15.12.25

Agora(s)

Este agora 

será como todos os agoras. 

Na sua assimétrica descompostura

os agoras avançam contra a mudez dos passados

ultrapassam até aqueles amanhãs apessoados

que reivindicam pergaminhos. 

Ontem

soube de um agora

que se agitou na sensação vaga 

de um gume sem paradeiro. 

E depois percebi:

cada agora 

é uma efervescência de efemeridade

que perde validade

mais depressa do que qualquer fruto.

#4297

No palco arrombado 

os fantasmas desfilam com vagar 

e nós 

somos as assombrações do medo.

14.12.25

#4296

Arrumo o peso morto 

que se mistura com o dia cansado, 

a rua não tem prisões 

mostra-se na penumbra amaciada.

13.12.25

#4295

Está tratado, 

o tratado que nos trata, 

a profilaxia do futuro.

12.12.25

Injustiças documentadas (626)

Trocamos 

dois dedos de conversa

não sabemos

se ficamos com os dedos trocados

ou com a conversa coalhada.

A ardósia dos pobres

Pé curto

a língua de trapos

ensaboa a ardósia

e deixa, em letra de médico,

o verso de barro.

 

Os cavalos comem alfafa

(é da ordem dos costumes literários)

e os tratadores 

trocam dois dedos de conversa.

 

Amanhã é a feira

esperam-se as casadoiras em sua demanda

e os rapazes não aguentam a espera.

 

Os cavalos podem,

eles sim,

com a espera que for precisa.

 

No meio da aldeia

a ardósia ultrajada pela letra de trapos

cumpre a sua função:

 

as pessoas passam

e ficam 

olimpicamente

indiferentes.

#4294

Lateja 

num frémito repentino 

o estaleiro alfaiate

a forma onde ninguém cabe.

11.12.25

#4293

Em pinças 

assim o exige a fragilidade

o estado perene 

de quem faz a contabilidade dos dias.

10.12.25

#4292

Cobro o frio com o corpo 

cobro o preço regateado.

9.12.25

Injustiças documentadas (625)

Ao abrigo 

da liberdade de circulação de capitais 

a Europeia União aceitou o resgate 

de Lisboa por Viena.

#4291

Anoitece 

o olhar embaciado 

cobra a esperança 

do dia adiado.

8.12.25

#4290

A pilhagem sem máscara 

segue em velocidade de cruzeiro 

a farsa colhe por défice de lisura.

7.12.25

#4289

O verso precoce 

atravessa o luar escondido, 

escolta os suores frios da noite.

6.12.25

#4288

Uma luz vermelha 

quando remexes nas provectas memórias 

magoa o peito 

que deseja o esquecimento.

5.12.25

Injustiças documentadas (624)

Conversa fiada, 

dizias, 

mas sem saberes 

o nome do fiador.

#4287

A desvantagem dos eremitas

é paisagística.

4.12.25

Desastrado

Apanhas as ostras com os dentes

tu que sabes falar uma dúzia de idiomas

e calças sempre sapatos puídos

sem nunca teres feito votos monásticos. 

Olhas pelos cantos dos olhos

para poupar a vista

e em verdade se diga 

que chegaste à proveta idade que carregas

sem nunca teres visto através de lentes. 

Há quem diga

és o único a disfarçar a miopia

o que ajuda a perceber

todos os vieses que recolhes com entusiasmo. 

De amanhã em diante

juras olhar as coisas só com um olho. 

Não concorres para Camões

que não se recomendariam os versos

se algum dia deles parisses autoria. 

Essa tua simplicidade

ainda te há de granjear

um par de dissabores.

#4286

A tença sem cabimento

deixa o serviçal todo ledo;

o estrago vertebral

fica tatuado no rosto coletivo.

3.12.25

Avarias

Ou a corda toda

desatada no pináculo do cinismo

que a obediência pertence aos fortes

e eu acanho-me na singela fraqueza

que me abraça.

 

Deste berço loquaz

escondo o sangue gourmet

aquele que vampiros e companhia dispensam

e por minha bússola tomo

com as mãos humildemente trémulas

o cálice que testemunha o néctar singular;

de um homem fraco

esperam-se vícios, não virtudes,

e até dizem

que a bússola estava avariada

e ninguém me disse nada.

 

Acordo

a corda toda

no promontório da incivilização,

como se ainda não tivesse arpoado

o meu vinte e cinco de abril,

os pesadelos desenfreados

escaldaram o dia

e agora, 

irascível e refém do avesso de mim,

teço-me 

nas juras que não haverei de fazer. 

#4285

Às vezes 

dizemos nicles, 

e não somos apóstolos 

do minimalismo.