9.8.25

#4172

Vista de fora 

a fronteira 

é só uma miragem.

8.8.25

Umbilical

Gota a gota

o suor bolçado

efervesce a pele

na clepsidra hiante.

 

Dos olhos

a paisagem sondada

desenha uma silhueta

no escafandro enferrujado.

 

No perímetro

lugar desviado do sagrado

adormece o adro

em seu sentido espectral.

 

Diz esta pérgula

que foi síndica de paixões

sem culpa formada

por ser bucólica atração.

 

Ao mar

as angústias evisceradas são devolvidas

nadam na profundidade

na escuridão em que medram.

 

Dou-me à noite

guardiã improvável da carne

na anestesia do pensamento

o lugar onde se fabricam os sonhos.

#4171

O disfarce

vestiu um disfarce 

e deixou de ser genuíno.

7.8.25

A procissão dos segredos

Que segredos esconde

a maré alta

a não ser a conceção do segredo

que se esconde sob o vidro fosco

do mar agitado?

 

Que verbos desalinha

a maré baixa

por deixar os destroços da maré prévia

de que não consta 

sequer 

entrada em dicionários?

 

Que saques

acordam na penumbra

enquanto as marés disputam o púlpito

e os números não contam

na aritmética?

 

Que provérbios

ficam por inventariar

pelo marégrafo intrigante

que esconde as folhas

sob o restolho do Outono?

#4170

Sou o dia aberto

o peito estrénuo

a fala sem intimidação.

6.8.25

Os cínicos

Uma vantagem dos cínicos 

é estarem sempre à espera 

dos contratempos 

para depois dormirem com eles.

Outra vantagem 

é desconhecerem a língua de trapos 

da desilusão.

#4169

Arruma a solidão 

na moldura do tempo.

5.8.25

Amuleto

O amuleto 

fala com as sílabas ao acaso 

no avulso ocaso vertido

em versos luminosos

versos que sorriem ao sol amplo.

#4168

O peso do ouro 

preso por arames 

no testamento dos estilhaços.

4.8.25

O naipe em falta

O espaço que dista

até deixar de ser lucidez

é a medida escolhida

a multiplicar por

(número à escolha do leitor).

A língua prova o azulejo

como se fosse o esquadro

onde se compõe a gramática.

 

Não digas à lua,

segredas

para ninguém ouvir,

ou ela esconde-se 

sob nuvens mal humoradas

e depois temos de adiar

o sortilégio da noite. 

 

Ao baralho

faltam

(número à escolha do leitor) cartas;

não se suponha

que um dos gladiadores

fica em vantagem:

a adulteração da sorte e do azar

é indiferente

ao número de cartas em falta. 

 

Corre ao miradouro

pode ser que vejas o luar

desenhado em azulejos distintos

onde se escondem

as cartas em falta. 

#4167

Mutantes 

como o sangue furtivo 

que foge do medo

e canta no estuário da manhã.

3.8.25

#4166

Ensaiam 

na maquinal dança sem fim 

a anestesia dos sentidos 

o apurado desfreio

que ilude a liberdade.

 

[“Sirât”, realizado por Óliver Laxe]

2.8.25

Injustiças documentadas (566)

Mnemónica para os distraídos: 

mais gato do que lebre.

#4165

No abotoar das ideias 

contam as palavras 

escolhidas a dedo.

1.8.25

Injustiças documentadas (565)

Na zona franca 

ninguém conta mentiras.

Injustiças documentadas (564)

E depois 

há aqueles 

cujas vidas 

são eternas obras 

de Santa Engrácia.

Injustiças documentadas (563)

Antes (de) cair em desgraça 

(há) que ser engraçado. 

#4164

Um lampejo de cor 

esbraceja no crepúsculo 

promete a luz que resgata 

a lucidez.

31.7.25

Cosmovisão

De todo o mundo havido

sinto que estou devedor

de muito mais mundo por haver.

Os lugares por inaugurar

a promissória

de cujo distrate o tempo cuidará

terão um dia inventário.

Não sei 

quanto mais mundo haverá

mas sei

que sou, 

e em parte significativa,

todo aquele mundo já havido.

#4163

Antes a dissidência 

do que desabar 

pelo peso da consciência.

30.7.25

Injustiças documentadas (562)

Por que se diz

pela hora da morte

como se fosse

um contrato de carestia

se à morte é tão fácil chegar?

Amnésia

Entorta as certezas 

no palco dos erros

onde vestes 

a humildade dos pequenos

e, contudo,

entroniza a imutável grandeza

da linhagem sem contrabando.

 

Engana as costuras 

que nas feridas transportas rastos

desacontecimentos sem memória

e a espingarda que rebenta

com as cicatrizes do mundo.

 

Faz com que a amnésia

venha comer à tua mão.

#4162

Acordava 

sem o fole dos pesadelos 

desalfandegado de todos os medos.

29.7.25

Assinatura com tinta permanente

As coisas que as coisas têm 

não se juntam aos adjetivos 

que sobre elas se inventariam. 

Se ao menos soubéssemos 

se as coisas têm um avesso 

não procurávamos pelas bainhas 

até sabermos do seu fundo. 

É como 

mergulhar num poço sem fundo: 

ninguém acredita na credenciação, 

mas não se vê nada 

a não ser o nada.

#4161

À vaia, 

ouvidos de parede

e sono discreto.

28.7.25

Saltar sem corda

É nesta custódia 

que quero albergue. 

Os rios abundantes, 

veigas exuberantes, 

colheitas frondejantes, 

um segredo 

para evitar a invasão 

de sobressaltos, 

a noite repleta 

de sonhos válidos. 

Um corpo 

em forma de dádiva. 

E o outro, 

recíproco,

numa coreografia servida 

por estrofes matinais.

#4160

Corpos silhuetas

expropriam a luz; 

deles 

é o trono do estio.

27.7.25

#4159

Talvez sem custódia, 

que somos amantes 

da liberdade.

26.7.25

#4158

Não tenhas medo da lanterna 

a luz não te morde o pensamento.

25.7.25

Sem fronteiras

Se perto fosse a ofensa

e de guetos falassem 

os idiomas sem diálogo

as vestes solenes 

com que se disfarçam

os lugares

teriam de arder numa pira. 

 

Se puídas fossem as bandeiras

e as bocas não falassem

por reflexo condicionado

as palavras seriam como velas acesas 

pelos ventos ao acaso

e dos mares demandados

só haveria notícia de sereias feiticeiras

e marinheiros testemunhas da madrugada. 

 

Não transigimos com os pesadelos

quando o lugar do crepúsculo

eles ocupam 

e arrepiam os versos que são a prova

de que as quimeras não são apenas

a fértil encenação de sonhadores avulsos.