7.11.25

Injustiças documentadas (612)

Foi a tinta 

de tanto correr 

que o sol se fez baço.

 

[Este poema não é patrocinado pelas Tintas Barbot]

#4259

Escondemo-nos 

não por medo de fantasmas 

escondemo-nos 

por dever de restrição 

a modéstia incansável.

6.11.25

Manifesto contra as profecias

Oxalá os cavalos sentados

esperneassem contra os deuses distraídos

e da confusa coreografia

com o beneplácito de coveiros envelhecidos

sobrassem as bocas atónitas 

como se estivessem 

anestesiadas por um luar feito de quimeras. 

Já não sei 

o que fazer com as profecias

que jorram com a abundância de um nada. 

Uma amálgama de medo e claridade

invade o papel que espera pelas estrofes. 

Dizem que o dia messiânico

tomou conta dos véus que ornamentam os rostos. 

Dizem

que não falta muito

para os demónios se tornarem gladiadores

tomando conta da melancolia rebelde. 

Oxalá 

todas as profecias crepusculares

sejam desmentidas 

pelos verbos que se agarram às bocas

famintas de futuro.

#4258

O testamento 

é a prova do passado 

selada na fina louça do futuro.

5.11.25

Digo estas palavras

Digo destas palavras:

 

o silêncio tribuno

a alma que sangra

o estiolado juro que juro

as sílabas que não tartamudeiam

é nessas palavras

que terço um idioma

o jasmim que vem às mãos

o olhar de uma criança aluada

ou o cão que se faz suserano das ruas

e que mesmo assim

vem comer às mãos bondosas. 

 

É por estas palavras:

 

levanto a manhã da luz inaugural

e em estrofes que rasam os violinos

de mim me dou em legado

gramática que dissolve as algemas

da posteridade.

#4257

Abre-se uma janela sobre a manhã 

e vejo o esplendor a povoar o dia.

Injustiças documentadas (611)

De molho, 

as barbas; 

mas que molho 

se serve às barbas?

4.11.25

#4256

O fio desprende-se do precipício 

e o chão torna-se um pesadelo.

3.11.25

Desavença geral

Cultivo a anatomia da indiferença

um certo desmodo do ser atual

até parecer fora do mundo

e acabar a pensar

fora da caixa.

Cultivo

esta despertença

intencional

intransitiva:

as ruas têm um aroma ácido

as pessoas parecem todas estranhos

a claridade convoca o crepúsculo demorado

pois na ausência de luz

tudo fica oculto

até os agentes 

que repetem agressões diárias.

#4255

Limpas a fuligem 

que embacia a alma 

não há dia que fuja 

ao ritual.

2.11.25

#4254

Sou 

o fato feito à medida 

do dia por ocupar.

1.11.25

#4253

O cheiro a ódio 

envenena todos os minutos 

que viajam no sangue.

31.10.25

Injustiças documentadas (610)

Quando o sol é de muita dura

poucos aprovam a colheita.

#4252

O lobo 

faminto do sangue nosso 

medra por dentro das veias 

e nós, venais, sabemos.

30.10.25

Injustiças documentadas (609)

O elefante

não cabe

na sala.

Injustiças documentadas (608)

Três

(Salazares) 

foi a conta 

que o aprendiz fez.

Injustiças documentadas (607)

A pedra sem cal 

o mar sem sal

o tirano sem mal.

#4251

Vamos, 

vamos patear 

o homem das tabernas.

29.10.25

Suposição

Manda o sindicato da felicidade 

dizer

que é proibida a melancolia

em dias de luar de peito aberto.

Os infratores

serão punidos com três noites de insónia

para aprenderem com o luar tumultuoso

a serem necessariamente felizes

 

(e não apenas felizes).

#4250

Outro dia 

o ogre do tempo 

intransigente.

28.10.25

Ao acaso

Jogo os dados na marca da incerteza

componho os cabelos

um meneio capaz de quem demanda a sorte

de alguém que apedreja a superstição

e no turbilhão das forças e dos sortilégios

arrumo os dados sem pensar duas vezes

que nem uma só seta salvação possível. 

Jogo os dados

que o mistério da sorte

é surdo às intimações postiças.

#4249

Contar espingardas 

é como contar mortos 

antes de o serem.

27.10.25

Negação à negação

Não 

não é a neve que enovoa a noite

que destrona a noiva cidade.

Não é

o turvo decair

que transgride as traves 

que entronizam as pessoas.

Não é

a besta baça

que embainha as botas armadilhadas.

Não sei o que seja

a não ser

todo o inventário que inventei

para dizer

que não é por coisas essas

que os lugares e as pessoas

se perderam de paradeiros.

#4248

A hora muda 

mas a hora continua 

muda.

26.10.25

Mapa mundo

Costurássemos os costumes com o carvão do medo

as viúvas ao deus-dará

 

(oh, heresia, que Deus permitiu,

talvez distraído,

que uma palavra inspirará em seu nome

fosse iniciada com letra minúscula)

 

ao deus-dará as viúvas,

dizia,

portadoras desses funestos véus

que ninguém ousa postergar. 

Oxalá a algazarra dos petizes não termine;

precisamos de uma mnemónica da infância

para avivar a memória

de como era ser infante

sem consumições porque o mundo à volta

ainda não existia

e agora 

que já não nos gabávamos da adulta idade

sabíamos que o fingimento se apoderara de nós.

Fingíamos moderação

um espelho desimpedido 

para as palavras das outras bocas

e nós

enjeitando a autarcia

crescíamos como autarcas de um voto só. 

Às vezes

apetece agarrar a vida pelos colarinhos

depor a ira em forma de babugem

ou a ira arrancada a ferros das notas de rodapé

de dicionários vetustos e esquecidos 

nas arrecadações mentais. 

Apetece cuidar do dia

como se durasse meses a fio

e exilássemos as páginas desaproveitadas

as páginas que não cumpriram a folga do futuro. 

Outras vezes

deixamos que o tempo seja refém

das mãos que entrelaçamos

e das palavras murmuradas no cais do silêncio

trazemos estrofes arregaçadas ao rosto

é como 

se emprestássemos os rostos à chuva outonal

e desmatássemos todas as vírgulas gongóricas

as que enxameiam o poema diário

com as luas altivas

que ensinam as maneiras válidas

de sermos testemunhas primordiais

do belo em que o mundo se encerra

e nós

nós somos o seu mapa,

mundo. 

#4247

Joga uma tripla 

como no totobola 

e sais sempre a ganhar.

 

[Grandes remédios para males não tão elevados]

25.10.25

Injustiças documentadas (606)

Dizer 

que vai ser 

muito sincero 

é como apregoar 

que um espetáculo 

é totalmente gratuito.

#4246

Toda esta vaidade 

uma língua de trapos 

de almas 

que nem o avesso conhecem.

24.10.25

Marco

Cortamos as palavras em dois

o número tangente de que somos imagem. 

Subimos a noite desimpedida

no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,

a atalaia aos mundos profundos

uma simples mão pousada na outra

depondo o outubro fecundo.

#4245

Contem 

os metros do dia 

cada milímetro de lágrima vertida 

os quilos de angústia por decifrar.