29.12.10

Decantação


Altivo,
como os nódulos dos dedos,
reacende a lareira.
Acalma-o
o crepitar da lenha abraseada,
as cinzas estrugidas.
A canícula
desprende-se pela sala,
toma-a seu império.
Um estremecimento,
um curto estremecimento apenas,
denota um torpor esperado.
Nas cinzas incineradas
despojos tornados inutilidade;
no fumo
a decantação de um porvir.

28.12.10

Esporádicos (3)


O cara de ananás
olhos de perdiz
estulto rapaz
não sabe o que diz.

Oxalá não acordasse:
rosário de disparates,
não há dia que passe
sem barrigada de dislates.

Olhos remelosos,
um altar da inteligência,
fingem-se garbosos

e persistem na incontinência
dos eruditos rançosos,
pançudos da iliteracia.

20.12.10

Matéria incandescente

Nos olhos,
os instintos embebidos.
Uma nau empunhando seu mastro
vitorioso.
Faróis enlouquecidos
que sibilam o querer,
            roucos.
Pelas veias,
em desvairada romagem,
a lava de sangue
            ardente.
Os lábios selam o silêncio.
Deslaçam as palavras interiorizadas:
“no strings attached”.
No resto,
contam os momentos
            efémeros.
Que ungem os dedos
com a preciosidade do ouro.

19.12.10

Torre de vigia


No mais alto promontório
a vigilância do sangue fervente.
Aos pés
as planícies estreitam-se no horizonte.
A névoa dissolve-se
na imperceptível luz em ocaso.
Os viçosos campos,
onde flores e verde ensaiam
uma altiva coreografia,
prometem-se na alvorada.
Seus passos da dança
fundem-se nos segredos da noite.

16.12.10

Esporádicos (2)


As divindades estavam distraídas:
soltou-se-lhes o pé
e quando deram conta
estavam no fundo do poço.
Numa convenção de alcoólatras.

14.12.10

Esporádicos (1)

O meteorologista debita claves de sol.
A galinha calçou os sapatos de salto alto.
A dondoca aperaltou-se para a mercearia.
(E cacareja)
O ministro dorme em cima do bojo.
O ginasta torceu o pescoço.
A professorinha esganiça a voz.
O galã impressiona com as patilhas afiveladas.
O empregado de mesa trauteia Brel.
O sol já vai alto.
E o mundo inteiro,
lá fora,
Ah, o mundo inteiro na bazófia.

11.12.10

Efémero silêncio


À noite,
quando os escombros do dia se revelam,
cicias o meu nome.
O silêncio,
em sobressalto,
passa além do seu precipício.
O sussurro,
um estremecimento que tece
entre os dedos
o irrepetível, fugaz instante.

9.12.10

Nocturno

Dedos
perfumam a casa
a framboesa.
Olhos
verde esmeralda,
mar onde apetece deitar.

5.12.10

Espelho do tamanho do mundo


Olha o madraço
em seu esfíngico disfarce,
um roldão de beatitude.
Olha:
como passa, ufano
assertivo do seu
(empinado)
furúnculo abaixo dos olhos.

E quantos os há
embebidos em tamanha
(e contudo lúgubre)
auto-estima?

2.12.10

Escombros de uma gargalhada

Nas encostas da vida
ri-te em gargalhadas sonoras.
Os dentes brancos todos à mostra.

Perfilha as tonitruantes escalas
onde os varonis terçam suas armas,
só para seres sua antítese.

E folga enquanto o pau vai e volta
ensina-te a seres a tua grandeza
em cabos que, de dobrados, amansaram.

Com os mesmos dentes brancos
morde os dedos graciosos da existência.
Enquanto os tens, dentes, à mostra.