27.9.23

Furacão

O poente

deixa de soar o dia

abriga um porto esconderijo. 

Tudo é falado em surdina

as paredes travam as palavras

que emudecem 

na fronteira da casa. 

É o tempo preferido dos sortilégios

que assentam coreografias

com o estuque dos vultos arrematados 

a argamassa retirada ao anonimato

preparando de véspera 

a urdidura do dia consecutivo. 

Sucessivamente

num ritual que não veste regras

sem autoria determinada,

até ao momento em que escrevo. 

É o dia que vai contar o futuro

ornamentando a gramática com entorses

assim como os dias madrastos

que compõem um palco a que os pés não subiriam

se soubessem do futuro antes do tempo. 

Deposto o medo

o idioma fica como testemunha. 

O úbere da memória não tem paradeiro certo

os procuradores da angústia foram demitidos

e as preces dos desafortunados foram decantadas

tudo se compondo numa mirifica paisagem

onde se combinam urze e mel

chuva teimosa e fertilidade

os rostos que irradiam leveza

e as montanhas escarpadas 

onde a vida se leva difícil. 

Não se exorcize o olhar estremunhado:

o sangue pulsa nas paredes das veias

arrebata as bandeiras que são uma farsa

e o corpo insubmisso atira-se ao precipício

sabe que o pode domar. 

Dizem-se palavras avulsas 

– o auge da autenticidade

como se fosse preciso mostrar credenciais

como os embaixadores da lucidez. 

Mas não é de lucidez que se cuida;

o vento que assobia o desmedo

desafia a angústia que procurava atestado

os ossos são a matéria que não se transaciona

assumem os esteios que uma identidade afigura

antes que deuses assassinos colonizem o bem,

assim disfarçado, 

e todos nós,

distraidamente 

(ou apenas sitiados pela letargia)

sejamos matéria fungível

um longo bocejo refém do acaso.  

Sem comentários: