Um elogio póstumo
não houve;
o morto não ouve.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Com aquele desplante jurássico
o geronte à prova de sindicância
dá a provar a ilusão da igualdade.
Chamavas as árvores pelos nomes
e juravas aos deuses
nos intervalos dos sonhos
que estarias de atalaia
contra os avanços das marés.
Pedias lume à noite imediata
como se à boca subissem os verbos famintos
e na pele fossem tatuadas moradas,
espelhos vigilantes das sombras desenfreadas
no acolhedor cais
onde as rodas viradas do avesso
cantavam poemas malditos.
Tiravas à sorte o lugar
e esperavas,
esperavas que o luar aquecesse o rosto
e de todas as matérias fosse o sangue feito
para desses feitos improváveis
só ler as palavras sentidas.
Este agora
será como todos os agoras.
Na sua assimétrica descompostura
os agoras avançam contra a mudez dos passados
ultrapassam até aqueles amanhãs apessoados
que reivindicam pergaminhos.
Ontem
soube de um agora
que se agitou na sensação vaga
de um gume sem paradeiro.
E depois percebi:
cada agora
é uma efervescência de efemeridade
que perde validade
mais depressa do que qualquer fruto.
Arrumo o peso morto
que se mistura com o dia cansado,
a rua não tem prisões
mostra-se na penumbra amaciada.
Trocamos
dois dedos de conversa
não sabemos
se ficamos com os dedos trocados
ou com a conversa coalhada.
Pé curto
a língua de trapos
ensaboa a ardósia
e deixa, em letra de médico,
o verso de barro.
Os cavalos comem alfafa
(é da ordem dos costumes literários)
e os tratadores
trocam dois dedos de conversa.
Amanhã é a feira
esperam-se as casadoiras em sua demanda
e os rapazes não aguentam a espera.
Os cavalos podem,
eles sim,
com a espera que for precisa.
No meio da aldeia
a ardósia ultrajada pela letra de trapos
cumpre a sua função:
as pessoas passam
e ficam
olimpicamente
indiferentes.
Ao abrigo
da liberdade de circulação de capitais
a Europeia União aceitou o resgate
de Lisboa por Viena.
Uma luz vermelha
quando remexes nas provectas memórias
magoa o peito
que deseja o esquecimento.
Apanhas as ostras com os dentes
tu que sabes falar uma dúzia de idiomas
e calças sempre sapatos puídos
sem nunca teres feito votos monásticos.
Olhas pelos cantos dos olhos
para poupar a vista
e em verdade se diga
que chegaste à proveta idade que carregas
sem nunca teres visto através de lentes.
Há quem diga
és o único a disfarçar a miopia
o que ajuda a perceber
todos os vieses que recolhes com entusiasmo.
De amanhã em diante
juras olhar as coisas só com um olho.
Não concorres para Camões
que não se recomendariam os versos
se algum dia deles parisses autoria.
Essa tua simplicidade
ainda te há de granjear
um par de dissabores.
A tença sem cabimento
deixa o serviçal todo ledo;
o estrago vertebral
fica tatuado no rosto coletivo.
Ou a corda toda
desatada no pináculo do cinismo
que a obediência pertence aos fortes
e eu acanho-me na singela fraqueza
que me abraça.
Deste berço loquaz
escondo o sangue gourmet
aquele que vampiros e companhia dispensam
e por minha bússola tomo
com as mãos humildemente trémulas
o cálice que testemunha o néctar singular;
de um homem fraco
esperam-se vícios, não virtudes,
e até dizem
que a bússola estava avariada
e ninguém me disse nada.
Acordo
a corda toda
no promontório da incivilização,
como se ainda não tivesse arpoado
o meu vinte e cinco de abril,
os pesadelos desenfreados
escaldaram o dia
e agora,
irascível e refém do avesso de mim,
teço-me
nas juras que não haverei de fazer.
A posteridade
a secreção sem nódoas
o grito apiedado dos algozes
a roda sequencial das estrofes
dedilhadas as sílabas na vertigem
de um caçador,
a posteridade
ó tão gasta e ainda antes do tempo.
A posteridade
a vítima favorita dos deuses
na condenação das vontades
ao mero remorso que vagueia
entre os destroços avinagrados
pelas lágrimas furtivas.