5.11.24

Injustiças indocumentadas (457)

O homem que dava ideias 

– ah, tanta gratuitidade filantrópica.

 

(Ou apenas 

como banalizar o mercado das ideias 

e elas 

residualmente baratas ficam).  

#3311

Somos ourives da filigrana 

em que tecemos a vida.

4.11.24

Areias movediças

O gólgota pardacento 

vomita as vírgulas fora do lugar

e as divindades em consórcio 

abusam do futuro,

combinam sem desacerto 

a alcatifa do tempo.

Injustiças indocumentadas (456)

No que toca a estados de humor 

a lua cheia é pior 

do que o quarto minguante? 

#3310

Os fogos atiçados 

nos saldos da lucidez 

a língua errante 

na voz dos demónios.

3.11.24

Injustiças indocumentadas (455)

Afinal

são puídos

um punhado, ou muitos, 

dos colarinhos brancos.

#3309

Dentro desta irrisória enseada 

descubro a alquimia hasteada

o porto invisível onde faço morada.

2.11.24

Injustiças indocumentadas (454)

Mandou dizer 

que não se podia retratar 

porque não tinha 

a máquina fotográfica à mão.

Injustiças indocumentadas (453)

O uso do fruto.

Usa o fruto.

Usufruto.

#3308

Garfos mudos irrompem 

com a violência da manhã,

disfarçam rostos amestrados.

1.11.24

Injustiças indocumentadas (452)

Não

tenho nada a dizer.

Não tenho 

nada a dizer.

Não tenho nada 

a dizer.

E isto 

é um poema?

#3307

Dançava no fio da incógnita 

o corpo avessado

tartamudeando as sílabas disformes.

31.10.24

#3306

O braço da rendição 

aviva o estuário

e foge à moldura embainhada.

30.10.24

Vendaval

Deixassem falar o vendaval.

Na sombra do sangue agitado

cabiam cinco noites sem dormir.

 

Oxalá 

os pescadores não tivessem ido ao mar.

 

Agora 

as mulheres 

sentem-se viúvas em desassossego

como se contassem a gramática do medo

como prece contínua.

 

Maldito 

era o vendaval.

Não lhe tivessem dado nome

e ela talvez não se amotinasse.

#3305

A tocha acesa 

incendeia as lágrimas errantes 

no distrate do baraço 

que emproava a forca.

29.10.24

Olhos voluntariamente vendados

Vejo 

na alma do mundo tantas cicatrizes

o espólio que se atira de frente 

contra o muro do passado

e em várias toneladas de conhecimento

chega ao estuário exangue, 

extinto.

 

Vejo

as pessoas sem nome

ou com nomes que não sei dizer

reféns de uma penumbra que os atiça

no vulcão perene que os consome

vejo

como falam um idioma que não percebo

e se entregam no luar que é o abismo

disfarçado.

 

Vejo

no miradouro furtivo

as pernas tremidas à medida que avançam

e dos nomes extintos se aproximam

vejo-os

aluados e impassíveis

como se não pudessem ser mais do que peões

ou carne para canhão

que ainda dá direito a uma comenda póstuma

que os heróis querem-se póstumos.

 

Vejo

com as dioptrias todas no ângulo vivo da visão

os banquetes que omitem a miséria

o ultraje dos comendadores em pose hierárquica

um desmodelo afinado pelas mãos usurpadoras.

 

Vejo o que vejo

e desejo

que não visse nada do que vejo.

#3304

Depois da fala 

arrumaste o pensamento 

no gueto que é sua prisão.

28.10.24

#3303

Sem empalidecer

a luz branca agarra-se 

à pele do dia.

27.10.24

Injustiças indocumentadas (451)

As armas 

são uma falcatrua tão grande 

que uma arma branca 

nunca é branca.

#3302

Uma tocha 

apagada 

o sonho do nevoeiro 

e os bombeiros, 

em greve.

Injustiças indocumentadas (450)

Solteiro

ou

bom rapaz.

26.10.24

#3301

Amuro-te estima, 

para que te não perca as rédeas 

e não seja peão da boçalidade.

25.10.24

Os amantes

 

Explosions in the Sky, “Loved Ones”, in https://www.youtube.com/watch?v=ogFLy72Ox4k

Púnhamos as vozes a falar

nós, os arquitetos das palavras,

até que as destinássemos a poemas válidos.

A matéria incandescente a desejar a manhã

um punhado de violinos em desordem

até que as estrofes 

combinassem o silêncio que era alquimia.

Não soubemos das coisas tardias

era em nós que as levávamos

sem sabermos

só por as querermos combustão

e toda a cumplicidade a nascer de um sonho.

Falávamos pelas vozes sem silêncio

os punhos ascendendo ao miradouro

onde o vento secava as lágrimas.

As lágrimas

tornadas pétalas de ouro

tatuadas na pele sem adiamento.

Pretérito muito imperfeito

Boas não são as novas

quando o verbo ser 

é usado no pretérito imperfeito

e depois vem o nosso nome.

#3300

A perna curta das ideias 

ou o olhar fundo das palavras.

24.10.24

A contingência da incerteza

Falava-se

do porvir

aquele que ainda está por vir

o futuro

se não usarmos erudição gratuita

à falta de se poder dizer

“a deus pertence”

 

(o registo de interesses

agnóstico

impede o reconhecimento do estatuto 

– e, dê por onde der,

deus

se existisse

dificilmente queria saber do futuro

porque 

se existisse

por definição de omnipresença

já sabia do futuro

de trás para a frente.)

 

Daqui para diante

a começar 

no minuto que começa

dentro de sessenta segundos

é por conta da incerteza

um buraco negro

onde tudo se pode arrematar

uma coisa e o seu contrário

ou antes pelo contrário

ou então aquele nada 

tão grande, tão grande

que cabe na estatura de uma molécula.

 

Quanto ao demais

ou à conta da contingência da incerteza 

é um bla-bla-blá

e o que mais se queira querer.

#3299

Se fosse a correr atrás do caudal 

não seria o rio maior ou o mar terminal 

nas mãos em meu legado.

23.10.24

Injustiças indocumentadas (449)

Deuses com pés-de-barro, 

ou seguidores com pés-de-burro.

Injustiças indocumentadas (448)

A contagem de espingardas 

devia ficar para os analfabetos.

#3298

E respirar,

(também)

é um problema ambiental?