17.9.23

Injustiças indocumentadas (179)

Se são outros quinhentos

façam-me o obséquio de revelar

onde estão os primeiros quinhentos.

#2902

Escudeiros adestrados

acordam de véspera:

apanham os despojos

da boémia dos senhores. 

Injustiças indocumentadas (178)

Dedos são dois

de uma conversa que pedia

(“eu sei lá”)

quinhentos, “assim” por defeito.

16.9.23

#2901

Voltamos

ao colo do outono,

que o verão está esgotado.

15.9.23

Injustiças indocumentadas (177)

Nunca edil

foi tão contíguo

evil.

 

[O Dr. Moreira queria armazenar uma estátua de Camilo e Ana Plácido porque esta estava nua]

A corda do basalto

O basalto contorce-se com o suor da noite.

Desprende-se das faúlhas e povoa o vinhedo

e as pessoas

ao longe

confiam no desespero

atestam o desespero:

já pressentem as vozes periciais

já as pressentem

a atirar a semente do remanso póstumo:

o basalto 

será o rosto físico 

de um vulcão cansado

entretanto adormecido

e, arrefecido,

receberá em seus poros a quimera depois:

as sementeiras serão consagradas

num parapeito inóspito do mundo

onde as lágrimas se converteram em suor físico.

Tempos depois

já a lava ficara esquecida entre as folhas frondosas

os pecados ficaram por arrematar

(segundo os pobres anciãos

reféns do paganismo ancestral:

o vulcão tirado ao sono

é a vingança dos deuses enfurecidos):

a ira dos deuses sem nome conhecido

escolheu aquele lugar

a paisagem acrisolada nos novelos de basalto

nos cachos de lava tornada pedra

entre dentes de leão e acácias

entre os bagos das uvas milagrosas

e o vinho repatriado das balsas da lava estática.

Injustiças indocumentadas (176)

Copérnico estava errado

pois tanto se evocam

os quatro cantos do mundo.

#2900

O dia fêmea

come a fome de miséria

deixa na boca

um odor a framboesa e maresia.

14.9.23

Voltagem

Insisto nos frutos maduros

que na boca arrumam lucidez.

Contrasto a fala amansada

com os lampejos de outrora

e contradigo os impulsos febris

a matéria volúvel que depressa

de extinguia:

são válidas as águas de agora

e os barcos navegam sem pesar.

Não falo para deuses inventados

nem para o futuro onde só estão

os anciãos.

Arrumo as perdas

como se não houvesse contabilidade.

No ábaco perene

as palavras são parentes dos algarismos

e não há equação distante

que fuja dos estábulos onde tudo fermenta.

#2899

Os rostos vertiginosos

a vertigem do silêncio

a multidão ensurdecedora.

Injustiças indocumentadas (175)

Se é selva

não tem lei.

13.9.23

Como aprender a ser algoz em cinco lições

Numa correria

como se tudo estivesse

em vias de extinção

e quase só sobrassem

memórias do futuro

não sabemos

se somos nós a passar 

supersonicamente

pelos acontecimentos

ou se é o tempo às talhadas

impronunciável e ascético

que nos condena à matriz da irrelevância. 

 

Confundimos tempo e modo

e por tanto sermos a esquadria de uma forma 

numa anestesia total dos sentidos

esquecemos das desconvenções

a fala arquétipo que condensa a maturidade. 

Esquecemos 

há um ser em nós

que não se resume a um eu

esse eu é uma fortuna sem valor

esquecido por nós 

arrematado num leilão de inconveniências. 

 

Os rios emagrecidos açambarcam o olhar

desfazem-se no mar que os coloniza

como se fosse uma clepsidra que anula a luz. 

 

Sabemos o que não sabemos

tanta a perícia costurada 

na reivindicação do fogo 

que acende o pensamento. 

Não sabemos

do caudal do tempo

esgotado no esquecimento;

não sabemos

da nitidez das silhuetas

que oferecem redenção;

só sabemos

desnatar os ossos

calar a fala funda

obliterar o desassossego 

– para sermos matéria domada

olhos pacientemente vendados

carne puída arrancada aos palcos amotinados

sitiados pelo torpor

ingénuas vítimas do despensar voluntário

nós,

os nossos maiores algozes.

