25.3.16

Duelo sem armas

Podemos disputar as palavras
podemos franquear os dicionários
e vencer o pleito.
Podemos esfregar sobranceria
aos que em nós usam da mesma moeda:
só não podemos
(ou não sabemos)
(ou não queremos saber)
desembainhar os óculos da franqueza
e entregar a taça
aos titulares de oráculos vários.

Combinem-se as vestes sumptuosas
esteios de uma supina sabedoria.
Combinem-se as páginas em branco
para duelos infecundos.
Combinem-se, sacripantas,
peritos nos ardis.

Podemos beber deste caldo
ou podemos meter uns óculos de sol
e ir para a beira-mar apreciar o entardecer.
No fim do dia
talvez entendamos
que o caldo é pútrido
e o entardecer poético.


24.3.16

Casa forte

O adro vigiava a noite.
No sono dos mortais
conspiravam demónios contra o rigor
da bondade.
Não tinham rosto que se visse
nem se faziam anunciar em panfletos;
sabia-se da sua existência
quando os atos tinham consumação.
Por isso
(e contra as conspirações)
patrulhas discretas
luzes sobre as trevas que acoitavam
os fingidos querubins,
protegendo o sono contra a maldade.
A noite metia respeito.
E só o cansaço das jornadas
dava caução a um sono sem medo.
Mais pelo cansaço dos dias repetidos
das canseiras pavimentadas pelas angústias
das olheiras que selavam contrariedades;
não fosse das forças exangues
o sono não tinha leito para ser plano,
sem contaminação dos rivais
que conspiravam o desassossego.
A noite tinha um perfume vazio.
Quase toda a gente
metia os sentidos em hibernação
mercê do sono em sentido.
Nem sonhavam
a contundência dos planos congeminados
pelos próceres da imprudência
pelos maestros das conspirações
os deserdados da ordem constante.
A noite frágil
era seu palco de eleição.
Os vigilantes,
tomando a torre da igreja,
tinham o adro de atalaia.
A menos que fossem vencidos pelo sono.
Ou
que descosessem as bainhas dos sentidos
e o fio de prumo ficasse do avesso.
Confundindo
bondade com maldade.

#13

A saudade
é um embaraço do passado
que embacia o porvir.


23.3.16

Menor denominador comum

Ao menos:

a fogueira intemporal
onde crepitam os ossos insaciáveis;

os olhos desimpedidos
depurando os teimosos nevoeiros matinais;

uma procissão de espantalhos
arrumando livros perdidos no chão;

gatos vadios passeiam
arriscando a afoita liberdade singular;

a incógnita na parede
remexendo a passividade dos dias;

o desassossego das perguntas
à falta de outro passatempo;

uma cotovia ensonada
murmurando o canto das divindades;

o sargaço acostado
emprestando manto espesso ao mar;

a roda-viva do outono
deitando-se nas contas dos burgueses;

o pesar do céu
em sintonia com o chão negro;

o alimento lauto
deitando sustento na fome avassaladora.

Ao menos:

um módico qualquer
destroçando a quotidiana frivolidade mórbida.