no poço outonal
amestrei o suor
o mítico ocaso sobranceiro 
à vontade. 
No tira-teimas
a escultura pedia cor
e eu não sabia das tinturas à espera. 
Não faz mal. 
O improvável estuque
matéria pobre em fazenda rica
cuidou de ser cimento
vagando os espaços vazios. 
A escultura tomou forma.

#654

No altímetro da autoestima:
os que arpoam nos Himalaias
e os que lançam âncora no Mar Morto.

14.7.18

O pior pensador da cidade

Estreita os garfos vencidos
sobre a toalha contumaz:
dizem que o pior pensador da cidade
não se cansa da vaidade. 

No púlpito deserto
sobram os abutres famintos
no limiar da falésia
onde esperam o cortejo de presas fáceis. 

À míngua de água
arrastam seus corpos exangues,
as presas fáceis,
aturdidas pelo sol açambarcador. 

O vulto do pior pensador da cidade
não capitula;
é como nos piores pesadelos
(ou na lei de Murphy,
já não se sabe ao certo):
o disfarce do deserto
e de seus porta-vozes diletos
(os abutres pacientes)
aparece na forma do pior pensador da cidade 
– como se fosse 
a nódoa 
que nenhum elixir sabe dissolver.

#653

Livro (em) branco.
(O silêncio fala mais alto.)

13.7.18

Prazo de validade

Vem na embalagem:
deixou de ter serventia
e se abrires o invólucro
talvez notes
fungos
podridão
o odor pútrido
as cores adulteradas
um estado comatoso da mercadoria.
Perguntas:
tem remédio
o prazo de invalidade?
Aceita um módico de trapaça?
Não vás ao desengano
que o leito do hospital
e uma desintoxicação
não são pera doce.
Não faz parte da récita
o fingimento
nem tão pouco se recomendam
vistas grossas ao prazo de validade.
Quando te renderes ao prazo de validade
verás
que há muita claridade para arrotear
e muitos prazos ainda dentro 
da validade.