20.5.06

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

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