10.10.06

Corpo ausente

Havia um corpo com as velas acesas
um perfume incensado colorindo o ar
uma cascata de sons a ocupar os lugares.
Às vezes diluía os suores nocturnos,
a necessária diálise do espírito acometido.
Outras vezes pegava no corpo
e redesenhava-o
(como gostaria que ele fosse:
um santuário adónico
onde se demorassem ninfas várias
que nele se vinham saciar).
De repente, reparou:
esse era o corpo desenganado
um esboço de desejos inúteis.
Nem músculos
nem quadris esbeltos
olhos azuis
ou um escalpe impecavelmente louro.
Apenas aquele corpo,
banal,
habitual,
o corpo que todos os dias vestia a existência.
Corpo adormecido
Pastor fiel de segredos incontáveis
e mapa dedilhado por dentro e por fora.
Um lugar
que de tanto ser familiar
entrara no roteiro do desconhecido.
Cada poro, cada pêlo, cada gota de suor,
as melenas soltas, as olheiras enegrecidas,
os músculos fatigados, as mãos tão gastas
– cansativos sinais do torpor que exauria as forças
traçava a rota da rotina cansativa.
À noite,
escondia o corpo nos lençóis
(fosse o abafo um vitral de transfiguração).
Rondava os cobertores o esboço do corpo desejado
um fantasma, apenas,
delírio da imaginação sempre pesarosa.
À noite,
despedia-se do corpo
abria os lençóis aos sonhos
que materializavam o corpo escondido nos cantos recônditos.
Naqueles lugares secretos
que só os sonhos podem revelar.