26.5.05

Algum sentido (no umbral da amargura)

Ao que vens?
Nas tonitruantes voltas da vida
a descoberta do degredo.
Às voltas com os desatinos dos dias
as lamúrias dos desejos adiados.
Nascemos
fadados ao obituário.
Percorridos os dias
à espera que a espada desça a lâmina inclemente,
ruminada a modorra dos ponteiros do relógio
na sua vertigem ensurdecedora.
Sem olhar ao belo da vida
sabendo que algum dia
a beleza se consome no negrume da ceifa final.

Ao que vens?
Andar por esta vida,
vegetando num torpor sem sentido?
Haverá laivo de justiça divina
no sofrimento que destapa a almofada da dor?
No desnorte dos trilhos esboçados
restará seguir, como beduíno ordeiro,
na peugada de um horizonte incerto?
Ao sabor do vento
empurrado como frágil folha
que ondeia na incerteza do rumo ventado.

Esperando,
esperando que chegue a hora
de acertar as contas
com os passos perdidos na poeira do tempo
com os projectos adiados
com as frustrações da alma.
Pedindo
escusa da dor,
ao saber a dor o legado iníquo
dos deuses sem rosto.

Ao nascer,
traçado um destino que tece a formatura da vida.
Demore o tempo que demorar
apenas um sentido único,
sem desvios
- ou com desvios que semeiam a ilusão de nos ludibriarmos –
resguardando a seiva da vida que se esvairá
no suspiro final.
É a palavra que amedronta,
impronunciável,
o azedume que afugenta a alegria interior.
Na recusa de um destino irrecusável
o agreste sabor ao fel
que acorrenta à amargura definhante.

Ao que vens?
Vale a pena combater?
É merecedor o tempo do engano de nós mesmos?
Se tudo se consome na avidez do perpetuo momento
que lança a âncora para a definitividade
do que somos…
Essa,
a palavra impronunciável,
séquito de todos os medos
exército não derrotável
tingido das cores mais pútridas.

22.5.05

Instante

Apenas um instante
para tudo recomeçar.
Apenas um instante
saber tudo perder.
E apenas num instante
se glosa a tempera da vida.
Os instantes,
efémeros, imortalizados, prolongados,
a inspiração dos destinos jogados
na roleta vadia.

Apenas um instante,
um instante só,
para tudo mudar.
Basta o instante
encontrar-se na linha certa
ou falhar o instante
e borda fora tragar as águas revoltas.

11.5.05

Pela alvorada, o cansaço dos dias que se repetem

O dia irrompeu
trouxe a energia volátil que anda ao acaso,
dobrada pelos ponteiros do relógio.
Lá fora
as formigas humanas debatem-se
na atarefada rotina dos dias que se renovam.
Como se fugissem de casa
afogueados pelo tempo que escasseia
aturdidos pelo atraso instalado mal o dia começa.
Atropelam-se rua fora:
crianças levadas ao colo
outras palmilhando o caminho de mão dada
ainda sonâmbulas do sono despertado
por pais sufocados pela azáfama.
Curvadas pelas mochilas recheadas de pesados tijolos
- dizem-lhes, carregas às costas a sabedoria aos pedaços.
O asfalto abrasivo recolhe as rodas dos carros
na correria de quem tem pressa de chegar algures.
Silvos frenéticos
insultos esporádicos
a ensandecida escalada que devora a distância
que os separa das masmorras materiais.
Uns atrás dos outros
maquinalmente
ao ganha-pão que alimenta,
sacia vícios,
mostra ostentações reprimidas.
As caras ainda estremunhadas demoram a recompor-se
do sono pouco dormido.
As pessoas cruzam-se
sem darem conta que se entrelaçam em linhas descontínuas.
Fazem-se autómatos que seguem em fila
rebanho mal amanhado num torpor pelo vórtice
de um desconhecido destino que julgam conhecer
como o chão que pisam dias a fio.
Os trabalhadores da construção civil já laboram,
subindo o sol no firmamento;
testemunham passos acelerados dos apessoados.
Já envergam o suor do dia quente que se anuncia.
Suor misturado com a sujidade que enegrece a pele rugosa
nas dobras vincadas que entoam a aspereza física.
Testemunham, alheados de quem passa.
Como alheados andam os que, lá em baixo,
ignoram os anónimos empoeirados que se equilibram nos andaimes.
Respiram o mesmo ar,
o mesmo ar fétido,
um cocktail
de gases expelidos pelos automóveis
do ar abafado vindo do sul
das frustrações dilaceradas pelos caminhantes erráticos.
Na indiscrição do próximo
os apressados passeantes distraem-se
no tempo que passa, célere;
demoram-se no relógio que não se deixa atraiçoar.
Mais tarde ou mais cedo
a turba chega ao destino.
Sem lugar ao repouso
que outras tarefas, urgentes, esperam
- como tudo é urgente na lufa-lufa diária
de quem se aprisiona na hedionda rotina.
A rotina que faz de cada dia
uma indiferenciada imagem
uma nebulosa penumbra
obnubilada sombra
das aspirações que somos
e deixamos escapar no lento-demorado correr
dos dias que não se cansam de repetir.

