23.1.25

Injustiças documentadas (496)

Ainda está por determinar 

qual das duas é a segunda mão 

para se estabelecer 

que é inferior à primeira.

#3392

No vagar langoroso

pesando cada respiração 

esvaziamos o tempo do seu punhal.

22.1.25

Antídoto contra os rumores

Desmata os rumores que fogem da conta.

O ruído é um pano de fundo escusado.

Uma espada que trespassa a lucidez.

No inverno do desespero

onde não congelam os males artesanais

e a ciclópica tentação pela usura

remexe na terra com as mãos nuas

e descobre

como quem ganha uma medalha

a recompensa sem preço:

 

as palavras

não são murmuradas

porque não escondem segredos.

 

Arrancados os rumores pela raiz

não há conspirações que se instalem.

#3391

Num porto cavo 

a boca calada 

e a alma furtiva.

21.1.25

Sibilino

Talvez

havendo juízo só em saldos

seja possível a lucidez sem arestas

um tempo amovível dissolvido entre as nuvens

o desembaraço que dispensa planos

o retrato inteiro de rostos escondidos uns

disfarçados outros

da vergonha empunhada em nome próprio

uma espécie de unidos estados outrora divorciados

o navegar em doca seca

e acreditar

com o cimento próprio das fés religiosas

que se foi tribuno de façanhas singulares. 

E depois

com o entardecer

hastear os violinos estonteantes

mesmo os que têm cordas rombas

e partir como se fosse marinheiro

partir

com o travo doce de quem sai à aventura

sem mapa nas mãos nem corda sobre o tempo

apenas irremediavelmente náufrago

em lugares de que nem depois há existência.

#3390

O arrumo do tempo 

amuralhado

no sangue sem medo.

20.1.25

Pêndulo

Os estilhaços vitalícios

secretamente escondidos no húmus

fortificam a pele rosácea

vacinada 

contra os obséquios de loucos e profetas. 

 

Descontam os balcões puídos

a fala desarticulada

que voluteia como um pêndulo mecânico

sempre à procura de presas 

fáceis. 

 

Os ardis consequentes

descontentam as almas purificadas

os embaixadores das virtudes:

 

pois das virtudes 

diz o cancioneiro

que se estilhaçam no vitalício fingimento

em que se orquestram 

os dias seguidos.

#3389

Um torcicolo das ideias 

é o pão-nosso-de-cada-dia.

19.1.25

Injustiças documentadas (495)

Fugir à verdade

não é um exílio.

#3388

O desejo 

à medida, 

alfaiatado.  

18.1.25

#3387

A miséria 

ferve na indiferença 

dos loucos esquecidos da sorte.

17.1.25

O corsário

O corsário devolve a espada

no estuário onde naufragou o dia.

 

Vence o sono

contra as previsões 

do pesadelo que tomou conta da noite

e respira no cachaço do dia

empresta-lhe o ânimo

a desmentir a previsão de funeral.

 

O corsário

deposto do seu posto

vestiu farda civil

e agora não se distingue

dos piratas disfarçados.

Injustiças documentadas (494)

A vida contínua:

a vida continua.

#3386

Adormece o escárnio 

a cólera dos órfãos 

arrefece a lava diuturna.

16.1.25

Perdido na lotaria

Abriga-te na lotaria sem paradeiro

não é a sorte que demandas

apenas uma varanda 

onde possas respirar a gramática do avesso.

E ainda que as probabilidades

Estejam contra ti

não o tomes por conspiração

o mundo tem outras pendências urgentes.

Na lotaria dos párias

onde julgas habitar

és enjeitado

por excesso de virtudes.

Quem te manda ser

ó castiço

um castiçal de probidade

um autêntico desexemplo cultivado

na litania dos paradigmas prístinos?

#3385

Calado 

os olhos repousados no horizonte 

enquanto a pele lentamente 

envelhece.

15.1.25

Maravilhas da técnica

Detidos os farsantes em serviço

ficou uma sensação de maré-baixa

aquele odor a latrina

impróprio para consumo

mas próprio dos lugares soezes.

 

Valha-nos 

o vinho licoroso

as páginas cheias de mácula

e o pecado sistemático e impudico.

Injustiças indocumentadas (493)

Estamos entregues à bicharada 

e isso valeu-nos uma queixa no tribunal 

por antropocentrismo.

#3384

Os corpos 

falam pela coreografia 

um étimo de liberdade.

14.1.25

Némesis

Bebe

desse copo

da diplomacia. 

Respira

as palavras que anestesiam

as juras de vingança. 

Relê

 

(ou lê, 

se não for aquele o caso)

 

os cartapácios de História.

Depois

subleva-te

denuncia os adamastores

que ultrajam vidas

sob a forma de arsenais

ou de um punhal assestado

à jugular coletiva

instaura processos disciplinares

confeciona cartas de intenção

protestos contra impostos

ou outras modalidades

que cerquem os infaustos mandantes

no cárcere de si mesmos. 

Pela volta do correio

se teimarem em aleivosias useiras

sugere

educadamente, 

mas com persuasão em dose certa,

que se encomendem ao exílio perene

e a uma distância de segurança. 

Injustiças indocumentadas (492)

Se o ridículo matasse 

estava a cumprir 

prisão perpétua.

#3383

A prece 

como caderno de encargos 

ou verniz da superstição.

13.1.25

Mel

A porta aberta.

A boca fria.

O porte suado.

O luar ornamentado.

O xaile puído.

A concha destroçada.

A bota em nome da paz.

O bordado ancião.

Os ossos se sombra.

O pecado alijado.

O hino envelhecido.

O estertor aproximado.

A culpa sem culpado.

O remorso escrupuloso.

A palavra poupada.

A voz sem ser quebrada.

Os gatos presentes.

A noite furtiva.

O navio encalhado.

A chuva invisível.

A escotilha escondida.

A centelha de atalaia.

#3382

Esta é a fibra da agonia 

o esquecimento do magma do tempo

postergando um diamante apalavrado.

12.1.25

#3381

Era bom 

que não tivéssemos biografia 

só para confirmar 

a banalidade.

#3380

Apanhado pelo efémero dissipar 

amanheceu leve 

era a herança do sonho fértil.

11.1.25

Injustiças indocumentadas (491)

O orgulho 

é a anestesia da tristeza.

#3379

Brindamos 

as flores de cerejeira como ornato 

o dia claro a rimar com as almas.

10.1.25

Injustiças indocumentadas (490)

Alguém sabe 

da fita métrica 

para medir as palavras?

Injustiças indocumentadas (489)

Ainda não repararam 

que falar de cifrões 

é um anacronismo 

 

(mas ainda vão a tempo 

de reparar o lapso).