12.9.23

Injustiças indocumentadas (172)

Deixa

para amanhã

o que não podes fazer

hoje.

11.9.23

O elogio da imortalidade

O ocaso nunca é tardio

é um acaso que conspira 

com a ordem da contingência.

Como se houvesse manhãs

a fugir do entardecer

e, mudas, soubessem

o cantar das sereias refugiadas

num lugar que está atrás do horizonte.

Não contamos por módico

o inventário de que somos peões.

Antes fôssemos

generais sem comenda

os favoritos da desmedida

um magma feito de sangue sem cicatrizes

caóticos devido à linhagem da medula

e sintomaticamente imortais.

 

Somos imortais,

dentro de uma medida do tempo.

#2896

Houvesse 

martelos pneumáticos

ou um sortido de bombas

para esquecer o futuro.

Injustiças indocumentadas (171)

Tentativa

e ferro.

10.9.23

Do futuro como matéria gasta

Travámos guerras esquecidas.

Colámos

com a saliva que desonra

as cicatrizes para sempre puídas

que quimera alguma há de apagar.

E um idiota

diz de si mesmo

ministro do futuro.

 

(Salva-o, in extremis,

por não fazer alarde

em causa própria

de ser o ministro do futuro.)

 

E ninguém se desfaz

do segredo tão simples

de dizer:

travamos 

as guerras esquecidas.

 

[Agradecendo a Timothy Morton, “ministro do futuro”]

Injustiças indocumentadas (170)

Es-croque 

monsieur.

 

[Precaução

para não ser processado

pelo empresário dos barquitos.]

#2895

Lamentavelmente estacionado

num lugar ermo

o automóvel espera

pelo canibalismo do sucateiro.

9.9.23

#2894

A boca ferve

no sangue que se atiça

na febre furtiva.

8.9.23

#2893

Farias um poema

com a palavra

saraiva.

 

[Anátema de um poema]

Injustiças indocumentadas (169)

Simulação do tédio geral:

rabo escondido

com o gato de fora.

#2892

Admita-se a concurso

a esbelta forma da provocação

antes que tudo seja tomado

pelo fantasma do sopitamento.

7.9.23

Lotaria

A pele estremunhada

testemunhava o exílio dos deuses

aprisionados num labirinto. 

A legião acusava os conspiradores

sem saberem erguer por um dedo sequaz

nomes e rostos. 

Os deuses

de rastos

eram consumidos numa pira improvável

e nem sacudiam da pele os vestígios das chamas

distraídos pelo pasmo. 

Do outro lado da cidade

as ruas exultavam

e, não por acaso,

(de acordo com uma possível festa de conspiradores)

as árvores estavam floridas

como se batessem recordes. 

Esta era a litania dos subjugados

o avantajado sofrer pedagógico

fonte de sacrifícios em nome da redenção

de repente

tudo levado ao banco dos réus

sob os auspícios de juízes desconhecidos. 

O resto já é sabido:

a justiça ajuizada como convém

profanação dos parâmetros habituais 

segundo a legião, 

ou a diligente justeza

como se fosse avalizada

pelas divindades ora contestadas. 

Injustiças indocumentadas (168)

Ainda ninguém descobriu

onde é a fábrica 

de fazer conversa.

Injustiças indocumentadas (167)

Convencido.

Com o vencido.

#2891

Rasuras 

com perícia

os escombros protestados

convencido então

do aval pendente.

6.9.23

O poeta também tem alma e não parece

A gramática perfumada contava o precedente:

“soul flowers”

era o apanhado da métrica desembaraçada

entre o assoreamento matinal

e a ginástica verbal.

O poeta

esse

fingia que dormia.

Os versos tingiam a penumbra

e ele estava próprio do dia derruído

antes do tempo.

#2890

A frase

terminada

em vírgula,

ou num sucessão

interminável

de dois pontos.

5.9.23

Prometeus

As estrelas jogavam esgrima

e não bolçavam violência:

era uma espécie de circo

um circo dos bons

e no céu acenderam-se metáforas

uma aurora prometida

contra os mastins que povoam pesadelos.

As estrelas em esgrima

subiram à medalha de ouro

e abrigámos na fonte dos desejos

olimpíadas com esta silhueta.

Injustiças indocumentadas (166)

Sunday, bloody Sunday

depois de tantos e arrastados

domingueiros na estrada.

#2889

Verte os garfos desassisados

sobre o sal do dia

e respira

com os olhos bem abertos

a alma que irradia.

4.9.23

Injustiças indocumentadas (165)

Dar 

as balas ao peito

é suicida

ou genocida.

Desdenhado

Antes se dissolvesse numa solução alcalina

essa ideia anã que amadurece 

com o viço dos analfabetos.

Antes fosses astronauta de doca seca

partidário visível,

daqueles que se ufanam

por darem o peito às balas

tartufo desmedido de circense veia

e as palavras

bolorentas

entronizadas no carvão atávico

dos que se ensimesmam na vaidade vã.

Antes fosses 

calado

e em teu calado nascessem vesgos atributos

e tu soubesses da tua desdita

e calado

no calado de quem se sabe grotescamente pilhérico

atiras a fala à parede

só para a ver liquidada

(a fala,

não a parede).

#2888

O futuro 

já aconteceu

quando ler 

esta linha.

#2887

Portfolio tácito,

fotografias sem critério

à espera de porta a condizer.

3.9.23

#2886

O sexo masculino

já teve dias melhores.

#2885

Borla

é tão próximo

de burla.

2.9.23

Excomunhão

O posto postiço

soletra um salitre umbilical

coalhado na coação do dia

faz-se ente de estimação

entra nas apostas do dia

e adormece

triunfal

nas alvissaras de um travesseiro.

Injustiças indocumentadas (164)

O nove

não tem culpa

de estar encostado

ao zero. 

#2884

Os dedos colados ao céu

ateiam a trovoada nascitura

e depois aplaudem, concretos,

as estrelas que esbracejam ao acaso.

1.9.23

Injustiças indocumentadas (163)

Desta água não beberei,

ó apocalíptica abstinência.