31.7.25

Cosmovisão

De todo o mundo havido

sinto que estou devedor

de muito mais mundo por haver.

Os lugares por inaugurar

a promissória

de cujo distrate o tempo cuidará

terão um dia inventário.

Não sei 

quanto mais mundo haverá

mas sei

que sou, 

e em parte significativa,

todo aquele mundo já havido.

#4163

Antes a dissidência 

do que desabar 

pelo peso da consciência.

30.7.25

Injustiças documentadas (562)

Por que se diz

pela hora da morte

como se fosse

um contrato de carestia

se à morte é tão fácil chegar?

Amnésia

Entorta as certezas 

no palco dos erros

onde vestes 

a humildade dos pequenos

e, contudo,

entroniza a imutável grandeza

da linhagem sem contrabando.

 

Engana as costuras 

que nas feridas transportas rastos

desacontecimentos sem memória

e a espingarda que rebenta

com as cicatrizes do mundo.

 

Faz com que a amnésia

venha comer à tua mão.

#4162

Acordava 

sem o fole dos pesadelos 

desalfandegado de todos os medos.

29.7.25

Assinatura com tinta permanente

As coisas que as coisas têm 

não se juntam aos adjetivos 

que sobre elas se inventariam. 

Se ao menos soubéssemos 

se as coisas têm um avesso 

não procurávamos pelas bainhas 

até sabermos do seu fundo. 

É como 

mergulhar num poço sem fundo: 

ninguém acredita na credenciação, 

mas não se vê nada 

a não ser o nada.

#4161

À vaia, 

ouvidos de parede

e sono discreto.

28.7.25

Saltar sem corda

É nesta custódia 

que quero albergue. 

Os rios abundantes, 

veigas exuberantes, 

colheitas frondejantes, 

um segredo 

para evitar a invasão 

de sobressaltos, 

a noite repleta 

de sonhos válidos. 

Um corpo 

em forma de dádiva. 

E o outro, 

recíproco,

numa coreografia servida 

por estrofes matinais.

#4160

Corpos silhuetas

expropriam a luz; 

deles 

é o trono do estio.

27.7.25

#4159

Talvez sem custódia, 

que somos amantes 

da liberdade.

26.7.25

#4158

Não tenhas medo da lanterna 

a luz não te morde o pensamento.

25.7.25

Sem fronteiras

Se perto fosse a ofensa

e de guetos falassem 

os idiomas sem diálogo

as vestes solenes 

com que se disfarçam

os lugares

teriam de arder numa pira. 

 

Se puídas fossem as bandeiras

e as bocas não falassem

por reflexo condicionado

as palavras seriam como velas acesas 

pelos ventos ao acaso

e dos mares demandados

só haveria notícia de sereias feiticeiras

e marinheiros testemunhas da madrugada. 

 

Não transigimos com os pesadelos

quando o lugar do crepúsculo

eles ocupam 

e arrepiam os versos que são a prova

de que as quimeras não são apenas

a fértil encenação de sonhadores avulsos.

#4157

Às almas sem costuras 

a luz desalfandegada da madrugada.

24.7.25

Injustiças documentadas (561)

E se ao menos 

fizéssemos de conta 

que amanhã é amanhã.

Injustiças documentadas (560)

Se tirares as medidas, 

sobra-te um nada.

#4156

O bem da sombra 

é ser o avesso da luz.

23.7.25

Sobre a sorte

A flor

beija a noite

que a costurou.

 

O nevoeiro

sitia a cidade

num pesadelo contumaz. 

 

A fala

conspira uma mudez

no estertor da solidão. 

 

Uma ponte

a soldo dos rebeldes

amanhece contra os prognósticos. 

 

A estrada

consegue ser um vazio

sempre a fugir dos outros. 

 

A madrugada

vence a atalaia dos sentidos

no verso acanhado dos deuses sem sono. 

 

Um idioma

sobe pelos dedos túrgidos

rouba os emudecidos lábios. 

 

Até que extremados

os loucos vegetam na lua possuída

desfeiteando os demónios em barda. 

 

Páginas depois

o olvido impede a nostalgia

dos circenses que desabençoam a fogueira. 

 

Tarde

o bocejo arremata um par de minutos

até os curadores do medo deporem. 

 

Calada

a boca sela 

a angústia estilhaçada. 

 

O vento

vem de longe

contar uma matemática sem números. 

 

Vem contar

entre meadas de vozes sibilantes

os segredos mal guardados. 

 

Até que

os cobradores do futuro

se fechem na escuridão que os açambarca. 

 

Então

invisíveis aos olhos lúcidos

desapertam a escotilha e falam.

 

Falam

incessantemente

com as sílabas todas sem vergonha. 

 

Como

dentes-punhais

cortando a carne podre a eito. 

 

Para então

cúmplices

desassorearem a mudez contrafeita.

Injustiças documentadas (559)

Controverso.

Contra o verso.

Encontro o verso.

#4155

De todos os dotes 

arrefecemos o mundo 

das ilusões mandatadas.

22.7.25

Cultura

Não tenhas sede 

de cultura

que a cultura está distraída 

e não tem sede de ti.

Podes dizer

com toda a propriedade

que a cultura é como 

um camelo.

#4154

De todas as cores imprevistas 

tua é a fala preponderante 

um amanhecer sem promessas frívolas.

21.7.25

Metáforas sem sabor

Ainda hoje

estou para saber 

a que sabem as metáforas

angariadas às três pancadas.

 

Desconfio

que é só uma prova de vida

daquelas congruentes com a epifania

de quem se dá a conhecer

do alto do seu eruditismo.

 

Fora disso

a metáforas metidas a martelo

são como 

víveres fora de prazo

que contribuem

para comida datada.

#4153

A pele fria 

esconde-se dos verbos 

no encanto do entardecer.

20.7.25

Reciprocidade

O recíproco

as tenras daninhas

que absorvem os medos do mundo

a hipótese materializada

no cenário coloquial

e os braços vertidos do chão

déspotas da capitulação a destempo

o fortuito porta-voz

histriónico

a vender juros e barrigas de freira

antes que sejam conspirados

pela polícia dos costumes.

#4152

Que cisma

o cisma 

em vez dos catecúmenos.

19.7.25

#4151

Temos a coragem 

de contra à fruta 

como má ela é?

18.7.25

#4150

Dou e tiro

e depois

dou o tiro.

17.7.25

Injustiças documentadas (558)

Um pesadelo diurno 

também se traduz

nightmare?

15.7.25

#4149

Arranco-te dos braços 

da macieira 

querido lótus daninho.

 

[Haiku sul-coreano]

12.7.25

#4148

A cidade ferve 

sequestrada pelo sabre 

dos indigentes com pose de eruditos.