7.5.24

Dúvidas deitadas aos diamantes

Das dúvidas às dúzias

não dissipadas 

mas dádivas

o dorso dorido ainda dançando

na dorna dividida pelo deão. 

Desmontada a dívida 

desmatam-se os daninhos

antes que debruçados sobre os dedos

desfaçam as dores desajeitadas

que desarranjam os diademas. 

Das dúzias que duvidam

deste ou daquele drama doloroso

dão-se os dotes datados

contra as divindades 

que destroem o dia dúctil.

Injustiças indocumentadas (351)

A festa

não tem de ser 

rija

sem que seja

mole.

#3145

O futuro

é o nonsense 

averbado na pele perdulária.

6.5.24

Solenidade

As manhãs são claras

quando nós queremos. 

 

Os malmequeres exibidos

destronam barragens 

antes que do dormitório se levantem

os compadres destemidos

e ciciem

contra os rostos letargos

os candeeiros vetustos que ainda escrevem

velhas grafias. 

 

No oceanário 

viceja um ecossistema diametral

irradia uma luz singular

que descafeina as grandes ilusões do tempo. 

A descrição dos mineiros das almas

são sempre parciais

metódicas farsas que dão sentido à mentira

agarrando o vento desbragado que entoa o Sul. 

 

As tardes

escondem-se no silêncio dos gatos dormentes

a planura cheia de jarras

e os olhos vazios deitados 

nas pétalas despojadas.

Injustiças indocumentadas (350)

Portagens

há muitas

seu palerma.

 

[Comentário: o PS fez aprovar a extinção das portagens nas SCUT quando o recusou fazer enquanto esteve no governo]

#3144

Na embriaguez do poder

o abismo que anestesia.

5.5.24

Elevador social

Não sejam endossadas as culpas

para o elevador:

a lotação está esgotada

a tradução que se saiba:

 

frívola ambição ou ansiedade legítima;

 

arqueado pela sobrecarga

o elevador não se alça ao apetecido

arreia 

com o peso sem mesura.

#3143

No salto da vida

o rancor do desvivido.

4.5.24

Injustiças indocumentadas (349)

Qualidade de vida:

qualidade devida.

#3142

O ermo pesar

e as lágrimas de atalaia

diz-se do sofrer

a humana aceitação:

um desdireito humano.

3.5.24

Despoluição

Cortês

o aspirante engoliu o ar com uma garfada

e bolçou o cavalheirismo untuoso

que só os distraídos apreciam. 

Convenceu-se

que ia derrubar uma árvore

para transformar em paginas 

à espera de palavras

quando lhe disseram

que faltavam os conhecimentos de química

e uma motosserra que não encravasse. 

Desiludido

e já não cortês mas antes enfurecido

o estroina 

estacionou na esplanada do jardim

e ditou alto o pedido:

rapaz

 

(dito com o desdém 

de quem atinge a cátedra

ao encontrar quem esteja 

num lugar inferior

na escala das castas)

 

traz-me uma caneca de meio litro

e um pratinho de caracóis. 

Os dedos encardidos 

escarafunchavam as cavidades dos caracóis

e ato contínuo

eram atirados para dentro da boca

onde era possível encontrar

“muitos e escurecidos

dentes cariados à mostra”. 

Ocorreu-lhe desopilar 

– ainda não se convencera

da impossibilidade de ser o artesão

na improvável demanda de transformar

uma árvore em resma de papel. 

Meteu-se ao caminho,

não sem antes ter dobrado 

a dose de cerveja,

ajeitando as calças puídas 

que escorregavam pelas nádegas abaixo

e já cambaleante

pergunta à estátua do professor de medicina

se lhe vendia uma aspirina. 

Indignado com o silêncio da estátua

chamou um táxi 

para o levar até à outra margem

onde o esperava 

o tubarão na companhia da esposa. 

“Ó tubarão” 

– enquanto apontava 

na direção do bote encalhado no lodo –

“a tua mulher está a precisar de uma dieta”

fugindo aos tropeções

antes que uma gaivota 

encomendada pela senhora tubarona

uma dose inteira de diarreia atirasse 

em cima de si. 

Saltou o tempo

como o atleta salta a corda

e acordou numa cama. 

Disse

numa cama,

não era a sua cama. 

Dado o conforto da cama

e as formas baças das paredes

e o pensamento que não conseguia ficar em pé

deixou-se ao vagar do sono. 

Quando acordasse

seria a altura de ser cortês

a quem lhe deu abrigo. 

 

(Mal sabia que era a rata da biblioteca 

– explicação ao leitor 

mais dado às coisas lúbricas:

rata da biblioteca

como feminino

dos ratos de biblioteca – 

e nem assim se tomou de pânicos

muito embora da rata de biblioteca

muitos dissessem

que tentara vezes à prova de conta

que um homem da cidade

bem que fosse o mais obtuso

lhe tirasse a condição pura 

com que viera ao mundo.)

#3141

Limpava o nevoeiro aos olhos

os garfos falando, exuberantes,

e tantos outros reféns ainda do sono.

2.5.24

Material

Os ossos falam pela manhã invernal

como violoncelos que arranham a dor. 

 

O miradouro esconde o luar caiado

na penumbra dos versos destroncados. 

