17.1.25

O corsário

O corsário devolve a espada

no estuário onde naufragou o dia.

 

Vence o sono

contra as previsões 

do pesadelo que tomou conta da noite

e respira no cachaço do dia

empresta-lhe o ânimo

a desmentir a previsão de funeral.

 

O corsário

deposto do seu posto

vestiu farda civil

e agora não se distingue

dos piratas disfarçados.

Injustiças documentadas (494)

A vida contínua:

a vida continua.

#3386

Adormece o escárnio 

a cólera dos órfãos 

arrefece a lava diuturna.

16.1.25

Perdido na lotaria

Abriga-te na lotaria sem paradeiro

não é a sorte que demandas

apenas uma varanda 

onde possas respirar a gramática do avesso.

E ainda que as probabilidades

Estejam contra ti

não o tomes por conspiração

o mundo tem outras pendências urgentes.

Na lotaria dos párias

onde julgas habitar

és enjeitado

por excesso de virtudes.

Quem te manda ser

ó castiço

um castiçal de probidade

um autêntico desexemplo cultivado

na litania dos paradigmas prístinos?

#3385

Calado 

os olhos repousados no horizonte 

enquanto a pele lentamente 

envelhece.

15.1.25

Maravilhas da técnica

Detidos os farsantes em serviço

ficou uma sensação de maré-baixa

aquele odor a latrina

impróprio para consumo

mas próprio dos lugares soezes.

 

Valha-nos 

o vinho licoroso

as páginas cheias de mácula

e o pecado sistemático e impudico.

Injustiças indocumentadas (493)

Estamos entregues à bicharada 

e isso valeu-nos uma queixa no tribunal 

por antropocentrismo.

#3384

Os corpos 

falam pela coreografia 

um étimo de liberdade.

14.1.25

Némesis

Bebe

desse copo

da diplomacia. 

Respira

as palavras que anestesiam

as juras de vingança. 

Relê

 

(ou lê, 

se não for aquele o caso)

 

os cartapácios de História.

Depois

subleva-te

denuncia os adamastores

que ultrajam vidas

sob a forma de arsenais

ou de um punhal assestado

à jugular coletiva

instaura processos disciplinares

confeciona cartas de intenção

protestos contra impostos

ou outras modalidades

que cerquem os infaustos mandantes

no cárcere de si mesmos. 

Pela volta do correio

se teimarem em aleivosias useiras

sugere

educadamente, 

mas com persuasão em dose certa,

que se encomendem ao exílio perene

e a uma distância de segurança. 

Injustiças indocumentadas (492)

Se o ridículo matasse 

estava a cumprir 

prisão perpétua.

#3383

A prece 

como caderno de encargos 

ou verniz da superstição.

13.1.25

Mel

A porta aberta.

A boca fria.

O porte suado.

O luar ornamentado.

O xaile puído.

A concha destroçada.

A bota em nome da paz.

O bordado ancião.

Os ossos se sombra.

O pecado alijado.

O hino envelhecido.

O estertor aproximado.

A culpa sem culpado.

O remorso escrupuloso.

A palavra poupada.

A voz sem ser quebrada.

Os gatos presentes.

A noite furtiva.

O navio encalhado.

A chuva invisível.

A escotilha escondida.

A centelha de atalaia.

#3382

Esta é a fibra da agonia 

o esquecimento do magma do tempo

postergando um diamante apalavrado.

12.1.25

#3381

Era bom 

que não tivéssemos biografia 

só para confirmar 

a banalidade.

#3380

Apanhado pelo efémero dissipar 

amanheceu leve 

era a herança do sonho fértil.

11.1.25

Injustiças indocumentadas (491)

O orgulho 

é a anestesia da tristeza.

#3379

Brindamos 

as flores de cerejeira como ornato 

o dia claro a rimar com as almas.

10.1.25

Injustiças indocumentadas (490)

Alguém sabe 

da fita métrica 

para medir as palavras?

Injustiças indocumentadas (489)

Ainda não repararam 

que falar de cifrões 

é um anacronismo 

 

(mas ainda vão a tempo 

de reparar o lapso).