Nuvens de Juno

Na densidade das nuvens acasteladas
o sonho do impossível.
Aprisionadas no ar gélido
as faces ressequidas deliciam-se
com os castelos que se amontoam.
São belos
levitam com a leveza dócil
dos rebanhos tresmalhados.

5.5.05

Despojos da primavera

Cinzas de um Outono tardio
destapam a lucidez dos elementos.
Voltam
com a luz renovada.
Campos que se extasiam na embriaguez do sol.
Repetitivo
o mesmo ciclo.
E contudo os sentidos ainda inebriados
com os odores que dançam no ar
as cores que semeiam a paisagem
a vida libertada da hibernação.
Almas revigoradas
testemunham a cadência primaveril.
Novo fôlego que desperta
a vida escondida pela letargia invernal.
Só à espera
que o estio se consuma no seu cansaço.
Só à espera
que a indolência dos elementos
se recolha na saudade de outras estações.
No débito da memória
retido fica o sabor ácido do tempo
que se repete.
Fuga da rotineira passada
que tomou conta dos bancos do jardim,
sabendo que depois hão-de regressar os ventos
que outrora já passaram.
No desassossego que os ventos de agora
sejam varridos por nuvens sopradas
de outros meridianos.

1.5.05

Dia da mãe

No mistério da gestação nasce um amor intemporal.
No embalo no teu regaço os nove meses que partilhamos:
o teu nutrir, o teu oxigénio, um amor maior
- a vida que se forma.
Hospedeiros do teu corpo aprendemos a sentir o amor
que inspiras numa torrente infinita.

Nascemos:
és a água onde saciamos a busca de carinho.
Nos pequenos gestos, pequenos afagos
que ensinam a densidade de um laço
- já não umbilical
agora revelado na magia do olhar
e da ternura que traz a recompensa do dia.

Crescemos:
sabendo que em ti encontramos lugar onde lançar âncora.
És porto de abrigo que acolhe as nossas ansiedades
com uma palavra que alenta.
Como se fosses um íman que nos atrai,
ao sabermos que há sempre o conforto maior
que nos recolhe na pequenez do nosso ser.

Não é a maternidade condição vã:
fonte da vida, mãe senhora da imortalidade;
pela vida que geras
pelo nutriente que levas ao filho no ventre
pelo carinho sem medida numa vida inteira
- mãe, milagre da vida, oráculo intemporal
dos vestígios que não se apagam com a bruma do tempo.

Há poeira que se acumula nos livros.
Lá dentro, emolduradas, as imagens não se eclipsam:
todos os beijos
os doces minutos de colo
os murmúrios que soam na véspera do sono
embalados pelo calor dos teus braços
a ternura com o cheiro maternal
que nenhuma flor consegue imitar.

Em ti, um santuário
onde expiamos a fragilidade que somos.
Num regresso ao passado
quando em ti havia o nosso sustento:
traços umbilicais que se eternizam.
Por magia de seres mãe..