Injustiças indocumentadas (174)

Gostava

mesmo

era de estar

quadradamente enganado.

Injustiças indocumentadas (173)

As ovelhas ranhosas

estão constipadas.

#2898

Estas fraturas

nem com gesso

se curam.

12.9.23

O militante perene

Esconjuros à parte

os confrades ofereciam 

pusilanimidade,

artesãos 

de sonoros amanhãs cantados

insistindo no logro

ou acreditavam sob o jugo da carne própria

na enciclopédia que repetiam 

como se fossem atores em cena

diligentemente repetindo o guião da peça

sem tergiversar

religiosamente.

O seu vaticano

era um museu de saudades

onde o frio do inverno

crestava à boca da melancolia.

#2897

Em cada sílaba amotinada

em cada corpo sitiado

as minas prometem-se

como flores audíveis

como dádivas lancinantes.

Injustiças indocumentadas (172)

Deixa

para amanhã

o que não podes fazer

hoje.

11.9.23

O elogio da imortalidade

O ocaso nunca é tardio

é um acaso que conspira 

com a ordem da contingência.

Como se houvesse manhãs

a fugir do entardecer

e, mudas, soubessem

o cantar das sereias refugiadas

num lugar que está atrás do horizonte.

Não contamos por módico

o inventário de que somos peões.

Antes fôssemos

generais sem comenda

os favoritos da desmedida

um magma feito de sangue sem cicatrizes

caóticos devido à linhagem da medula

e sintomaticamente imortais.

 

Somos imortais,

dentro de uma medida do tempo.

#2896

Houvesse 

martelos pneumáticos

ou um sortido de bombas

para esquecer o futuro.

Injustiças indocumentadas (171)

Tentativa

e ferro.

10.9.23

Do futuro como matéria gasta

Travámos guerras esquecidas.

Colámos

com a saliva que desonra

as cicatrizes para sempre puídas

que quimera alguma há de apagar.

E um idiota

diz de si mesmo

ministro do futuro.

 

(Salva-o, in extremis,

por não fazer alarde

em causa própria

de ser o ministro do futuro.)

 

E ninguém se desfaz

do segredo tão simples

de dizer:

travamos 

as guerras esquecidas.

 

[Agradecendo a Timothy Morton, “ministro do futuro”]

Injustiças indocumentadas (170)

Es-croque 

monsieur.

 

[Precaução

para não ser processado

pelo empresário dos barquitos.]

#2895

Lamentavelmente estacionado

num lugar ermo

o automóvel espera

pelo canibalismo do sucateiro.

9.9.23

#2894

A boca ferve

no sangue que se atiça

na febre furtiva.

8.9.23

#2893

Farias um poema

com a palavra

saraiva.

 

[Anátema de um poema]

Injustiças indocumentadas (169)

Simulação do tédio geral:

rabo escondido

com o gato de fora.

#2892

Admita-se a concurso

a esbelta forma da provocação

antes que tudo seja tomado

pelo fantasma do sopitamento.

7.9.23

Lotaria

A pele estremunhada

testemunhava o exílio dos deuses

aprisionados num labirinto. 

A legião acusava os conspiradores

sem saberem erguer por um dedo sequaz

nomes e rostos. 

Os deuses

de rastos

eram consumidos numa pira improvável

e nem sacudiam da pele os vestígios das chamas

distraídos pelo pasmo. 

Do outro lado da cidade

as ruas exultavam

e, não por acaso,

(de acordo com uma possível festa de conspiradores)

as árvores estavam floridas

como se batessem recordes. 

Esta era a litania dos subjugados

o avantajado sofrer pedagógico

fonte de sacrifícios em nome da redenção

de repente

tudo levado ao banco dos réus

sob os auspícios de juízes desconhecidos. 

O resto já é sabido:

a justiça ajuizada como convém

profanação dos parâmetros habituais 

segundo a legião, 

ou a diligente justeza

como se fosse avalizada

pelas divindades ora contestadas. 

Injustiças indocumentadas (168)

Ainda ninguém descobriu

onde é a fábrica 

de fazer conversa.