 

Pela voz dos lobos furtivos

a rebelião encosta-se aos dedos. 

 

Atravessam a parede bocas famintas

logram o seu mantimento no avesso da pele. 

 

E os desajeitados deuses

insistem na alfabetização das almas puídas. 

 

Sozinho no escafandro

teimo no colóquio do medo trivial. 

 

Sobram as candeias gastas

a tradução da decadência sem costuras. 

 

O grito mancha o estuque neófito

os demónios (já) não aconselham a juventude. 

 

Sob a aparência de corpos

a ostentação dos envaidecidos mastins. 

 

À mão do poema as sílabas inteiras

um dicionário da audácia completa.

Injustiças indocumentadas (348)

Estando o inferno

cheio de intenções benévolas

o inferno merece 

(no mínimo)

uma estrela Michelin.

#3140

Há quem procure

e com um afã desesperado

o seu triângulo das Bermudas.

1.5.24

Autodeterminação

Lembro

os dias de fora

a boca pelo mar dentro

a pele povoada pelo verbo louco

as palavras que subiam pela mão. 

 

Lembro

a chuva forasteira

um olhar a devolver o paradeiro

a carne amanhecida num tremor

um atlas com o teu nome.

#3139

Digo ao espelho 

que a moldura lhe ficava bem

se ele me acusar de violar 

a dieta.

30.4.24

Estridente

Olhou por dentro

a estranha locomotiva 

negociava a paragem a tempo

o velho absorto 

tirava partido dos versos embainhados

a musculatura dos rostos 

adestrava um sorriso

antes

que a maré dissesse que era tarde

que as lâmpadas apagadas 

cerceassem a noite

que imperadores errassem 

em lugarejos especulados

e mestres de artes variegadas

empunhassem o cetro indiviso

e dissessem

com a respiração mineral 

dos contadores de histórias

que tinham metido greve no calendário. 

Injustiças indocumentadas (347)

É preciso reparar 

que reparar é o consentimento 

do despassado.

#3138

Olho à distância

as cicatrizes do mundo

fujo de ser vítima tatuada.

29.4.24

Aterragem forçada

Se soubesse o idioma das marés

dispensava as pontes

os frugais heterónimos do Verão

um lugar no sol da meia-noite

como se as sinfonias alisassem as cicatrizes

e em vez de portas 

as arrecadações no postigo espreitassem

o céu preparado para o ocaso. 

 

O que nos vale

é que não há arco-íris à noite. 

 

A chuva não se mistura 

com os barcos estacionados

ensinada a cair onde a terra precisa. 

 

Os velhos

já não acordam para as conspirações;

não acordam às conspirações

preferem usar a baioneta servida a palavras

do que esculpir sonhos que precisam de tempo. 

 

Quando se amontoam os barões ajaezados

confundidos com o testamento dos tempos

as palavras engrossam no fino caudal da tarde

fingem que dão a volta ao mundo em meia hora

enganando os guardas-noturnos ensinados

no auditório encenado onde só os profetas

são esquecidos. 

 

Não é deste esgrima que se alimentam

ou a greve de fome atraiçoa os sentidos

por mais que se esforcem por ser vulcões

outra vez vulcões

porventura derrotados pelo raiar de maio.

Injustiças indocumentadas (346)

Os cinco minutos de fama

nunca duram cinco minutos. 

#3137

Guardas o relógio

onde amanhecem as palavras

e esperas

que as quimeras inaugurem o dia.

28.4.24

Injustiças indocumentadas (345)

Cobras e lagartos

também servem

para sapatos.

#3136

Eu

acredito.

Até

no inverosímil

descafeinado.

27.4.24

#3135

Entra

pelo nevoeiro inaugural

o barco altivo

pactuando com o silêncio 

através das velas levantadas.

26.4.24

Injustiças indocumentadas (344)

Quando chegasse

a grande

queria ser

marco geodésico.

Rouxinol

Através das saias do tempo

antecipo a luz que trespassa o dia

um rosto coibido no estirador do luar

a neve adiada na Primavera provecta. 

As folhas esbracejam ao vento

fogem das palavras entardecidas

como se de um microfone se ungissem

e na pele de um lobo emudecessem

amotinadas em musgos sem preparativos. 

A voz muda a conspiração

deixa-a, hibernada, no púlpito dos olhos torpes

levantando um auto contra os histriões

a maçada que se amanhã contra o dia suplício

e no fogo abraçado que caldeia tempestades. 

 

Sou este lugar ávido

um limão separado das ramagens

olhando de atalaia para as rodas fluviais

precocemente endoidecendo os dedos gastos

como se pela praça centrípeta

passasse um circo mudo

um relógio perenemente atrasado

três anciãos derrotados pelo tempo madraço

volteando as cordas lassas que vêm do miradouro:

este 

é o altar

sob o lume das candeias

os mares que cabem no colo

uma miragem tirada do caudal amarelecido

o cio confiante. 

 

Dizem

o medo foi extinto

e eu era capaz de hipotecar 

um pedaço de alma

era homem 

para deitar a coreografia à sorte

só para ver 

que número saía em sorte.

#3134

Oxalá

o amanhã

seja indisciplinado.

25.4.24