Afinal
deus
é um bidon.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Nunca tive um oceano na boca.
Nunca tive os olhos tatuados.
Nunca tive mágoas por idioma.
Nunca tive aparatos nem comendas.
Nunca tive o desassombro do orgulho.
Nunca tive migrações cevadas no dorso.
Nunca tive sortilégios em pautas adornadas.
Nunca tive preces nem quimeras.
Nunca tive o arnês por gramática.
Nunca tive a montanha russa nas veias.
Nunca tive a alquimia dos farsantes.
Nunca tive algemas em vez de perímetro.
Nunca tive a lua em partitura hermenêutica.
Nunca tive a generosidade dos déspotas.
Nunca tive o açor no ponto de mira.
Nunca tive fortificações encenadas.
Nunca tive arsenais de estultícia
(ou a estultícia de arsenais).
Nunca tive a baía perene.
Nunca tive de embainhar o futuro.
Nunca tive a cortesia dos diplomatas.
Nunca tive a heresia da hipocrisia.
Nunca tive de meter ferro e fogo no silêncio.
Nunca tive o empréstimo de um epifania.
Nunca tive de arrendar hipérboles.
Nunca tive de amesendar em urbes infames.
Nunca tive de costurar as feridas incensadas.
Nunca tive de mentir às mentiras.
Nunca tive de servir extáticos anciãos.
Nunca tive de atropelar a angústia.
Nunca tive de errar num labirinto.
Nunca tive amoras nas manhãs húmidas.
Nunca tive o passaporte do ocaso.
Nunca tive a chave de navios insubmissos.
Nunca tive a esmeralda sufragada em poesia.
Nunca tive disfarces do disfarce concêntrico.
Nunca tive medo da liberdade.
Nunca tive o penhor das almas sitiadas.
Nunca tive certezas sobre as dúvidas.
Nunca tive dúvidas a não ser sobre as dúvidas.
Nunca tive interrogações órfãs.
Tirando
tudo isso
que nunca tive
sou tudo
por dentro
do que tive.
À pátria que a pariu
a pútrida pátria
que se parte
no presidiário partido.
À pátria putrefacta
penhor do pequeno possível
pináculo da proverbial purga
onde se procrastina o porvir
para ser povoado por um punhado.
À pátria perdida no piolho pior
pústula e pérfida,
possuída por pelintras não probos,
proclamo
por patrocínio em parte incerta
a apátrida pulsação que me percorre
em parte
por seres parte da perversa porta
que se opõe à paciência
em parte
por seres pusilânime
na posse que prometes
e não é tua parte.
Segregava
a Primavera ostensiva
no desabotoar das flores
feito o inventário do Inverno
sepultadas as chaves da hibernação.
Antes confundir
concelho com conselho
do que LCD com LSD.
(Ou vice-versa,
que agora a dúvida
falou mais alto.)
Dou à boca as palavras cãs
onde sobem os socalcos
até serem o mais alto trono
no promontório geodésico
onde tudo se oferece
no estuário do olhar.
Deixo outras palavras
não mudáveis
serem a cintura da tarde.
Ao mundo que não ouve
não digo que anda ao deus-dará,
digo o nada que ele que ele dispensa.
Se a matéria ampla for presságio
deixo as mãos no caudal do rio voraz
e nas pregas da idade apregoo as lições,
as estátuas perenes cingidas
no relógio sem nome.
E se na véspera forem todos mastins
escondo-me no espólio sem paradeiro
e deixo aos nomes
a veia anónima que os consome
e os deixa utilmente anónimos.
Todo o sangue vazado
é mil oceanos coléricos
e os ossos
as cordilheiras submersas
as lápides que silenciam
tantos segredos.
“Estou-me nas tintas”,
disse,
sem (a)notar
os vapores tóxicos a que se expõe
quem está imerso em tintas.
O mar
parecia o verniz do dia
como se fosse possível
emoldurá-lo.
A maré
cercava as rochas
um cerco de sal e linhagem
imperturbável.
O rio
queria saber do sal do mar
enxertando-o de imodéstia
e soberba.
A lua
era testemunha à distância
ainda mergulhada no seu sono
diurno.
A Primavera
já mais do que um esboço
deixava em legado as suas páginas
aveludadas.
Eis a alquimia da Primavera
os pássaros doidejando
como se fossem bardos
em coreografias coloridas.
Dédalo das más intenções;
que se metam as palavras
em marcha-atrás
e as más sejam boas intenções:
os espírito afidalgam-se
as solenidades são honradas
em vez de serem consumidas
pela banalidade da rotina.
Uma litania atravessa os claustros
onde se evoca a grandiosidade
do futuro.
Testas-de-ferro diplomados
querem açaimes
querem
silêncios que evaporem as falas:
conspiram contra as vozes bastardas
vozes que estilhacem o bem adquirido
e a motivada mentira que atravessa
os dias.
Em vez de uma bandeira
uma coroa
auréola as cabeças sem tenência.
Há generais a mais
e solenidades a menos
e os festins
em devida preparação
não são de assinalar com ausência.
A algaraviada
não precisa de sol
só precisa
de um módico
de sangue em ebulição.
Epifania no fundo do prato
sável ao engano
escabeche sem cebola “adstringente”
os talheres trocados
mas não para os canhotos
que somos contra discriminações
e deus
se existisse
(oh! lugar-comum
tão banal
que as próprias banalidades
se esgotam
num esgoto de banalidades)
apedrejam os mastins da discriminação
que ganhou lugar de moda
a discriminação positiva
positiva
palavra benquista
louvor a prazo
crédito sem juros
contra os agiotas que açambarcam as almas
ingénuas
dir-se-ia
das que acreditam em deus
não fosse esta arrogância
um auto-de-fé contra quem a vocifera
ou
epifania do avesso
como se os hereges
e os ateus
(não necessariamente por esta ordem)
se perdessem no pântano das suas aleivosias
e deus
afinal
não se tivesse perdido
na transição.
Se o trinta e um
é apenas trinta e um,
por que há de ser
um trinta-e-um?
Penso rápido
no penso rápido
que o rápido dispenso
no rápido dá que pensar.