25.8.22

Capítulo seis

Os estilhaços do Verão

juntam-se às algas 

em despojos onde a maré termina.

 

Os espíritos estivais protestam:

o Verão devia ser mais duradouro

apesar dos corpos suados

das noites de sono embaciado

das ideias anestesiadas

do torpor hasteado em nome do cansaço 

herdado do tempo precedente

ou talvez 

apenas por causa

da indolência que não paga multa

na demorada temporada

do mui constitucional direito ao ócio.

 

Os estilhaços do Verão

pressentem a temporada consecutiva

o rame-rame outra vez

o adiamento das coisas que importam

a perene sensação da exiguidade do tempo

a sensação de tirania 

exercida sobre quem da faina precisa

para manter o pescoço acima da linha de água

 

(um eufemismo para a sobrevivência).

#2502

Serve-se a loucura

em pezinhos de lã

disfarçada

de decretos-lei.

Injustiças indocumentadas (11)

E se fosse o gato

a ser atirado ao pau

o que diria o PAN?

24.8.22

Atirar a mostarda ao nariz-compasso

O terrível nariz de mostarda

espera pela suite prometida

pois 

aos odores não se atraiçoa o delido.

 

O palco não se desfaz nas paredes caiadas

se ao alpendre subirem as divindades perdidas:

 

pratique-se à besta casmurra

o mesmo destrato que aos tiranetes:

 

colheres de mostarda de Dijon a esmo

até as veias do cérebro se esgotarem

nos filões ávidos de ideias 

lisérgicas.

Injustiças indocumentadas (10)

Puxar o pé para o chinelo

é como empurrar o corpo

para o abismo.

#2501

Partidários do nada

no magma

em que tem ebulição

a pátria do eu.

23.8.22

ONU

Os idiomas falavam à vez.

As bocas procuravam nomes

como quem encontra uma morada.

O dia era o espelho das traduções.

Nada ficava por entender

não por falta de correspondência

entre os idiomas.

Alguém supôs um idioma universal

mas todos recusaram a intenção.

A língua franca

condenava os idiomas à insignificância.

Todos

(menos os eruditos do idioma franco)

baniam as intenções 

que baniam a biodiversidade das línguas.

Os idiomas falavam à vez.

Mas falavam todos

uns com os outros.

#2500

Das facas longas

sobra

um nevoeiro cortante

que amanhece no sangue imprudente.

Injustiças indocumentadas (9)

Farinha mágica.

22.8.22

Moderação

Não sejas modesto

na poupança de metáforas:

o carrossel de palavras é o passaporte 

para um idioma sem cansaço,

a avassaladora marca registada

que o cofre reserva

à tua guarda.

Injustiças indocumentadas (8)

Sete são as chaves

que aferrolham os tesouros;

seis não satisfazem a função

e oito serão de mais.

#2499

A porta atrás:

uma artrose sem remédio

dos inertes,

sem acerto do tempo.

21.8.22

#2498

Sobre as probabilidades

conversam os enganos

que a fala emudece

ao primeiro esgar de ilusão.

20.8.22

#2497

Corpos caminham

num chão de mãos:

levitam 

na matéria de sonhos

sem sono por verbo.

19.8.22

#2496

Em matéria finita,

não vá o universo

cansar-se de nós.

 

(Dada a suscetibilidade

do universo.)

18.8.22

Injustiças indocumentadas (7)

No arco da velha

o mal é do arco

ou da velha?

#2495

A matilha

não obediente

suprime as normativas:

são os seus próprios anarquistas

e vítimas prediletas.

"The Beachland Ballroom"

A carne não sangra;

canta 

com os dentes entumecidos

e a gola da alma de atalaia.

O corpo que vocifera

rima com o idioma rouco

e é como se todos,

em uníssono,

pudéssemos morrer à nossa vontade.

 

[Idles, Vodafone Paredes de Coura, 17-18 de agosto de 2022]

17.8.22

#2494

Com a vossa licença,

que a manhã se faz tarde

e os provérbios estão à míngua:

deito o olhar ao rio

a ver se me devolve o sangue.

16.8.22

#2493

Não são 

amestrados 

os sonhos à lareira, 

a direção assistida da vida.

15.8.22

Complemento direto

Se fossemos salteadores

e sonhássemos com montanhas

em vez de bandeiras

faríamos de poemas avulsos

o hino com mastro a propósito.

#2492

Só tem honra de notícia

a deriva para o precipício

(não o desaquartelar de cárceres).

14.8.22

Injustiças indocumentadas (6)

O teatro de guerra

não é um teatro

que se veja.

#2491

Não se cultiva,

a letargia.

 

(Ao contrário

do marialvismo.)

13.8.22

Dolo

O que faço

deste dolo

provérbio gasto

ou apenas

intenção cimentada no mural

cisão entre o eu e o acaso?

 

O que faço

com este dolo

matéria sem linhagem

costuras acima da medida

a manga gasta no pelourinho

sem sentenças por perto

sem regras a servirem de gramática?

 

O que faço

metido 

neste dolo?

Injustiças indocumentadas (5)

Dar com os pés,

como quem couceia.

#2490

O mar

que abre as janelas 

da alma

e a alma que respira

o mar.

12.8.22

Injustiças indocumentadas (4)

A fava

deve ter as costas largas

ou é o embaixador vegetal

do patinho feio.

#2489

A manhã macia

nos despojos

da lua poente.

11.8.22

Injustiças indocumentadas (3)

Às vezes

somos centopeias

mas só fugimos

a sete pés.