16.10.24

Rotina

No sujo do dia desacontecido 

combina-se ultraje com angústia

esgrimidos os mudos contraplacados

que se esmagam na antítese da lua.

Não serão viáveis os luares intencionados;

desde que o mundo foi embrulhado numa farsa

já ninguém se importa com a acrimónia

e as palavras vêm untadas de boçalidade

respirando a favor da desconfiança.

No sujo do dia

aconteceu o futuro que se sabe.

Injustiças indocumentadas (445)

O mal resolvido 

invade as veias 

com um punhado de sangue 

em combustão.

Injustiças indocumentadas (444)

Arrependido,

em tribunal confessou 

que queria ser dentro-da-lei 

quando fosse pequeno.

#3291

A janela lateral 

furtivamente postigo 

à espera da madrugada 

e nós, à espera da espera.

15.10.24

Injustiças indocumentadas (443)

Estou convencido 

o mundo era um lugar melhor 

(lenço a tiracolo 

para enxaguar a lágrima furtiva) 

se em vez de abaixo-assinados 

dependesse

de acima-assinados.

Fora o brigadeiro

Emproados farsantes cheios de comendas

trovam a audácia

fácil o arrazoado

seus nunca os corpos trespassados

em campos de batalha.

 

Haviam de ser condecorados

com a comenda que leva a palma

na desavergonhada ostentação

da carne outra tão agilmente despojada

onde pútridas guerras não se esconjuram. 

 

Não fosse pecúlio bastante

e agora um deles

inquieto na sua caserna submarina

anda a agitar a maré

para medir se ela se compraz

com a indeclinável “vaga de fundo”

que o traga a tiracolo da voz fundacional

para o pináculo das instituições. 

 

Arregimento

deste local onde me situo

e sem a demora do futuro

um acima-assinado:

que o tesouro arrecadado 

sirva para mercar um contratorpedeiro

daqueles de última geração

só para o castrense passear a ufania

pelo convés a sulcar os mares

na sua tão irrecusável pose heroica. 

 

Deste local onde me situo

e sem a demora do futuro

declaro

contribuir com uma centena de euros

para a colheita contratualizar o castrense

para o declínio das coisas da política.

#3290

Acorrentado à teimosia 

dispensava a maresia fecunda do dia. 

14.10.24

Ligação

Levo o leve entardecer

como penhor de uma véspera.

A levedura que lavra o braço

em mosto feita no cais andado

levita no logradouro num sussurro.

É esta a lentidão que serve de úbere

o coalho apanhado pelas mãos

fervendo a lenha em espera

até apetecer o xisto em lanhos

Aa dar cobertura à casa nómada.

#3289

Atiras 

à queima-roupa 

as palavras bala 

e nem assim 

o corpo sangra.

13.10.24

#3288

Engolir o orgulho, 

para cevar de soberba.

12.10.24

#3287

Pregas uma partida 

à partida 

e confessas o adiamento 

(a tua especialidade).

11.10.24

Fato à medida

O espelho derruído consome a luz.

Em vez do vento sublevado 

a boca ateia versos imperadores, 

uma casta à parte 

entre o desrazoável escol.

 

A noite é procuradora do fingimento, 

mas não me importo: 

entre o deve e o haver

mergulho na casta única do meu sabor.

#3286

Às vezes 

a meia-idade 

chega a ser mais 

do que uma idade inteira.

10.10.24

Princípio geral da indiferença

Digo ao poente 

a corda lassa que hasteia o dia. 

Convoco as ameias 

forjadas a ferro e lágrimas. 

Deito-lhes cal colhida na sombra noturna. 

Dizem-me que a tortura maior 

é o terrorismo ao idioma

e eu começo a parábola inteira 

no início do parágrafo

esplêndida

vestida de ouro arrancado às entranhas 

pelas mãos próprias

o punhal demitido no parapeito das mentiras. 

Desarrumo o dia inteiro

o beijo crepuscular anotado na fazenda adiada. 

Embainhado o rosto 

que não dança com o nome

levito as sílabas 

enquanto o tempo não se faz tempo

um copo desfalcado abraçado aos dedos

treme para não serem tremidos os dedos. 

A sociedade comercial dos desafortunados

insiste na desafortunada apanha de dias

está para o sol como as nuvens para o Inverno

e esse é o seu reconhecido inferno. 

Não me digam como é o esquecimento. 

