5.2.25

Injustiças documentadas (503)

Tivemos 

uma desinteligência artificial,

comentaram

a propósito de uma desavença.

#4005

Estou 

deste lado

por saber 

do lado avesso.

4.2.25

Sobre beijos (e páginas) arrancados

Não se diga

de um beijo arrancado

que é como o arrancar de uma página. 

Há beijos

que não se dão

a menos que sejam arrancados;

e há páginas

que merecem ser arrancadas

para ganharem adesão.

#4004

Contrariado,

o não desmentido

por dentro de outro não.

3.2.25

Candeeiros

Levas com o arroz

se fores insincero

 

(que gostamos de eufemismos

e insincero é menos denotativo

põe uma máscara 

na mentira sistemática).

 

O joelho fraco vacila

afocinha na valeta marota

dele se riem os bastardos 

que não fogem de manjares 

mas não se importam

não andam à caça de mentores

nem se intimidam com a noite baça

que sobe ao céu desalojando o luar. 

 

Inaugurado o silêncio

falta descobrir o primeiro a violá-lo;

não será crime airoso

nem aqui se convocam 

carnalidades ao desbarato:

às vezes

antes a voz moderada

e deixar por conta do silêncio

a voz significativa. 

 

(Ou será pior

o silêncio como uma lâmina 

que decepa a confiança

pior a ser

do que as palavras 

que mais feridas instruam.)

 

As espadas 

estão despojadas pelo chão

e os tutores da lógica 

destronados

resistem dentro das camisas que os aprisionam. 

Não gostam de ser contrariados

não nasceram para esse desfeitear.

#4003

O rastilho rabeia 

sob os olhos conspícuos 

que se confundem 

com apatia.

2.2.25

#4002

A História

a subir do medo 

sob o véu que omite histórias.

1.2.25

O futuro tem o nome do medo

Corre a voz comum

estes 

são tempos da morte do teatro;

de cada vez que uma voz soluça

outras são caladas

em nome do um “bem maior”

sem haver quem informe 

sobre os limites do “bem maior”.

Costuram-se enredos

adulteram-se os termos 

em que se compõem os dias

jogam-se distopias contra utopias

num novelo de farsas

por onde desfila um exército de mitómanos

todos enferrujados

uns com a ferrugem do passado 

outros com a ferrugem que há-de ser vindoura. 

E o teatro desfalece

o palco consumido por térmitas diligentes

que torcem o braço ao tempo

e cospem nas circunstâncias. 

 

O futuro 

tem o nome do medo.

 

O nome

da obnóxia condição dos audazes 

os que se deixam pensar pela cabeça dos outros

e são atirados para a boca das feras

orgulhosos 

por ostentarem os galões de testas-de-ferro

quando, coitados, são os frágeis ossos 

os óbvios candidatos a serem carcaças 

quando no palco público 

forem reduzidos a escombros. 

 

As guerras

 

(o monopólio dos beócios

a tela onde bolçam os funestos

os que desaprenderam o que custa uma vida)

 

sempre foram este retrato

a síntese apurada da mais pura indignidade

do Homem.

#4001

A gala dissolve-se num instante 

nós 

é que somos da cerimónia os mestres 

em redondas odes aos prazeres.   

31.1.25

A metáfora do ovo e da transparência

Disse à gema de ovo

que emudece sem a clara 

– ou não fosse a clara 

a ditar a transparência do ovo.

 

Houvesse mais gente

a aprender a lição

e dispensadas seriam

as sistemáticas operações de limpeza

que ocupam os braços da justiça.

Injustiças documentadas (502)

Conto o 

conto de facas. 

De facas.

#4000

Arrumo a ferrugem a um canto 

a decadência pode esperar 

o seu canto de cisne.

30.1.25

Acento tónico

Se o que dizemos 

precisa de suspensórios 

queremos arneses 

tutores lisonjeiros que dão aval às palavras

estetas desabridos no coração da moral

um sofá rombo para exercer a preguiça.

 

Se o que dizemos 

se subleva contra nós 

não desistimos da fala

nem do consagrado direito a asnear

ou de perfumar os dias com a liberdade

de apenas 

ser.

