Vista de fora
a fronteira
é só uma miragem.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Gota a gota
o suor bolçado
efervesce a pele
na clepsidra hiante.
Dos olhos
a paisagem sondada
desenha uma silhueta
no escafandro enferrujado.
No perímetro
lugar desviado do sagrado
adormece o adro
em seu sentido espectral.
Diz esta pérgula
que foi síndica de paixões
sem culpa formada
por ser bucólica atração.
Ao mar
as angústias evisceradas são devolvidas
nadam na profundidade
na escuridão em que medram.
Dou-me à noite
guardiã improvável da carne
na anestesia do pensamento
o lugar onde se fabricam os sonhos.
Que segredos esconde
a maré alta
a não ser a conceção do segredo
que se esconde sob o vidro fosco
do mar agitado?
Que verbos desalinha
a maré baixa
por deixar os destroços da maré prévia
de que não consta
sequer
entrada em dicionários?
Que saques
acordam na penumbra
enquanto as marés disputam o púlpito
e os números não contam
na aritmética?
Que provérbios
ficam por inventariar
pelo marégrafo intrigante
que esconde as folhas
sob o restolho do Outono?
Uma vantagem dos cínicos
é estarem sempre à espera
dos contratempos
para depois dormirem com eles.
Outra vantagem
é desconhecerem a língua de trapos
da desilusão.
O espaço que dista
até deixar de ser lucidez
é a medida escolhida
a multiplicar por
(número à escolha do leitor).
A língua prova o azulejo
como se fosse o esquadro
onde se compõe a gramática.
Não digas à lua,
segredas
para ninguém ouvir,
ou ela esconde-se
sob nuvens mal humoradas
e depois temos de adiar
o sortilégio da noite.
Ao baralho
faltam
(número à escolha do leitor) cartas;
não se suponha
que um dos gladiadores
fica em vantagem:
a adulteração da sorte e do azar
é indiferente
ao número de cartas em falta.
Corre ao miradouro
pode ser que vejas o luar
desenhado em azulejos distintos
onde se escondem
as cartas em falta.
Ensaiam
na maquinal dança sem fim
a anestesia dos sentidos
o apurado desfreio
que ilude a liberdade.
[“Sirât”, realizado por Óliver Laxe]
De todo o mundo havido
sinto que estou devedor
de muito mais mundo por haver.
Os lugares por inaugurar
a promissória
de cujo distrate o tempo cuidará
terão um dia inventário.
Não sei
quanto mais mundo haverá
mas sei
que sou,
e em parte significativa,
todo aquele mundo já havido.
Por que se diz
pela hora da morte
como se fosse
um contrato de carestia
se à morte é tão fácil chegar?
Entorta as certezas
no palco dos erros
onde vestes
a humildade dos pequenos
e, contudo,
entroniza a imutável grandeza
da linhagem sem contrabando.
Engana as costuras
que nas feridas transportas rastos
desacontecimentos sem memória
e a espingarda que rebenta
com as cicatrizes do mundo.
Faz com que a amnésia
venha comer à tua mão.
As coisas que as coisas têm
não se juntam aos adjetivos
que sobre elas se inventariam.
Se ao menos soubéssemos
se as coisas têm um avesso
não procurávamos pelas bainhas
até sabermos do seu fundo.
É como
mergulhar num poço sem fundo:
ninguém acredita na credenciação,
mas não se vê nada
a não ser o nada.
É nesta custódia
que quero albergue.
Os rios abundantes,
veigas exuberantes,
colheitas frondejantes,
um segredo
para evitar a invasão
de sobressaltos,
a noite repleta
de sonhos válidos.
Um corpo
em forma de dádiva.
E o outro,
recíproco,
numa coreografia servida
por estrofes matinais.
Se perto fosse a ofensa
e de guetos falassem
os idiomas sem diálogo
as vestes solenes
com que se disfarçam
os lugares
teriam de arder numa pira.
Se puídas fossem as bandeiras
e as bocas não falassem
por reflexo condicionado
as palavras seriam como velas acesas
pelos ventos ao acaso
e dos mares demandados
só haveria notícia de sereias feiticeiras
e marinheiros testemunhas da madrugada.
Não transigimos com os pesadelos
quando o lugar do crepúsculo
eles ocupam
e arrepiam os versos que são a prova
de que as quimeras não são apenas
a fértil encenação de sonhadores avulsos.