20.11.24

Estuário

Dou-me ao luar sem rosto

o sangue respira a noite funda

e no teu regaço

o Outono imarcescível no estuário

rima com a pele escrita na minha.

Injustiças indocumentadas (459)

Meter os pés pelas mãos 

é digno de um contorcionista.

#3326

Deixo 

a sentinela do tempo 

por conta da alma interina.

19.11.24

Manifesto-me

Não devo nada 

aos segredos que se agigantam

nos oráculos. 

 

Não peço à cordilheira

o xisto para atapetar

a alma. 

 

Não escondo

das pátrias em lacunas

hinos averbados na humildade. 

 

Não me escondo

do olhar contrafeito

e das palavras ensombradas 

por bocas extintas. 

 

Não dou posse

aos estafetas de dionisíacos cantos

nem apalavro a honra

de sereias avulsas. 

 

Não estilhaço

o rumor que sobe às montanhas

contra os provérbios arrancados

ao silêncio. 

 

Não contem comigo

para caldeiradas de indigentes

e cocktails de aspirantes. 

 

Não me façam dizer mal

das facas estultas que voejam

nós labirintos. 

 

Não me façam rir

se os obituários enxameiam a lógica

e as janelas não confirmam

o entardecer. 

 

Não me façam ser

um disfarce da última moda

o porta-voz dos lugares-comuns

atravessado nos carris 

da boçalidade.

#3325

O aval 

não procura o vale 

onde se avalia o dissídio. 

18.11.24

As vírgulas

As vírgulas ultrapassam sem prudência

o parágrafo levado pela lentidão de um ancião

como quem precisa de ostentar impetuosidade

e na mealha do dia

deixar viva a impressão digital

como os gatos fazem ao deixar 

com metódica vantagem

a urina como mensagem de coutada. 

Se as vírgulas não fossem tantas vezes atropeladas

deixariam em forma de segredo

beijos de ouro nos ouvidos dos juízes macios. 

Só que as vírgulas

estão cansadas de serem colocadas

em lugares a que não pertencem

e dessa sôfrega orfandade 

não se antecipa que tenham carta de libertação 

num tempo imerso no estofo de duas gerações.

#3324

Versado em castrações 

autuava a simples vontade, 

o eterno polícia que não de si.

17.11.24

#3323

Apeado o medo 

as mãos subiam a encosta 

no verso frígido sem avesso.

16.11.24

#3322

O mel 

descido na ossatura do dia 

enfeita as horas desapressadas.

15.11.24

Hemisfério

A corda desatada cicia a nuvem fina

acorda antes da noite deletéria

cobrindo com a sua voz distante

os rostos enviuvados dos órfãos.

 

A nuvem que corre ao vento

esbraceja nos violinos roubados

e no amurado rumor de um coração

as mãos gentis falam só por música.

 

A maresia depõe o céu constelado

amordaça as bocas que outras calam

no tapete amarrotado vertido num ermo

os corpos servidos num palco estremunhado.

#3321

No avesso das mãos 

as veias sem freio 

a seiva manancial 

a afeiçoar o seu estuário.

14.11.24

Altitude

Cotejo o robusto entardecer

à espera de a noite se deitar

vejo todos os rostos a empalidecer

 

e às horas que combinam o seu contar

roubo a rima que se admite conhecer

como se aos meros dedos o medo bastar

 

e no trono feito de amanhecer

das estrofes não se vão os homens fartar

até o luar nos corpos se enternecer

 

nos violinos que ao silêncio destinam matar

enquanto os amantes aceitam entontecer

e das dádivas se cristalizar um certo estar.

Injustiças indocumentadas (458)

Havia muitos problemas.

Avia muitos problemas.

Problemas resolvidos.

#3320

Por um triz 

o açaime 

e todas as palavras detidas 

à boca de cena.

13.11.24

As berças desimundas

O notário das coisas arriscadas

convocou para a mesa os procuradores bastantes

e não se ouviu um ciciar enquanto esperavam,

a par da gravidade da ocasião.

Num canto da sala

aliviando o ar pesado da circunstância

um síndico tossicava

intercalando o incómodo com um sorriso louco.

Quiseram extraí-lo da sala

por impreparação para a solenidade

e desrespeito dos pactos firmados 

com o sangue da sociedade.

Saiu.

Aliviado.

Com as más orações que fizera

o edifício estaria para desabar

mal ele soltasse a voz cavernosa

e um sismo arrancasse o arranha-céus pela raiz.

Os adoradores de apocalipses aplaudiram de pé.

Nos escombros

a fina nata dos mandantes 

que têm o mundo na mão.

O mundo aguentaria esta orfandade sísmica.

Deus,

o tal que não existe,

não anda tão distraído

e também anotou a maldade dos histriões 

que aplaudiram a catástrofe.

#3319

Um passatempo 

que passa o tempo

é um contratempo.

12.11.24

Fato de três peças

Trago 

num peito incisivo

a âncora que sonda as funduras submersas

onde a luz não acende o dia

na gramática sentinela que se depõe a meus pés. 

 

Trago 

enquanto orquestro a apneia

os versos que hasteados no promontório

meu alimento contumaz

no irrealizável sonho sem costuras atadas. 

 

Trago

o que trago de herança

e na digestão vagarosa

enquanto traduzo o luar que se agiganta

componho a luz síndica que uso como candeia

antes que a manhã 

me venha sentar no miradouro que dá 

para o estuário. 

 

O que trago 

amarrado à auréola disfarçada

não é o imperativo pesar

a massa aguda que cimenta a angústia

 

(que não é de dor que fala o peito)

 

uma avalanche de lágrimas outrora retesadas

as cortinas que escondem o dia solar

um tríptico 

que afunda o rosto numa viela perdida

a palavra ermo que fica sem paradeiro por medo

os sortilégios empenhados nas sinuosas varas 

que desalinham o dia. 