 

As maldições escaninhas 

as que se insinuam entre teias de areia

ficam por conta de quem as tutela.

 

Nós 

só queremos 

um gelado ao entardecer

o calor da mão amada

um jardim bucólico como exílio

os filhos a espigar

e todos os ocasos que pressentem

a aurora consecutiva.

Injustiças documentadas (501)

Já que a ninguém 

é dado acasalar com misérias 

tirar a barriga delas 

é bom conselheiro.

Injustiças documentadas (500)

De fio a Pavia 

passando por 

Salamanca e Pádua.

Injustiças documentadas (499)

Que erres 

com todos os erres 

em que o erro erra.

#3399

A ironia 

é fingirem ser

o que não conseguem.

29.1.25

Sob a condição de ser vadio

Sem entrarem na boca do lobo

os rebeldes

disputam a coroa de vadio:

 

é um disparatar à toa

como se não soubessem os nomes

e forjassem um despudor de alma

que não passa de uma farsa.

 

Soubessem 

que ser vadio não é injúria

e não participavam 

neste cortejo de agravos 

não reconhecidos.

#3398

Um vago rumor nos bastidores 

a melancólica nuvem a descer do passado 

e um estirador à espera de intenção.

28.1.25

Teima

O fogo que arrefece o labirinto 

o revés assimilado no alfobre dos embaixadores

a litania que corre atrás das falas excessivas

a espuma escondida atrás dos néones

os nomes exaustos que moram no cais 

os rostos emudecidos na solidão imprevista

as saias a fazerem de cortinas

o palco esburacado onde só mora o escol

as baionetas descontinuadas por medo do futuro

um leve beijo que acetina a pele

a prole devida em abundantes presunções

o leito cabal à procura de cabimento

o cabaz sem nome que ensaia o exílio

a amadurecida combustão sem espera 

os tiranetes depostos em ato sem impugnação

a memória resguardada dos segredos embaciados.

#3397

Corre o vento 

loucamente

não espera que haja amanhã.

27.1.25

De rajada

Do espelho

estilhaços avulsos

a mudez invernal

a súplica de um luar. 

 

Os braços 

avalistas das bandeiras

arremetem contra a sisudez

dicionários dos dias sem sombra. 

 

As montanhas

silhueta capaz

ensinam a lucidez

a peregrinos da altivez. 

 

Rejeitados

os demónios extravagantes

emudecem por dentro

apaga-se a chama dantes temida. 

 

O amanhecer

verbo nunca gasto de simplicidade

amarrota os rostos estremunhados

desanunciando os tradutores do desassossego. 

Injustiças documentadas (498)

Avia o mal.

Havia um mal 

– devidamente aviado.

#3396

Um luar estreito amuralha o olhar 

adiando o sono 

até a insónia cair de solidão.

26.1.25

#3395

Santos costumes 

tantas vezes pregados 

e muitas mais desertos.

25.1.25

#3394

Deixa 

à rosa-dos-ventos 

o sabor 

do vento que canta.

24.1.25

Avant la lettre

Esbraceja o ódio antes que seja futuro

dá-o como património de colóquios

manifestos vários em forma de arte

fantasmas sopesados com o jugo cirúrgico

de quem fabrica oráculos.

Sê tu o agente que fermenta o ódio

o desambientado embaixador de radicais

o desbocado comparador de Histórias sem igual.

E depois

quando a profecia que

(parece)

queres revelada

tiver aquiescência pela mesa de voto

não digas que te esqueceste de forjar 

tão profana profecia.

Injustiças documentadas (497)

Mausoléu.

Maus ao léu.

#3393

Remexes a areia 

com as mãos molhadas 

participas no esconderijo 

onde as coisas são a sua negação.

23.1.25

Arrumação

O sol espreita entre as rugas 

enxuga as lágrimas amanhecidas

no leito insistente do nevoeiro.

Os olhos crepusculares 

decantam a luz agitada

traduzem sílaba por sílaba

o sortilégio animado 

pelas falas que despontam.

 

As asas de um anjo 

esbracejam as rimas 

e adiam a solidão:

por cada adeus soletrado

fica uma dívida por abater.