6.1.21

Contabilidade das palavras

Todas 

as palavras

contam. 

É nesta

aritmética suada

que habito. 

E se contam

as palavras todas

subo aos contos

narrador acidental

embriagado

com o vocabulário sedoso,

emoldurado. 

Com

todas

as palavras

contadas

no vagar das sílabas

chamando

os nomes

e as coisas

nelas desenhando

os rostos

os corpos

um amontoado de equações

amanhecidas

na contabilidade das palavras. 

#1858

[Crónicas do vírus, CDXXX]

 

(Uma) 

Tragédia dos comuns 

– e como a expressão

se tomou de propriedade.

5.1.21

Pontos nos is

Pontos nos is

para que vos quero?

 

Pois 

se na Turquia

há is que não levam ponto

e não consta

que a Turquia tenha sido

desqualificada.

 

Pontos nos is

mordaça institucionalizada

a pedir uma re-gramática

 

(pois se 

há quem dispense pontos finais

e outros 

dos parágrafos fazem tábua-rasa

e outros ainda

desconhecem maiúsculas 

como inauguração de orações);

 

pois 

os is mantêm validade

mesmo que venham amputados

de pontos

e ninguém nos pediu

para vertermos os pontos nos is

pois 

tudo ficou aclarado

no cancioneiro do entendimento:

 

nos is sem pontos

que is se continuam a ter.

#1857

[Crónicas do vírus, CDXXIX]

 

O povo

a fazer a vontade

aos adágios que vulgarizou:

à segunda onda

segue-se a terceira,

sem demora.

#1856

[Crónicas do vírus, CDXXVIII]

 

Estamos fechados 

num quarto

e a porta 

só abre por fora.

4.1.21

Floral

Povoadas as floreiras

com o suor ungido

ajardina-se o verbo

nas cicatrizes consuetudinárias. 

Um punhado de artes,

ou apenas o inescrúpulo larvar,

cimentam a pele emaciada:

se dantes 

os canteiros desenhavam as cores

agora

entediam-se com o macilento rosto

da invernia que não se apieda. 

A ossatura entoa os queixumes,

rima com a duração plúmbea

que agiganta os pesares 

pelos soalheiros dias. 

Sozinhos

os dias breves

remedeiam-se 

à medida que as cinzas das lareiras

fazem cama

ao esquecimento. 

#1855

[Crónicas do vírus, CDXXVII]

 

O desleixo dos súbditos

para gáudio dos regentes.

3.1.21

#1854

[Crónicas do vírus, CDXXVI]

 

Alvíssaras

à argamassa 

do povo.

2.1.21

Anátema

A frívola 

facilidade

com que se confunde

felicidade

com facilidade.

#1853

[Crónicas do vírus, CDXXV]

 

Joga-se o trunfo

à espera que seja 

centelha.

1.1.21

#1852

[Crónicas do vírus, CDXXIV]

 

Neófito,

tem autoridade o ano

para a remissão?

31.12.20

#1851

[Crónicas do vírus, CDXXIII]

 

Dois mil e vinte,

game over?

30.12.20

Montemuro

Do lado certo 

a montanha desenha-se na luz.

Rasgos de crueldade

na tribuna de um rebanho

 

(qual será a primeira rês

a deixar de contar

no inventário dos vivos?)

 

Amortecem a urze sob os cascos

com o mais alto patrocínio

do cão tutelar.

A neve arrancada ao chão

dissimula-se

nos ventres opados

como se fossem vitaminas órfãs

só à espera da confirmação do algoz.

Será rubra

a neve ensarilhada

sob o jugo do punhal severo.

Será assim tingida

a abundante água

vertida pela serra. 

A narrativa congemina-se:

não é crueldade

é o oximoro

da beleza serrana.

#1850

[Crónicas do vírus, CDXXII]

 

A euforia

no logro

do destempo? 

28.12.20

#1849

[Crónicas do vírus, CDXXI]

 

A euforia

na pauta

da vacina. 

27.12.20

Porte

O porte turvado

silhueta, 

apenas:

ou um corpo dissolvido

na bruma retesada

o domínio arrumado

no avesso de um verso.

