27.9.25

#4218

O suor 

fala na pele cansada 

de um lugar puído. 

26.9.25

Enciclopédia

A minha mão estendida 

para ser o rosto que te diz o amanhã. 

A pele sem remorsos que te ensina a usura. 

A madrugada sem atalaia. 

Um beijo que se soma os dias sobrantes.

A carne que amanhece a meio de um sonho. 

As estrofes que dizemos à medida do luar. 

O lugar onde só somos nós. 

O dia em que não paramos para ser ontem. 

#4217

Sou 

mais do que uma voz 

a bandeira escondida 

o fingimento da mudez.

25.9.25

Vigias

O osso cruel

a faca que fica por dentro

a fogueira onde decaem as flores

o entardecer arrastado

a lava diuturna, a abrandar

o abecedário confusamente colonizado

a matriz celta num teatro crepuscular

a matéria funda que se funda num estertor

a demência dividia por dois e meio

o embaixador itinerante que perdeu a fala

o muito polido sequestro do silêncio

o deve e o haver e o zero como saldo

a enseada brusca

a escrita impessoal e vagamente solar

um bouquet de beijos sortidos para descomprimir

a espada estiolada a desenhar fantasmas 

as ferramentas perdidas indulgência da ferrugem

a véspera adivinhada com um olhar capataz

as armas desengonçadas

e os Rambos de taverna

a matéria-tia arrefecida a gelo avulso

o equinócio sem paradeiro

a estrela masculina

o charlatão aperaltado

o fugitivo sem cais à espera

a sobremesa sem haver mesa

a conta desenfreada

o xerife condenado à orfandade

o pequenote que não é um rapazote

a tinta da tina

e a China suína

a estatura tingida de tatuagens

a estátua tomada por tiranos ambulantes

e uma volta ao mundo

uma dúzia de desejos desembainhados

a congelação não vaga da existência.

#4216

De emenda em emenda 

no murmúrio do fadário 

de quem se veste 

de gato preto.

24.9.25

Recurso

Os outros 

são o pesadelo que profana a carne. 

As mãos sobrepostas cobrem o corpo, 

ocultam-no dos outros 

sem que o possam sondar. 

O silêncio cuida da absolvição. 

Transforma os pesadelos num sonho só. 

A recusa dos outros 

não é uma sentença.

Injustiças documentadas (596)

Não pregues

em freguesia alguma.

#4215

O medo domado 

entra em cena 

na contrafação 

da luz diáfana.

23.9.25

Manifesto contra a senilidade

O século 

atirou sal de mais 

para o sangue 

num telúrico bocejo 

contra a inadmissibilidade da espécie. 

O século a seguir, 

desconfiado,

abriu concurso: 

deu folga 

ao excruciante pesar 

das almas passadas 

como se por elas suplicasse 

uma estirpe de confiança. 

O mérito não esconjurou 

o sangue ainda puído 

e a espécie insiste 

no suicídio como tal, 

o exemplar desexemplo 

do logrado pelo século paciente. 

Dele

não se diga 

ser anátema dos tempos, 

ou que seja diligente 

no acerto de contas 

com a espécie deslustrada: 

 

os votos falam pelas pessoas 

e o século assiste 

nos bastidores 

às urdiduras da loucura em movimento. 

 

São os votos a elegia fatal 

a que vão sendo somados 

episódios do desorgulho, 

da espécie que não merece 

as outorgas da biologia

nem a usura dos pontos de exclamação.

Injustiças documentadas (595)

Diz-me a tua caligrafia

a pessoa que não és.

#4214

O verbo sincopado 

à altura do rosto estrénuo 

junta o ocaso com a sede de saber.

22.9.25

Injustiças documentadas (594)

Sabemos 

o que é uma maré-viva. 

E uma maré-morta, 

é quando o tempo emudece?

#4213

Não é para acordar consciências, 

a poesia. 

Não se disputa assim 

o sono dos outros.