 

Trago 

o que trago com a boca faminta

à medida que trago o que de mim ao peito trago. 

 

Não é contumácia

desenhar os deslimites que avisam a fala

nem combinar com os que boicotam os deuses

uma dança desordenada

só para celebrar a deposição dos deuses

à mercê de sepulturas que desfilam 

no campo do olhar

imaginadas

puramente imaginadas

sem os embaraços 

que a cultura dos dias repetidos

embainha. 

#3318

Sangra a revolta

na apoteose arrematada.

11.11.24

Às cinco em ponto

Empresta-me o teu cacique

à troca de um panamá jeitoso

para deslumbrares no baile vespertino.

 

Os facínoras plantados não se devolvem

ficam ao vento, desorgulhosos dos ardis

enquanto as madames bebericam o chá

e comentam o tom rosado da atualidade

dedilhando viciosamente as madeixas.

 

Nos ajuntamentos junto ao adro

combinam-se atos de obediência:

o luto será sempre a negro

a menos 

que saiam em exílio por dissonância.

#3317

Um vaso aberto 

os estilhaços bebendo na mão 

a noite baça pela voz do nevoeiro.

10.11.24

#3316

Abrigo 

os verbos navegados

os espelhos que ateiam a manhã temperada 

o lugar elevado 

onde contrato o mundo desavisado. 

9.11.24

#3315

Um grama de alquimia 

um grama só

em troca da trama exímia.

8.11.24

A inteligência perseguida

Entorta-se a calha por onde segue o dia.

As garras já não estão escondidas.

Travam-se as falas por medo de serem cometas.

Dantes eram embaraços, agora descolonização.

Às ideias viúvas fica a celebração corrompida.

 

O torno é preciso para reparar o dia.

A pele arranhada sofre de tatuagens castas.

As bocas fugiram do silêncio e dizem luares.

Combinam a soberania sem ser furtivamente.

Nem toda a corrupção fica na litania da lei.

Mapa

À porta

sem fronteira

à espera 

de ser forasteiro em todos os lugares

esquecido o relógio

nas mãos apenas a nudez inteira

e o riso fermentado na saudação do mundo.

#3314

Atiro os dados 

e recolho da toalha pendida 

a rendição do dia mordaz.

7.11.24

Alfa

No ciciar da voz

escondem-se os versos embotados. 

 

As batas escuras

atravessam o deserto 

sob o sol punitivo

os olhos amarelecidos 

como se estivessem colonizados. 

 

Discorrem as páginas divididas

um escafandro depois do dia vindicado

para às mãos erradas não termos entrega

salvam-nos as mães renascidas. 

 

O óbito do pudor

encena-se na câmara de espelhos

na geografia onde mandam os labirintos

os cantos válidos que se combinam

nas bocas que não cedem ao desânimo. 

 

A lua está talvez povoada:

dizem 

que os sonhos têm lá procuração

e no vivo atilho que aformoseia os rostos

se vê projetada a chama do luar

um lugar sem nome 

que chama pelas árvores. 

 

Do amanhã não se enfeitam os lábios 

nem esperam que seja em bancos gastos

pela ordem do dia 

– como se o dia desse ordens 

e uns capatazes resgatados à indigência

vigiassem as ruas todas

as esquinas todas

o dicionário todo

de A a Z. 

 

À porta

o poema cavalga

as rédeas sobranceiras aos despojos matinais

e as vozes que se existam no gradeamento

expulsam vultos tiranetes

senhoras e juízas da atalaia maior. 

#3313

Gaguejas o intempestivo vagar

e esperas que façam de conta 

os figurões em forma de senador.

6.11.24

Etapa cinco

Belo o apogeu que não cresta

aparafusado ao braço que denta no voraz

a não beligerância que aferroa a árvore cega.

 

Apetite que amanhece 

contra os sofás puídos dos estetas 

a vibrante cegueira disfarçada de venda 

o formulário burocrático que adia o tempo.

 

A colmeia rege o rigor da luz 

não se entediam os lúdicos apostadores do dia

e escutam 

com a proverbial atenção dos distraídos

o que dizem os embaixadores do silêncio.

#3312

Não queremos, 

mas somos,

a vingança sobre a História, 

a tragédia arrematada no futuro.

5.11.24

A porta arrombada

O largo ensejo de parecer estátua

devolve ao aço fundido a vontade anestesiada. 

Por fora dos pesares

onde os verbos da angústia foram destronados

só a névoa estremunhada 

que não atraiçoa as palavras. 

E se os dedos trémulos os versos não curarem

atirem-se os medos ao pelotão de fuzilamento

encardidos pelos vetustos embaixadores 

que falam com a cara do avesso. 

Sortes as várias noites sem ouvir o vento

e no pecúlio dos sonhos

em matéria incandescente

as folhas caídas 

no inventário das imagens colhidas

em vez da metamorfose à força

em vez 

do desamparo a caminho da solidão. 

Arrumadas as intransigências

ao ouvido soam tiranas que colonizam as mãos

ou as mães que partiram sem saírem do lugar

mas da sua ausência sobram cinzas avulsas

espalhadas pelo chão paredes-meias 

com as folhas vertidas pelo Outono. 

Ao demais

sufrago as armas depostas

a fidúcia toda empenhada no sangue 

que ensina as veias

o martelo pneumático 

que semeia o ruído mecânico

em quem 

com as costas viradas do avesso

no absurdo equívoco 

desafia os mastins generosamente armados.