23.8.22

ONU

Os idiomas falavam à vez.

As bocas procuravam nomes

como quem encontra uma morada.

O dia era o espelho das traduções.

Nada ficava por entender

não por falta de correspondência

entre os idiomas.

Alguém supôs um idioma universal

mas todos recusaram a intenção.

A língua franca

condenava os idiomas à insignificância.

Todos

(menos os eruditos do idioma franco)

baniam as intenções 

que baniam a biodiversidade das línguas.

Os idiomas falavam à vez.

Mas falavam todos

uns com os outros.

#2500

Das facas longas

sobra

um nevoeiro cortante

que amanhece no sangue imprudente.

Injustiças indocumentadas (9)

Farinha mágica.

22.8.22

Moderação

Não sejas modesto

na poupança de metáforas:

o carrossel de palavras é o passaporte 

para um idioma sem cansaço,

a avassaladora marca registada

que o cofre reserva

à tua guarda.

Injustiças indocumentadas (8)

Sete são as chaves

que aferrolham os tesouros;

seis não satisfazem a função

e oito serão de mais.

#2499

A porta atrás:

uma artrose sem remédio

dos inertes,

sem acerto do tempo.

21.8.22

#2498

Sobre as probabilidades

conversam os enganos

que a fala emudece

ao primeiro esgar de ilusão.

20.8.22

#2497

Corpos caminham

num chão de mãos:

levitam 

na matéria de sonhos

sem sono por verbo.

19.8.22

#2496

Em matéria finita,

não vá o universo

cansar-se de nós.

 

(Dada a suscetibilidade

do universo.)

18.8.22

Injustiças indocumentadas (7)

No arco da velha

o mal é do arco

ou da velha?

#2495

A matilha

não obediente

suprime as normativas:

são os seus próprios anarquistas

e vítimas prediletas.

"The Beachland Ballroom"

A carne não sangra;

canta 

com os dentes entumecidos

e a gola da alma de atalaia.

O corpo que vocifera

rima com o idioma rouco

e é como se todos,

em uníssono,

pudéssemos morrer à nossa vontade.

 

[Idles, Vodafone Paredes de Coura, 17-18 de agosto de 2022]

17.8.22

#2494

Com a vossa licença,

que a manhã se faz tarde

e os provérbios estão à míngua:

deito o olhar ao rio

a ver se me devolve o sangue.

16.8.22

#2493

Não são 

amestrados 

os sonhos à lareira, 

a direção assistida da vida.

15.8.22

Complemento direto

Se fossemos salteadores

e sonhássemos com montanhas

em vez de bandeiras

faríamos de poemas avulsos

o hino com mastro a propósito.

#2492

Só tem honra de notícia

a deriva para o precipício

(não o desaquartelar de cárceres).

14.8.22

Injustiças indocumentadas (6)

O teatro de guerra

não é um teatro

que se veja.

#2491

Não se cultiva,

a letargia.

 

(Ao contrário

do marialvismo.)

13.8.22

Dolo

O que faço

deste dolo

provérbio gasto

ou apenas

intenção cimentada no mural

cisão entre o eu e o acaso?

 

O que faço

com este dolo

matéria sem linhagem

costuras acima da medida

a manga gasta no pelourinho

sem sentenças por perto

sem regras a servirem de gramática?

 

O que faço

metido 

neste dolo?

Injustiças indocumentadas (5)

Dar com os pés,

como quem couceia.

#2490

O mar

que abre as janelas 

da alma

e a alma que respira

o mar.

12.8.22

Injustiças indocumentadas (4)

A fava

deve ter as costas largas

ou é o embaixador vegetal

do patinho feio.

#2489

A manhã macia

nos despojos

da lua poente.

11.8.22

Injustiças indocumentadas (3)

Às vezes

somos centopeias

mas só fugimos

a sete pés.

Sétima via

Se estes marços não acabam pela tarde

protesto a delação dos espíritos amordaçados

contra a especiosa safra dos clarividentes.

 

Ondas musculadas não amedrontam as rochas

nem sob ameaça pendida sobre a jugular

pois o material previdente assenta em carvão.

 

Atirem os detonadores ao Outono circunstancial

e depois adormeçam numa cama versátil

que das miragens habituais já não há paradeiro.

#2488

À força de tantas certezas

ficaram órfãs 

as perguntas.

10.8.22

Injustiças indocumentadas (2)

Chamavam-lhe

um figo.

 

E quem estabeleceu

que o figo

precede os outros 

na hierarquia dos frutos?

Sobre vendas nos olhos e Salazares em levitação constante

Ninguém vê

a venda sobre os olhos

e não é por acaso

pois a venda veda o olhar

impedido de ver 

o que está impedido de ver.

A tautologia do avesso

não contraria

a litania dos maus espíritos.

Eles confessam a fraqueza

enquanto esmiolam o raciocínio

reduzido 

a um quinhão de pouco mais que nada.

A venda aplicada sobre os olhos,

o ultraje máximo

a depreciação dos espíritos que

(dir-se-ia)

se fomentam livres:

a venda sobre os olhos

é voluntária,

por inação de quem desiste de o ser

ou por cedência aos mastins

incomodados se os espíritos livres

prosperarem.

Confirmado está

que o sangue salazarento 

não ficou sepultado 

quando os cravos deram patrocínio 

à liberdade.

#2487

Da vulnerabilidade

não desçamos 

ao inferno.

9.8.22

Injustiças indocumentadas (1)

Todos lamentam

a pedra no sapato

mas ninguém protesta

contra o sapato na pedra.