Não estou convencido
que a teoria da conspiração
seja o consistório da prática.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
As portas duras
tiram a alfândega da letargia.
Dizem:
há fronteiras
outra vez
onde já antes tiveram praça.
Ao menos
sabemos
que o sangue não obedece
aos impedimentos dos burocratas
das almas derrotadas pelo nanismo
dos que metem baias nas pessoas
só porque têm diferentes falas
e culturas e costumes
e tornam essas baias em metáforas
de balas.
Quem inventou as fronteiras
devia ser condenado ao olvido
e rasgadas seriam
as páginas a eles dedicadas
na enciclopédia dos saberes.
Notas do dia:
a nortada
tempera o Outono
ainda madraço;
contra os impropérios
e outras miopias mentais
as bocas
todas as bocas
– sem exceção –
não podem
não devem
ser caladas
ou temos o dever de arcar
com não solicitados tutores
que apascentam a moral
que não lhes diz respeito
(a que a cada um pertence)?
a volumetria da acefalia
precisava de ir a termas
só para tentar uma cura;
Berlusconi foi retirado
do cemitério;
houve um rapaz
perdido no meio
de uma roda de bicicleta
furada:
jurou
como se fosse preciso jurar
que fora muito diligente
e jurou ainda
que não sabia como acontecera
a avaria
– e eu lembrei-me do “Avarias”
a maratona minimal repetitiva;
para honrar a rotina
(e a monotonia acrisolada)
o comentador-geral do reino
comentou
sobre variegadas pendências;
ao menos sei
que outubro vem depois de setembro
sem ao menos pressentir
nas sílabas de outubro
se este palco contínuo
risivelmente contínuo
se encerra na decadência do tempo.
A palavra de passe
do dia
é
remediar.
Não percebo
por que ainda ninguém inventou
gurus de autoajuda
para ensinar a sair de escadas rolantes.
Longa se torna
a estrada
no trono largo
em que tem estrado.
Neste estado letargo
tarda o lastro
e nas tornas se estuda
a litania estrénua.
Torna longa
a estrada
e larga no estirador
a trova que incendeia
o estridente lugar.
Sete
são as vidas
de um gato.
Ainda está por provar
o exercício cabalístico.
A paz recente
confiscada no dorso mau
os Homens em força bruta
sem a flor de sal como tempero
apenas o previsível caudal
tirado à força do coldre abastado.
A paz recente
miragem
subleva-se nos contrafortes do ultraje
virado do avesso
como boomerang que aterra
de cabeça
na cabeça do seu mandante.
Alguns
mais cínicos
chamam a isto
justiça divina.
Da argamassa como zelo
um oráculo do avesso:
amanhã é futuro
(dizem os evocativos)
e parece que se faz Outono.
A lousa será a cor a preceito
mas só quando a invernia
ocupar o seu lugar.
Entretanto,
não se esbanje o telúrico espetáculo
das folhas outonais que se desprendem
em vida disfarçada de decadência.
Não se omitam
das páginas emolduradas
as matizes acobreadas
que serão a gramática das florestas.
Este é o Outono
que apetece guardar
em fotografia de elevado mercado.
Os sonhos
coabitam na perenidade
que é interdita às vidas.
Os maiores tiranos
são os que ambicionam
nacionalizar os sonhos.
A máquina dos sonhos
é a maior invenção
de todas.
Não fazer ondas
para não se ser vítima
de um tsunami.
[Teoria do boomerang]
As cicatrizes homologadas
antes que o tempo traga uma razia
e os penhores subam aos mastros,
o aval emprestado ao grito.
São as vozes de comando
que emudecem
matrizes frágeis no tabuleiro dos corpos.
Dizem:
amanhã tratamos do assunto.
É por isso
que as cicatrizes
se tornam tatuagens.
Ir desta para melhor
é mentira de um distraído
ou é contado
pelo suicida
ou pelo afogado em antidepressivos.
“(...) o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso. (...)”
Mário Cesariny, “De Profundis Amamus”, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 1957.
Cesariny
foi um iluminado
um homem muito à frente
do seu tempo;
em 1957
já pressentia
o fogo-fátuo
das redes sociais.
Arranca-se a voz trémula
aos peões que aparecem à frente
em substituição das covardia
dos mandantes.
Eram a carne para canhão
hoje
são a carne e os ossos e o sangue
e almas
em dádiva
aos arsenais perfidamente sofisticados.
De um golpe só
o pensamento estaciona na angústia
de quem sabe
tanta ser a lucidez dos Homens
em proveito de totens que tornam
ridiculamente nula
a vida do Homem sem nome
– em proveito dos soezes
que não sabem que os Homens têm nome.
Aos soldados
devia-se ensinar
a saberem soletrar os seus nomes
e meia dúzia de artigos
(apenas os mais distintos)
da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Para que o Homem
todo o Homem que tem um nome
e uma alma não venal
não tenha de derramar a angústia
ao saber de todas as terras
onde o sangue vertido
tomou o lugar
das lágrimas.
Para que esse Homem,
todo e sem exceção Homem,
não se esqueça do seu nome.
Para que não haja
soldados
apenas Homens.
Delírios místicos
– dizia, ufano
Convencido do que fora
Património pretérito;
não precisava de ter como morada
o hospital psiquiátrico.
[“Pára-me de repente o pensamento”, de Jorge Pelicano]
Dos jacarandás
o verbo irradiante
uma centelha
que adormece as trevas
o curso de um rio
de onde mana o ar sem areias
o decilitro cheio
sem se disfarçar de meias medidas
a fronteira desaproveitada
no caudal de calendários
que aformoseia
um dia
sozinho.
No estábulo das ideias
o jacarandá acabou de florir
e eu sei
que por maior prodigalidade que seja
ninguém se encontra
nem nas bainhas descosidas
nem no centímetro a mais,
condenado
ao desperdício.
Dos chás
em possibilidade referencial
cheias ainda as chávenas
que por endereço têm
almas outras.
[Londres]
Mentir para viver
a praça-forte do resignado
disfarce que já nem é
fingimento
acorrentando num palimpsesto
de paralelas inverdades
sem se constituir arguido
por mitomania.
Mentir para viver:
ou não saber
que a mentira vem no dicionário
e não se subleva
contra os seus patriarcas.