#3378

Dissolvido o tempo,

às mãos devolvido

o mapa da genuína existência. 

9.1.25

Campo de desconcentração

Asfalta as juras com cores banidas

alimenta os demónios com uma casta singular

extrai o magma abraseado dos ramos puídos

e fala

fala com o desejo da liberdade

antes que o anoitecer absolva as trevas.

#3377

Diz o desdito 

em tradição

com a impermanência.

8.1.25

Foragido ou forasteiro

Foragido ou forasteiro

a neblina que embaciava o entendimento

tornou-se embaraço a estorvar a lucidez.

Aos que apostavam no forasteiro

ficou sem explicação

o modo furtivo de quem desconfiava

até

do mais leve suspiro limítrofe.

Os que deitaram dinheiro no foragido

não souberam perceber

os modos ligeiros que eram pressentimento

misturado entre os demais

sem medo sequer do medo

e muito menos

da coerciva presença da autoridade.

Outros houve

que protestaram cautelas

em nenhuma das hipóteses:

forasteiro ou foragido

tocava-lhe decidir o estatuto

e aos demais o julgamento era vedado.

Na pior das hipóteses

haveria quem

absorto das condições contratuais do mundo

misturava as duas condições

na infame propensão

para enviesar o dicionário.

Injustiças indocumentadas (488)

Não é boa gastronomia 

(ter de) 

engolir palavras.

Injustiças indocumentadas (487)

A memória 

(nem sempre)

é o melhor guarda-factos.

#3376

A dinastia dos loucos 

no estorno da lucidez. 

7.1.25

Praça dos desacontecimentos

Lobriguei alcançar

a fábrica dos desacontecimentos

o lugar exuberante

povoado por uma miríade de nadas

repleto de bandeiras a favor da indiferença

sem causas nem apóstolos

 

(useiramente “personalidades”,

que as massas,

contra os prognósticos dos ideólogos,

gostam 

– dir-se-ia, para caucionar o rigor,

precisam – 

de ser apascentadas)

 

nem vagas de fundo,

que essas estão vagas

em sinal de maioridade das massas. 

 

Empanturrei-me

sofregamente

como se fosse o pária dos párias

na ágora dos desacontecimentos

trespassado por um irredentismo não banal. 

 

Deitei-me 

uma sensação de total preenchimento interior

era o que sentia na pele em flor

como se a mente pesasse 

a tonelagem de um elefante. 

 

Durante os sonhos

entoei uma prece 

aos párias dos desacontecimentos

sob o protesto dos gurus limítrofes.

#3375

Tudo 

o ser e o nada 

o inadiável e a metamorfose. 

6.1.25

Denúncia do fascismo higiénico e de outras modernidades compulsórias (e compulsivas)

Deixei-me posar ao lado de uma interjeição.

O quadro parecia bucólico

os dentes cariados bem escondidos

pelos lábios em forma de perfeição

lábios daqueles

que ateiam pensamentos carnais

enquanto a voz de comando 

ordenava ao luar que mantivesse 

a compostura.

Um poema não dá de comer a ninguém,

advertia o ministro com a pasta toda

e o séquito,

os conselheiros mais os rapazes do partido

e aqueles patuscos 

que se emprestam como pano de fundo

quando sua excelência perora para as tevês 

– a seita de aspirantes

acenava obedientemente

concordando

– pois então.

Uma serpente espreitava 

entre os pedregulhos sobranceiros 

ao lago no jardim grande

salivando o veneno 

que só os déspotas entendem.

Não bati em retirada;

aliás

não bati em nada

sou um pacifista emérito

e nunca 

– juro que nunca, 

sem correr o risco de ser apanhado 

na curva sinuosa da mentira – 

tirei de esforço com vivalma 

viva ou morta.

Nestes preparos

vou ali às escondidas fumar um cigarro

eu,

que não sou fumador,

só para contrariar o edil de Milão

que se lembrou de proibir o tabaco ao ar livre

aprisionando-o

na extensão do fascismo higiénico

que coloniza e coloniza e coloniza.

#3374

Sabíamos solta a boca, 

o juramento da fala 

sem embaraços.