Tivemos
uma desinteligência artificial,
comentaram
a propósito de uma desavença.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Tivemos
uma desinteligência artificial,
comentaram
a propósito de uma desavença.
Não se diga
de um beijo arrancado
que é como o arrancar de uma página.
Há beijos
que não se dão
a menos que sejam arrancados;
e há páginas
que merecem ser arrancadas
para ganharem adesão.
Levas com o arroz
se fores insincero
(que gostamos de eufemismos
e insincero é menos denotativo
põe uma máscara
na mentira sistemática).
O joelho fraco vacila
afocinha na valeta marota
dele se riem os bastardos
que não fogem de manjares
mas não se importam
não andam à caça de mentores
nem se intimidam com a noite baça
que sobe ao céu desalojando o luar.
Inaugurado o silêncio
falta descobrir o primeiro a violá-lo;
não será crime airoso
nem aqui se convocam
carnalidades ao desbarato:
às vezes
antes a voz moderada
e deixar por conta do silêncio
a voz significativa.
(Ou será pior
o silêncio como uma lâmina
que decepa a confiança
pior a ser
do que as palavras
que mais feridas instruam.)
As espadas
estão despojadas pelo chão
e os tutores da lógica
destronados
resistem dentro das camisas que os aprisionam.
Não gostam de ser contrariados
não nasceram para esse desfeitear.
Corre a voz comum
estes
são tempos da morte do teatro;
de cada vez que uma voz soluça
outras são caladas
em nome do um “bem maior”
sem haver quem informe
sobre os limites do “bem maior”.
Costuram-se enredos
adulteram-se os termos
em que se compõem os dias
jogam-se distopias contra utopias
num novelo de farsas
por onde desfila um exército de mitómanos
todos enferrujados
uns com a ferrugem do passado
outros com a ferrugem que há-de ser vindoura.
E o teatro desfalece
o palco consumido por térmitas diligentes
que torcem o braço ao tempo
e cospem nas circunstâncias.
O futuro
tem o nome do medo.
O nome
da obnóxia condição dos audazes
os que se deixam pensar pela cabeça dos outros
e são atirados para a boca das feras
orgulhosos
por ostentarem os galões de testas-de-ferro
quando, coitados, são os frágeis ossos
os óbvios candidatos a serem carcaças
quando no palco público
forem reduzidos a escombros.
As guerras
(o monopólio dos beócios
a tela onde bolçam os funestos
os que desaprenderam o que custa uma vida)
sempre foram este retrato
a síntese apurada da mais pura indignidade
do Homem.
A gala dissolve-se num instante
nós
é que somos da cerimónia os mestres
em redondas odes aos prazeres.
Disse à gema de ovo
que emudece sem a clara
– ou não fosse a clara
a ditar a transparência do ovo.
Houvesse mais gente
a aprender a lição
e dispensadas seriam
as sistemáticas operações de limpeza
que ocupam os braços da justiça.
Se o que dizemos
precisa de suspensórios
queremos arneses
tutores lisonjeiros que dão aval às palavras
estetas desabridos no coração da moral
um sofá rombo para exercer a preguiça.
Se o que dizemos
se subleva contra nós
não desistimos da fala
nem do consagrado direito a asnear
ou de perfumar os dias com a liberdade
de apenas
ser.
As maldições escaninhas
as que se insinuam entre teias de areia
ficam por conta de quem as tutela.
Nós
só queremos
um gelado ao entardecer
o calor da mão amada
um jardim bucólico como exílio
os filhos a espigar
e todos os ocasos que pressentem
a aurora consecutiva.
Já que a ninguém
é dado acasalar com misérias
tirar a barriga delas
é bom conselheiro.
Sem entrarem na boca do lobo
os rebeldes
disputam a coroa de vadio:
é um disparatar à toa
como se não soubessem os nomes
e forjassem um despudor de alma
que não passa de uma farsa.
Soubessem
que ser vadio não é injúria
e não participavam
neste cortejo de agravos
não reconhecidos.
Um vago rumor nos bastidores
a melancólica nuvem a descer do passado
e um estirador à espera de intenção.
O fogo que arrefece o labirinto
o revés assimilado no alfobre dos embaixadores
a litania que corre atrás das falas excessivas
a espuma escondida atrás dos néones
os nomes exaustos que moram no cais
os rostos emudecidos na solidão imprevista
as saias a fazerem de cortinas
o palco esburacado onde só mora o escol
as baionetas descontinuadas por medo do futuro
um leve beijo que acetina a pele
a prole devida em abundantes presunções
o leito cabal à procura de cabimento
o cabaz sem nome que ensaia o exílio
a amadurecida combustão sem espera
os tiranetes depostos em ato sem impugnação
a memória resguardada dos segredos embaciados.
Do espelho
estilhaços avulsos
a mudez invernal
a súplica de um luar.
Os braços
avalistas das bandeiras
arremetem contra a sisudez
dicionários dos dias sem sombra.
As montanhas
silhueta capaz
ensinam a lucidez
a peregrinos da altivez.
Rejeitados
os demónios extravagantes
emudecem por dentro
apaga-se a chama dantes temida.
O amanhecer
verbo nunca gasto de simplicidade
amarrota os rostos estremunhados
desanunciando os tradutores do desassossego.
Esbraceja o ódio antes que seja futuro
dá-o como património de colóquios
manifestos vários em forma de arte
fantasmas sopesados com o jugo cirúrgico
de quem fabrica oráculos.
Sê tu o agente que fermenta o ódio
o desambientado embaixador de radicais
o desbocado comparador de Histórias sem igual.
E depois
quando a profecia que
(parece)
queres revelada
tiver aquiescência pela mesa de voto
não digas que te esqueceste de forjar
tão profana profecia.
Remexes a areia
com as mãos molhadas
participas no esconderijo
onde as coisas são a sua negação.
O sol espreita entre as rugas
enxuga as lágrimas amanhecidas
no leito insistente do nevoeiro.
Os olhos crepusculares
decantam a luz agitada
traduzem sílaba por sílaba
o sortilégio animado
pelas falas que despontam.
As asas de um anjo
esbracejam as rimas
e adiam a solidão:
por cada adeus soletrado
fica uma dívida por abater.