14.2.07

O troar das palavras

As palavras
encerram os mistérios dos sentidos
que lhes queremos dar.
Umas vezes
palavras sofridas escondem lugares
onde só as emoções pertencem.
Outras vezes
destilam todo o império da racionalidade
– medidas ao milímetro,
uma esquadria que roça a perfeição.
E, todavia,
quando regressamos às palavras entronizadas
apetece tudo refazer,
como se o autor vestisse outra personalidade.

Flúem, as palavras;
são como espíritos voláteis
acordam penhores das diferentes cores do mundo.
Destoam as palavras coloridas
quando o pesado céu cinzento desaba
sobre as nossas cabeças.
O refúgio
está nas palavras cheias de cor,
desmentindo o plúmbeo dia tristonho.
E dias há que amanhecem soalheiros
pulsa das veias uma vontade indómita de fugir
para as arcadas incolores,
encerrar a alma nos volúveis caminhos
onde o sol não chega a entrar.
Servimo-nos das palavras empedernidas
compomo-las com as variantes
que partem em demanda
de um arco-íris que rima com felicidade.

Temos as palavras que enchem a boca
e se desfazem contra a pele
na sua imensa vacuidade.
Usamo-las
convencidos que são a unção
da pródiga verve.
Ensaiamos textos obtusos
nos umbrais da poética sublime.
O adocicado travo que solfeja após a ardósia de letras
desmaia
quando no regresso a tais palavras
jorra a decrepitude do criador.
Como se o tempo futuro teimasse reconciliar-se
com o tempo passado;
como se alguém
tivesse tomado conta do corpo do criador,
renegando páginas dobradas pelo tempo.
No temor de revisitar as palavras escritas
as que ficam emolduradas como retratos imóveis,
intocáveis.
Sem revisitação caucionada.

Poderia ensaiar-se um outro campo de flores
onde vêm repousar as palavras gastas.
Gastas de apenas serem escritas.
Há o risco de serem banidas
se o criador a elas regressa.
Ou temperadas com especiarias que as adulteram.
E nem pela delicada coreografia das palavras escritas
o desassossego da perfeição inadiável
retoma a centelha da reescrita.
Sacrificada a genuína fluência das palavras,
assim que o pensamento esbraceja
contra uma dura parede de onde saltam
fantasmas da impureza.
Nem todos os campos de flores
seriam o bálsamo aquietador
para as palavras desgarradas
que eternizam a solidão selvática.

As palavras
são os seus próprios espinhos.
Arranham com dor
arrancam pedaços de carne quando aparecem
em sentidos não queridos pelo criador.
É uma traição,
intencional ou não,
ensanguenta os olhos cansados do escritor.
Ao menos
vinga a expiação interior
através das palavras que jorram,
ora lentas,
ora à velocidade estonteante,
nem sempre lúcidas.

O pior
é quando fermenta uma ideia,
uma imagem,
capturar a intensidade de um sentimento
e as palavras não encontram retrato.
Aí as palavras são o seu inimigo
uma masmorra que aprisiona o criador
entretecidos rudimentos no limbo das palavras.
Quase sempre excitante,
o juízo dos penhores das palavras
desprende-se das amarras,
de todas as amarras
que só a solidão da escrita consegue destruir.
É isso:
um acto de libertação
a sagração da solidão do arquitecto das palavras;
a comunhão com as palavras
que escorrem das teclas para o ecrã diante dos olhos.
A emancipação desse terrível ermo.
E o mergulho noutra tremenda solidão,
encerrada nas palavras que nunca morrem.

O encantamento transcende-nos:
são mais as palavras que os dias que vivemos.
Uma miríade inquietante
pelo horizonte que descobre sentidos insólitos
para o que dizemos e escrevemos.
Figuras de estilo
emprestam a volúpia às palavras.
Uma indecifrável codificação
arremete o escritor para o vórtice da solidão.
Ensaística, apenas,
ou um exercício de distanciamento do leitor.
Ou talvez não:
apenas a suprema libertação
de quem lê
palavras entregues aos sentidos diversos.
Nunca o destinatário será tão soberano da obra
na reescrita das palavras tratadas.

Há nesta indeterminação
uma prisão voluntária do guardião das palavras.
Ora
as retoma com agrado
ora
as renega num abortivo esboço
onde não resta
sequer
uma vírgula de indulgência.
O risco maior
do resgate das palavras já retidas no tempo:
a dor lancinante
regressar às palavras tomadas,
ou a dor maior
obnubilar as cicatrizes do corpo,
como se houvesse mister de refazer
os dias perdidos na embocadura do rio.

8.2.07

Momento Professor Doutor FG

O Professor Doutor acordou às sete da manhã
pôs o pé direito de fora e só depois o esquerdo
foi à sanita evacuar as urinas retidas no sono
olhou-se ao espelho e o que viu?
A magnificência
a jactante sabedoria
o altar dourado onde resguarda tanta ciência
um cérebro que armazena mais brilhantismo
que uma vintena de Doutores de embuste.
Demorou-se
longos minutos
na contemplação de si mesmo.
Extasiou-se na aproximação de cada poro
a facial expressão que jorra os sorrisos valiosos
que guarda só para si
tão valiosos
não podem ser desperdiçados nos incapazes
– todos os demais.
O Professor Doutor,
perdido em elucubrações do ego,
esvoaçou pelo pequeno-almoço
pela fatiota para o dia
pelo caminho até à casa da sabedoria.
A caminho
sentia os transeuntes fulminados com a sua aura.
A cada passo
aspergia os dotes singulares,
uma sabedoria ímpar.
Só ao alcance dos predestinados.
E tão predestinado era que cultivava a distância
não fosse a conversa contaminá-lo
com a prosápia dos Doutores da mula ruça.
No estertor da ciência
o Professor Doutor é penhor dos novos alvores
abalo telúrico que nada deixa intacto,
dúctil personagem com o dom de virar a página
– só os homens messiânicos foram agraciados com o dom.

Nunca as loas serão muitas
para a homenagem devida ao Professor Doutor.
Por nunca as palavras todas serem bastantes
no elogio perene do Professor Doutor.

Providencial e imensamente culto
pulsão obsessiva pela atenção que tanto carece
será motivo para acamar no divã do psiquiatra:
por onde tanto ego vagueia
insondáveis mistérios ou mente tortuosa
ardis militantes dos que se esticam em bicos dos pés.
Carecem da atenção os que,
na sua ausência,
da cepa torta jamais iriam.
Assim se hasteia
um vasto ego que se espraia do Porto até Tóquio,
a cada dia que passa se estende para a estratosfera
até colonizar (só para ele)
a lua cintilante
– cuja irradiação é a sua aura que trina aos nossos ouvidos.

É uma lição de uma singela,
mas densa,
página só.
O roteiro necessário para os outros Prof. Dr.
(que não merecem o extenso).
Há por aqui divindade, ao que parece,
e a pele estremece só de pensar
que algum dia a escadaria há-de ser tapete
dos pés doutos de sua excelência.
Que sejam marcados esses locais
de tanta sapiência ungida:
que os outros,
lentes ou discentes,
mas todos tementes,
nem ousem a centímetros pisar
o roteiro do senhor Professor Doutor
(já com direito a genuflexão,
a portagem devida pela invocação de seu nome):
indignos de se acercarem,
ao longe que seja,
de tamanha honraria.
Aos demais
neófitos ou provectos anciãos,
os dias todos refulgiram só por saber
que paredes-meias habita insigne figura.