21.12.24

#3357

Contra toda esta poluição social 

um rimmel pegajoso 

a prender as pestanas 

ao olhar impedido.

20.12.24

Manifesto contra a humildade (e a vaidade)

Um pequeno rebento

medra no coalho da humidade noturna

ensina

fragilidade converte-se em viço

ou como

a água rompe entre a rocha

e as nuvens podem mais 

do que o sol omnipotente.

 

Um pequeno passo inteiro

um de cada vez

ainda que seja preciso

à vez

dois passos recuar

é o património das conquistas 

em nossos braços depostas.

O segredo

é ter audácia para exonerar os embaraços

tal como

não escondemos o rosto

das proezas sindicadas.

Injustiças indocumentadas (475)

Os porcos 

não querem 

pérolas

(deixem-nos

em paz).

#3356

No palco do adeus 

tiramos fotografias

que dispensam molduras.

19.12.24

Golpe de enfado

No uníssono vagar

em tempo que se disfarça de modo

não somos testas-de-ferro 

dos sonoros, extravagantes profetas;

 

guardamos em verso

os segredos em altura

mergulhados

e de cabeça

no exílio interior que se desprende

da matéria inválida

contra as sílabas puídas

a língua de trapos

o horrendo atentar contra o idioma

bolçado

sem cessar

pelos sonoros, extravagantes feitores,

 

os que poluem

com suas figuras coetâneas

as suas figuras carroceiras

o público espaço de que não temos fuga.

#3355

Guardo o mosto num segredo 

e, cicerone da fermentação,

terço páginas frenéticas

contra o silêncio corrosivo.

18.12.24

Injustiças indocumentadas (475)

O bolo 

de tão aformoseado 

dispensa a cereja.

Injustiças indocumentadas (474)

A morta mão 

já não vai bater 

a porta alguma.

#3354

O cardo às mãos 

a estopeta que estala na boca 

por um reinado avivado na fantasia.

17.12.24

Manual contra o tédio

Quantas foram as vírgulas 

ao comprido

o sangue enxuto na maresia

diuturna

os espelhos sem colheita no penhor

contratado

as luzes assenhoreadas no sonho

desenfreado

as notas em cima de papel avulso

os diamantes estilhaçados nas mãos

cinzeladas

um corte a eito como se não houvesse

montanhas

um responso do mendigo ao cura

sem consentimento

o invisível lugar no lugar do medo

o fogo extinto a meio do Inverno

o navio relutante à espera da enseada

as comendas a fazerem de conta

que são títulos nobiliárquicos

a matéria sofrível nas bocas ciclópicas

os cachimbos como peças de museu

o chapéu de coco também

uma ovação coeva para os precisados

a descoberta das descobertas 

enquanto ficamos à espera do passado

o apuro das almas quebradas

o terramoto interior que pede ciência

a fala frágil que foge da fecundidade

o estribo acertado com as convulsões datadas

o antes embora do que jura depois

a parede transparente que se agiganta

na sombra do luar

os beijos sentidos que intercedem pelo dia 

claro

um cavalo que porfia no meio da tempestade

o ângulo morto contra a aresta viva

um novelo de verdades a pedirem licença

às mentiras

o contrabando das almas

à sua revelia

a espada desacertada a ensinar

os beligerantes encartados

o veludo aninhado no meio das mãos

a pedra de toque e o toque de Midas

o contrarrelógio combinado contra

as divindades

o corpo esbelto a posar 

na tela centrípeta

as juras sem consequência

a jactância dos senhores disto tudo

o controlo antidoping

o poeta sem aditivos

o dia sem espinhas

o modo inteiro

o adiamento 

a cura dita

sem milagres

sem armadura

sem fantasmas a peso

sem a mínima veleidade dos mastins

sem cambalear nas arcadas sombrias

da noite. 

Quantas foram as interrogações

que ficaram órfãs?

Injustiças indocumentadas (473)

Não sejam 

de descartar 

os que preferem 

amar o distante.

#3353

O bodo pobre é dote 

um auto de miséria acabada.