21.9.25

#4212

De cada vez que anoitece 

o sonho agiganta-se 

nas asas de uma quimera.

20.9.25

#4211

A metáfora 

nunca fala 

sozinha.

19.9.25

Injustiças documentadas (593)

Afinal de contas.

A final de contas.

Afinal decantas.

Injustiças documentadas (592)

Ali estava 

à espera 

de uma vaca de fundo 

sem dar conta 

que não estava na Índia.

#4210

Que ninguém deixe de amuar 

se o contrário for fingimento.

Injustiças documentadas (591)

Não dar cavaco a ninguém 

não é má ideia 

tal é a desvalorização do Cavaco.

18.9.25

Nó cego

O que se compra

com uma boca cheia de palavras?

Foi assim

em pose sarcástica

cheia de moléculas de certeza imponderável 

que amanheceu a conversa

como se fosse preciso

acordar sem aviso prévio

e os ouvidos 

a que se destinava a boca sem travão

estivessem obrigados a ocuparem essa posição. 

 

Um logro bastante.

 

Tomaram a palavra os ouvidos desafiados

desta vez sua uma pose

a desobediente pose

cultora de impaciência com as frivolidades atávicas. 

Não queriam ser o caudal

por onde entrava 

a gongórica prestação de inutilidades. 

Infelizmente

as preces de uns sobrepõem-se

ao silêncio dos que

impassíveis

fogem do centro do palco. 

#4209

O alterado verbo meu 

que não espera por dádivas.

17.9.25

Injustiças documentadas (590)

A falta de comparência dos deuses

deve-se à extinção do barro.

#4208

Sem mãos 

sem mãos 

sou eu, 

em combustão vulcânica, 

a conduzir um mundo.

16.9.25

Uma prateleira de versos (desbiblioteca)

Se um dia 

vier um vento omisso

e do avesso a cabeça fruir num precipício

não me digam 

que é uma conspiração de Morfeu 

não me digam

que estou de avanço pelo fuso telúrico

e de mim se espera 

apenas 

a morada do silêncio. 

Se um dia

as portas decadentes combinarem 

com os veios da luz contrafeita

e eu 

aos deuses continuar sem dizer palavra

que me sejam abraçadas as bocas extáticas

a irremediável porção da noite

desencomendada aos anjos galopantes

e num arremedo de audácia

a mim 

convoquem as estrofes ajardinadas

o penhor de todos os medos

e eu

via láctea sem muros

me torne baldio não cadastrado

o amador profissional

que dá de penhor o sangue eflúvio

e uma prateleira de versos.

#4207

Ninguém sabe 

dos amuletos dos outros; 

ninguém olha 

pelo avesso das mãos.

15.9.25

Um copo de canseira (das antigas)

Um cofre arrendado ao porteiro

a parola que se avinagra nos mentirosos

essa terrível mania de falar da vida dos outros

viver – como se fosse possível – a vida dos outros

o asfalto perene que se cola ao céu da boca

e acaba com a mudez das consoantes

as diatribes de que são vítimas

na pessoa de fantasmas bem oleados

ao frequentar a disciplina 

“princípios gerais da conspiração”.

Um nabo a tiracolo

(estou mesmo a falar do vegetal)

emagrecidos pela dieta exemplar

os lugares-tenentes assobiam para dentro

à passagem de uma mulher escultural

agora são proibidos os piropos

foram extintos os piropos

a bem da antítese da masculinidade tóxica.

Amanhã

quando vierem os operários da metalurgia

vais tirar o modelo das fardas;

pode ser o futuro último grito da moda

antes que a moda emudeça de vez.

Injustiças documentadas (589)

Ao nono dia 

tirou um curso intensivo 

sobre como passar 

dos atos às intenções.

#4206

Pela cara do dia 

o sangue está em vias 

de se tornar lava.

14.9.25

#4205

O rufia 

forrado pela ira 

entontece a noite deserta.

13.9.25

#4204

A fama 

é sempre decantada 

pela boca dos outros.