Vejo os querubins trajando vestes negras
enraivecidos com a demência
de que são testemunhas.
Esvoaçam invisíveis
disparando a fúria
porque
as pessoas buscam a essência da loucura
da terrífica loucura que as amesquinha.
As capas negras dos querubins
dançam
silvam
a cada golpe de asa encolerizado.
Nada podem
os anjos que idealizaram a bondade.
Nem sequer
quando
vêm montados em trovejantes cavalos
que querem esmagar todos os vestígios de maldade
escondidos até nos lugares mais recônditos.
Até os anjos foram contaminados:
já não são feitos de alva matéria
nem vêm adejados pela auréola benquista.
As velhas persistem na língua viperina.
De olhos esbugalhados às vidas alheias
como se as delas não existissem
ou fossem apenas um limbo
de onde
vigiam todas as outras vidas.
Não dormem
na vigilância demorada com que saciam
curiosidade doentia.
Morreriam
se um dia
todos os predicados da bondade tingissem o mundo.
Não teriam então o oxigénio.
Seria a doença maior que as levaria
como se um raio fulminante as atravessasse,
a mortal espada que haveria de cercear
a maldade enquistada.
Mas aí haveria malvadez soerguida
para limpar
maldade insuportavelmente ignorante.
Maldade, ainda.
Nas ruas de todas as cidades
demoram-se as pessoas que se esquecem do que são.
Parece que vegetam
como se andassem uns centímetros acima do solo,
simulacro do que são pela imposição do local
onde estão.
Há nelas
a anestesia dos corpos
uma maquinal errância que as leva
a lugar algum.
Atravessam-se no seu tempo:
há nelas uma condoída imagem
do tempo que se esfuma
como se os ponteiros do relógio medrassem
debaixo da fogueira que aquece o inverno.
E ainda que os corpos encham as ruas
os espíritos são imagem de criaturas mirradas
carnes secas que acidulam quem nelas tocar.
Às vezes
apodera-se uma imagem atroz:
um lugar imenso onde todas as pessoas estão
um imenso pântano onde lutam pela sobrevivência,
demorando-se
atoladas no esforço maior para um sacrificial passo
e avançar escassos centímetros.
Das entranhas do pântano
exala um sulfúrico odor que entontece
cansa mais ainda os corpos exangues
que se movem pelo pântano.
E, contudo,
os mortais avançam
pela errância do desconhecido,
fossem impelidos por uma bússola escondida
dentro dos seus corpos.
Movem-se
tenazes
para alcançarem o ermo local
onde
o pântano cede a vez aos prados verdejantes.
Onde
enfim
as pessoas hão-de acometer no descanso final.
O contraste oferece a demência desleal.
Uma vida inteira a irromper entre o fétido lodaçal
uma canseira provável
a que os corpos se acostumam.
Ruinosa esperança que se desmorona
quando
os pés se libertam das pesadas lamas do pântano
e alcançam porto seguro.
Os prados verdejantes
são a cama onde repousam,
por fim.
De onde jamais se erguem
consumidos os exangues corpos
pelo traiçoeiro remanso dos verdejantes prados
que são sepultura prometida.
Atroz aliança
querubins e velhas são juízes
do tribunal das almas.
Conspiram entre si
mas dão as mãos para julgar
todos os espíritos que arremetem à rua.
Parecem os doutores
que dissecam cadáveres nas autópsias.
Dir-se-ia
que
querubins e velhas eternamente viúvas
passam os dias a autopsiar corpos vivos.
E quando espumam raiva,
esbaforidos,
pela perturbante vingança da bondade
inoculam os sedimentos da podridão.
Até que os corpos se habituem à perversidade militante.
Os querubins
voam até aos campos pantanosos
de onde
recolhem as sulfúricas sementes que nidificam
a crueldade sistemática.
As velhas
espalham as sementes
ao vigiarem as vidas todas.
Neste lugar
nem sequer
há tempo para a inocência das crianças.
A genética é o impedimento.
A genética fabricada nos fétidos pantanais
onde
os progenitores são infectados
deixam a sua mácula nos embriões que fecundaram.
Até que a loucura se apodere de todos,
a insanidade malsã para além do sensível.
Haverá um tempo
em que nem sequer saberemos o que é a loucura.
Todos os manicómios terão fechado as portas.
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