Sou a fábrica 

onde os dias se ocupam do desmedo

um artesão que bebe as vírgulas 

que sobem a palco

e de jato 

atira o material sobrante para a sucata

onde os sentidos retificados são. 

Povoo as cidades acasteladas

os ermos lugares 

onde os animais são suseranos

a venda entrapando o olhar ébrio 

que se dá ao dia para se saciar. 

O palavrear desenfreado desautoriza a letargia

como os gatos famintos 

que seguem os cuidadores

cobrando às bandeiras o futuro que não querem

simples oráculos 

que desaprovam as estrofes mundanas. 

Dizem que é preciso um arquiteto geral

o intendente das boas causas

antes que uma catástrofe inteira 

amotine esta terra. 

Enquanto não aprenderem o significado de não

talvez se salvem no palco 

onde se refina o fingimento. 

Sob as pedras falsamente furtivas

as serpentes dormem. 

Dizemos “xiu”

para ninguém demitir o silêncio. 

Dizemos que muitas foram as horas gastas

só a contar as horas passantes

como se na véspera 

ousassem os cantos errantes

nas vozes alardeadas no viço da manhã. 

Ao menos

respiro

e sei que sou tutor 

da matéria incompleta de que sou feito

e sento-me à sombra da voz quimérica

só para saber o sabor da indiferença.

Injustiças indocumentadas (442)

O diabo é padeiro

ou o padeiro é um diabo?

#3285

Foge foge bandido 

foge 

antes que sejas esquecimento.

9.10.24

A chama dos rumores

Adormeço na modéstia do sono. 

Interiores

as lágrimas adiadas

enfurecem a angústia desaprovada. 

As horas a fio

jogadas ao deus-dará

empenhadas na tortura por dentro da carne

o jugo que amestra as almas pretendentes

que não chegam a ser a fiz das suas juras

e não passam de um rumor. 

O sono desautoriza a ira

finge não serem caçadores os espíritos malsãos

e entrega a chave das resoluções aos sonhos

o ónus as empreitadas a seu cargo. 

Não protestem

contra os espíritos contumazes

ou a angústia não convidada

se o património dos segredos 

está a dois dedos das vossas mãos. 

#3284

Todos os poços têm fundo 

– este é o rebuçado

que anima o dia de hoje.

8.10.24

Pretendência

O gelo fosco entra pela porta

desliga a luz e averba o cansaço

e as pessoas hibernam

tossicam entre a lava do sono

procuram o musgo telúrico

o refúgio vindicado. 

O frio congela as veias e o sangue.

Amanhecem 

os fantasmas esquecidos

deitando à luz hesitante a moldura dos dias

como se não estivessem gastos 

pelo peso do mundo

pelo peso insuportável 

do peso herdado da História. 

O telefone conspirou com o silêncio

num tempo que vai em prolongamento;

as faces indiferentes atapetam as ruas

e não há porta-voz que queira desafiar os vultos;

até ordem em contrário

rejeita-se

a mordaça higiénica.

Injustiças indocumentadas (441)

O estado de sítio 

é o sítio do Estado.

#3283

Aos gatilhos 

rogue-se a praga 

da ferrugem.

7.10.24

#3282

É nesta estrada 

que sabes pleno 

o sangue diuturno.

6.10.24

Injustiças indocumentadas (440)

Ao crédito malparado 

aplica-se

multa de estacionamento.

#3281

Arremato 

ao sonho atrasado 

o palco sem sombra 

e remo sem medo do sono 

pelo caudal feito pelas mãos tutelares.

5.10.24

#3280

A república 

abriu concurso público: 

precisa de ser vitaminada 

com botox e quejandos.

4.10.24

Rede

Sou a tua mão que sente o tremor quando o luar se esconde por nós. O cais que sabe por ser a manhã que enfeita o olhar. Sou essa porta à procura de moldura no vento desafiado pela noite sem mordaça. O destino que responde por outros destinos. Uma vaga lembrança do futuro, escrito na combustão das sílabas, na saliva tatuada na pele. A estrofe, que sussurra a maresia que deixamos sonhar por nós.

Injustiças indocumentadas (439)

A porca 

coitada

torceu o rabo 

e ninguém se importa 

com a entorse.

#3279

O grande capital 

mede 

para aí 

um metro e noventa.

3.10.24

#3278

Nacionalizem-se 

as nacionalizações.

2.10.24

Injustiças indocumentadas (438)

Moral,

da História.

 

[Continuamos a brincar aos bombardeamentos]