16.12.24

Cartão de cidadão

Os nomes

hasteiam princípios

uma gramática por vezes esquecida

no contemporâneo desfile de egos cingidos. 

Os nomes

já não contam 

ou são tomados por pouco contarem

escondem vidas atrás de um biombo

a sagração da indiferença recíproca. 

Os nomes

são como idiomas não falados

grupos sanguíneos afeiçoados

à medida dos corpos estranhos

que os outros passaram a ser. 

Os nomes

são apenas os nomes

um pretérito estilhaçado

no imperfeito que rima com o futuro.

Injustiças indocumentadas (472)

Dão-se alvíssaras

(ó tamanha generosidade)

anda por aí

uma cabeça perdida. 

#3352

O frio fundo 

fundeia na ossatura do dia 

o gelo dá conta das veias 

arrefece as vidas pendidas.

15.12.24

#3351

Os olhos 

fingem mentiras; 

nunca avivaram tanto 

a verdade.

14.12.24

#3350

Somos 

a carne exposta 

ao gume dilacerante

dos dias contínuos.

13.12.24

Injustiças indocumentadas (471)

Arma da escolha

ou

a escolha como arma? 

Injustiças indocumentadas (470)

Grassa a graça 

a graça graçola 

que tanto nos 

assola.

#3349

Não é gente a falar 

são martelos pneumáticos 

numa tortura gongórica.

12.12.24

Campeonato do mundo

Somos os cachalotes vilões

mastins embuçando a sede de carne viva

adamastores que transitam nas alheias dores

tiranos seráficos voando sobre a indignidade

lobos incansáveis na solidão déspota

condenados por decreto beato

assanhados apócrifos em piscinas vazias

hereges sem herança

párias devolvidos ao nevoeiro circunspecto

ladrões de nomes

ladrões em forma de plágio

mandantes a soldo de um punhado de moedas

consciências sem consciência;

mas

tirando isso

não nos podem acusar de nada.

#3348

Calço o dia 

com a coragem dos audazes, 

o segredo sem máscara 

a gramática do desmedo.

11.12.24

Bilhete de identidade

Sou 

de mim 

o luar escondido

verbo afeiçoado no lacre do dia

vulcão sem nome 

que ajeita a lava furtiva

peito estuário à procura de cais

devastação que promete um arco-íris

miradouro 

por onde entram os olhos plenos

poema inteiro dito no vagar das sílabas

cidade que se deita sem horas

navio sem ser mercante

entre as alvíssaras do medo dos navegantes

e a audácia dos inventores de lugares.

 

Sou 

em mim

cada lugar tangido em demandas acesas

as pessoas que foram morada

as estrofes ainda à espera de vez

um inventário a esmo

os lustros contados de memória

o corpo onde o sol nomeia o paradeiro

um idioma à prova de regras

o general das desregras

em cerimónias sem destinatários

desfilando nas salas vazias

cortejando a solidão

ou

desafiando a solidão.

Injustiças indocumentadas (469)

Se o bom entendedor 

fica sempre sem saber 

metade das palavras 

não passa de meio entendedor. 

Injustiças indocumentadas (468)

Ter o coração na boca

(deve dar) 

muito mau gosto. 

#3347

Poder acender a noite 

as mãos devolvidas ao rosto dormente

e um sonho

amanhecendo a destempo.

10.12.24

Flor de lótus

Bebo

pela flor de lótus

o beijo caritativo

que adia o ocaso da pele.

 

Pelos meus cálculos

ainda é setembro

mesmo que dezembre 

no calendário que tatua a parede.

 

O que bebo da flor de lótus

não sei dizer.

 

Não importa saber:

a pele adia a decadência

e tenho o dia inteiro para arrancar 

uma folha do calendário

só para mim.

#3346

O sabor delido 

contrafação ao alto 

no palco 

onde se afeiçoam as farsas.

9.12.24

Semibreve

Vejo

pelos olhos da aurora

o respirar do dia pródigo

um homónimo da luz quente

que se abraça ao corpo preparado.

#3345

Os braços que abraçam 

não são os mesmos 

que lutam.