8.9.23

Injustiças indocumentadas (169)

Simulação do tédio geral:

rabo escondido

com o gato de fora.

#2892

Admita-se a concurso

a esbelta forma da provocação

antes que tudo seja tomado

pelo fantasma do sopitamento.

7.9.23

Lotaria

A pele estremunhada

testemunhava o exílio dos deuses

aprisionados num labirinto. 

A legião acusava os conspiradores

sem saberem erguer por um dedo sequaz

nomes e rostos. 

Os deuses

de rastos

eram consumidos numa pira improvável

e nem sacudiam da pele os vestígios das chamas

distraídos pelo pasmo. 

Do outro lado da cidade

as ruas exultavam

e, não por acaso,

(de acordo com uma possível festa de conspiradores)

as árvores estavam floridas

como se batessem recordes. 

Esta era a litania dos subjugados

o avantajado sofrer pedagógico

fonte de sacrifícios em nome da redenção

de repente

tudo levado ao banco dos réus

sob os auspícios de juízes desconhecidos. 

O resto já é sabido:

a justiça ajuizada como convém

profanação dos parâmetros habituais 

segundo a legião, 

ou a diligente justeza

como se fosse avalizada

pelas divindades ora contestadas. 

Injustiças indocumentadas (168)

Ainda ninguém descobriu

onde é a fábrica 

de fazer conversa.

Injustiças indocumentadas (167)

Convencido.

Com o vencido.

#2891

Rasuras 

com perícia

os escombros protestados

convencido então

do aval pendente.

6.9.23

O poeta também tem alma e não parece

A gramática perfumada contava o precedente:

“soul flowers”

era o apanhado da métrica desembaraçada

entre o assoreamento matinal

e a ginástica verbal.

O poeta

esse

fingia que dormia.

Os versos tingiam a penumbra

e ele estava próprio do dia derruído

antes do tempo.

#2890

A frase

terminada

em vírgula,

ou num sucessão

interminável

de dois pontos.

5.9.23

Prometeus

As estrelas jogavam esgrima

e não bolçavam violência:

era uma espécie de circo

um circo dos bons

e no céu acenderam-se metáforas

uma aurora prometida

contra os mastins que povoam pesadelos.

As estrelas em esgrima

subiram à medalha de ouro

e abrigámos na fonte dos desejos

olimpíadas com esta silhueta.

Injustiças indocumentadas (166)

Sunday, bloody Sunday

depois de tantos e arrastados

domingueiros na estrada.

#2889

Verte os garfos desassisados

sobre o sal do dia

e respira

com os olhos bem abertos

a alma que irradia.

4.9.23

Injustiças indocumentadas (165)

Dar 

as balas ao peito

é suicida

ou genocida.

Desdenhado

Antes se dissolvesse numa solução alcalina

essa ideia anã que amadurece 

com o viço dos analfabetos.

Antes fosses astronauta de doca seca

partidário visível,

daqueles que se ufanam

por darem o peito às balas

tartufo desmedido de circense veia

e as palavras

bolorentas

entronizadas no carvão atávico

dos que se ensimesmam na vaidade vã.

Antes fosses 

calado

e em teu calado nascessem vesgos atributos

e tu soubesses da tua desdita

e calado

no calado de quem se sabe grotescamente pilhérico

atiras a fala à parede

só para a ver liquidada

(a fala,

não a parede).

#2888

O futuro 

já aconteceu

quando ler 

esta linha.

#2887

Portfolio tácito,

fotografias sem critério

à espera de porta a condizer.

3.9.23

#2886

O sexo masculino

já teve dias melhores.

#2885

Borla

é tão próximo

de burla.

2.9.23

Excomunhão

O posto postiço

soletra um salitre umbilical

coalhado na coação do dia

faz-se ente de estimação

entra nas apostas do dia

e adormece

triunfal

nas alvissaras de um travesseiro.

Injustiças indocumentadas (164)

O nove

não tem culpa

de estar encostado

ao zero. 

#2884

Os dedos colados ao céu

ateiam a trovoada nascitura

e depois aplaudem, concretos,

as estrelas que esbracejam ao acaso.

1.9.23

Injustiças indocumentadas (163)

Desta água não beberei,

ó apocalíptica abstinência. 

Injustiças indocumentadas (162)

Nuvens vadias,

disse a meteorologista

deixando a verdade

a voar acima das nuvens.

#2883

Quem não petisca

não arrisca.

 

[Manual de instruções para restaurantes com estrela Michelin]

Injustiças indocumentadas (161)

A espuma dos dias,

a gastronomia molecular.

31.8.23

A alma-casa

A casa não é o bolor

as paredes não se descumprem

e as janelas são vantagem

sobre o exterior.

Caso sejam inquiridos

os alicerces dirão em ata

os maiores encómios.

As suas habitantes almas

são o arnês expedito

o aval à prova de abalos telúricos

o atestado que suplanta

os melhores cálculos engenheiros.

Injustiças indocumentadas (160)

O Direito

é tão torto.

#2882

A página amarrotada

um canto escondido da lua

a mão caiada, 

à espera.

30.8.23

Injustiças indocumentadas (159)

Andamos a viver

abaixo da nossa felicidade.

 

[Inspirado no Butão]

Produtividade

Os fórceps diários

eletrocardiograma previsível do mundo

as golas derruídas esbatendo as vozes malsãs

à míngua de arquitetos salvíficos,

extintas as epifanias. 

 

Mergulhas no rio matinal

e sabes 

que a pele ruge pelo frio que a trespassa;

os homens querem-se audazes,

ouviste pela vida fora,

sem ser preciso frequentar quartéis

e convenções de nostálgicos

(onde a boçalidade é o verbo farto):

é ao contrário,

arregimenta-se o fino nervo que serve à pele,

a sensibilidade (dizem)

que levita sobre as coisas brutas da vida

emprestando beleza à vida de outra forma bruta. 

 

Tudo é um império de fingimentos

e está é a adversativa que soma uma contusão

às maiores esperanças adivinhadas 

para memória futura. 

Os rostos são colonizados por disfarces

e nem precisam de máscaras. 

As pessoas parecem mortos antes do tempo 

ficam paradas à espera da tabuada dos mistérios

como se fossem pescadores

pacientemente aguardando um sinal místico:

a prescrição da anestesia que não pediram. 

 

Juras que não sabes

de que dores é feito o mundo. 

Se te dessem para a mão a agulha de tricotar

não darias ao mundo 

um emaranhado paradoxal como formato

nem saberias do que serias doador. 

 

Mas não juras nada. 

A experiência ensinou-te 

a lei geral da inverosimilhança

o pudor estatutário que refreia o ânimo

o contrabandear das almas que se vestem do avesso

a obediência arcaica que coage a liberdade 

o impensável como critério cautelar

a colossal humildade de quem é indiferente

o arsenal destituído devolvido à arma da palavra

o fogo apalavrado que ateia o futuro

em toda a carne sangrado

matéria-prima incandescente da vontade

o esteio incorruptível

à prova de provações

privado do medo que nega a pessoa.

Injustiças indocumentadas (158)

Macacos me mordam

que me esqueci 

de perguntar aos macacos 

se me querem morder.