E, contudo,

os lobos exibem-se,

famintos,

dançando no fio da água.

Não amedrontam

em seu porte

avulso.

#1848

[Crónicas do vírus, CDXX]

 

O estranhamento

ainda não se desentranhou.

26.12.20

#1847

[Crónicas do vírus, CDXIX]

 

Sobramos metade

da fração 

que já éramos.

25.12.20

#1846

[Crónicas do vírus, CDXVIII]

 

Do cerco contumaz

reféns

(ainda) desarmados.

24.12.20

Psicologismo anti anti-natalício

O bolo-rei

tem má fama.

As rabanadas

têm má fama.

Os sonhos e as filhoses,

também têm má fama.

As famílias

que são os seus próprios anticorpos

têm má fama.

A febre do consumo

que desmede afetos

ou prova favores

tem má fama.

O beatismo da época

tem má fama.

As juras de metamorfose

(apalavradas na ressaca da época)

têm má fama.

As árvores ornamentadas

têm má fama.

As ruas iluminadas

têm má fama.

O natal

não tem culpa nenhuma.

#1845

[Crónicas do vírus, CDXVII]

 

Atirados

para a clareira

no banho coletivo

de salvação.

23.12.20

Open space

Havia um número

(escondido)

que tinha o rosto

da tolerância.

Mantive-o em segredo 

 

– e não foi por gula

ou egoístico bem-perder:

 

queria que esse número

fosse da minha lavra

sem o avesso da linguagem cifrada

nem a pretensão desilustre 

dos marçanos sem roda.

Um número,

privativo:

diamante desencontrado

na floresta de números

nem primo nem esteta

nem estulto nem primacial.

Só um número anunciado,

mas sem revelação,

espaço sem limites

dicionário à espera de apeadeiro;

sangue que se encontra

por dentro de mim.

#1844

[Crónicas do vírus, CDXVI]

 

Começa a parecer

o jogo da cabra cega.

22.12.20

Prisão

Pagaste por todos os crimes;

e quanto pagaste?

Seriam os soldos avençados

Em privação do sol desimpedido

paga suficiente

para tão corrosivos labéus?

 

Em tua defesa:

a mirifica idade meandra 

bálsamo para a estroinice

o lagar onde fermentava

a loucura imanente.

 

Foras servil

da tua própria crueldade.

 

Lá fora

os de memória acesa

protestavam:

nem todas as prisões chegam

para a paga de que és devedor.

 

Aceitaste.

De ti

ninguém saberia o som

do rogo de comiseração.

 

Sabias

melhor do que ninguém

que o caudal de crueldades

e o teu incorrigível orgulho interior

empatavam a súplica.

#1843

[Crónicas do vírus, CDXV]

 

Só falta

o legislador

decretar-nos 

corpos forasteiros. 

21.12.20

Age retarding

Era com o bolor

das contracapas:

o vigor dissolvido

no apogeu do a.a.

(antes do amarelecimento)

enquanto esperava

por decadência maior.

A lombada podia

disfarçar;

por dentro

embainhado o gasto

e os ossos doídos

no sarau da fadiga diuturna,

devolvia-me ao nada.

Isto das salgas

onde se desconta o tempo

devia ser um conto:

Nnarrativa meã

ou um disfarce

atirado ao rosto

da senescência,

tão cheia de audácia.

#1842

[Crónicas do vírus, CDXIV]

 

Em cima dos nossos destroços

um cimento por reinventar?

#1841

[Crónicas do vírus, CDXIII]

 

A metamorfose da peste

a desafiar

o nosso atrevimento.

20.12.20

Ode aos medíocres

Não sejam modestos

os medíocres.

O seu lampejo

é a sindérese da poluição

o opulento arroto

que maltrata uma estrofe.

Mas que continuem,

fulgurantes,

a ser espécie protegida:

que seria dos pontos cardeais

se a antítese fosse dissolvida?

#1840

[Crónicas do vírus, CDXII]

 

O rastilho

para sermos

de uma natureza diferente?