29.9.05

Projectos desencontrados

Descobres
nas trevas
o odor macilento
das coisas escondidas.

Tecendo o emaranhado
de uma teia sedosa
descobres quem és
e mais ainda
– um canto invulgar
remoído na parte esquecida
da existência.

Olhas em redor:
nem o vento que sopra
e te leva o cabelo em desordem;
ou a palidez da luz lunar
tragada por uma tímida
unha de lua que escapa ao negrume;
ou essas nuvens
que viajam,
apressadas,
rumo ao nada;
nem a alvorada que se acerca;
nada
traz o bonançoso ritmo
dos antípodas
de hábitos enraizados.

Querer,
sem poder,
diferir.
Na indiferença da rotina
por entre os caminhos
– tresmalhados –
de uma odisseia ímpar.

Sussurra-te uma voz
de insatisfação.
Varrida da memória que dominas,
ata as mãos ao futuro.
O futuro,
errante roteiro que te hesita,
certeza de um passado
que ousarias renegar
– coragem houvesse
para limpar a cómoda,
instalada,
maneira de viver.

21.9.05

Queria

Queria:
um punhal cravado
tragando o fel que se contorce nas veias;
um doce lábio
pousando na face,
aspergindo a magia de uma ternura incandescente;
uma mão sedosa
navegando nos poros da minha pele
na ciente, poderosa aura de um momento mágico;
um sopro exalando todo o teu eu,
transe interminável,
beco de onde temos saída
– de mão dada.

Queria:
perpetuar o que tem fim;
caminhar por onde andas
na leveza da tua alma;
tecer as teias de uma fantasia sem fim,
leito de uma desgovernada, descompassada
– e, porém, docemente louca –
lava onde cavalga a palavra que nos guia;
e queria,
sempre acesa a centelha
que derrete o gelo teimoso
que vem com a traição do frio
que se apodera.

Sabes?
queria,
muito,
estender a mão do outro lado do mundo
e ter-te ali, mesmo à mão,
como se o mundo fosse um pequeno quarto
onde só nós dois habitamos.

Queria:
desentediar-me das vulgares almas que passam,
olhar-te bem fundo,
demoradamente,
e balbuciar palavras sem sentido,
apenas palavras instantâneas,
frutos de uma torrente imparável.
E não interessa dizer
“não quero que tenha fim”:
pensar num fim com data incerta
tolda o todo belo dos momentos
que deixamos fugir entre os dedos.

Sim, queria
saber que somos imortais almas gémeas
tecendo-se nos seus caminhos pares.
Das profundezas do nada,
para nós exultam os pequenos demónios
de que nos rimos.
Para que no final da estrada sinuosa,
só haja mel,
nozes,
framboesas,
o que quisermos para
cultivar a nossa uníssona sementeira.

E queria,
ainda,
abraçar-te
quando os ossos do corpo
sentem a estranheza da largura
de quem não é abraçado
há tanto tempo.
Abraço extasiado,
prolongado,
feitor da cumplicidade
que soube trazer de volta
o outrora desencontrado ânimo.

Queria:
deixar que o tempo que foge
se emoldurasse no frémito de um instante.
Ou de uma sucessão infindável
de pequenos instantes,
feitos imortalidade,
na voracidade de um sentimento que repousa
sem espumar as cinzas da intranquilidade.

Queria:
um mundo nosso
altivo,
fervente,
uma planura com montanhas ao longe,
para visitar;
nuvens acasteladas, sopradas por um vento
ora frio, ora quente;
árvores de fruto por descerrar,
o mistério das flores a desabotoar
o odor colorido dos frutos nascentes;
e um rio
onde vogam as águas do invernal degelo
aí, onde nos haveríamos de banhar nus.

Queria:
que a teimosia da razão
se intimidasse,
refugiada num canto esconso de mim.
Para poder soletrar a palavra ausente,
soltar as amarras que agrilhoam o calor
que me transcende
ao ver-te.

20.9.05

Dúvida metódica

Sitiado
bem no alto das dúvidas;
no encanto
de as haver.

Em bolandas
de negação em negação
na certeza de que as dúvidas
apimentam a vida.

Tergiversar,
na doce lógica
que empanturra o espírito
dos desafios que se empenham.

Cansar-se-á
da mortificação existencial?
Saberá espaventar fantasmas
que ensombram certezas?

Diluído o suor da exegese
a cicuta é expelida;
revigora-se a sempre jovem cabeça
- a que entroniza juízos espinhosos.

Pudesse esmurrar a teimosia
de duvidar em compasso
com os ponteiros do relógio;
e perderia o encantador fusco que norteia.

Bússola, encandeias caminhos,
quando afinal é deles que foge.
Sempre, sempre
evitar as certezas – o nutriente maior.

Que interessa explicar,
se compensadoras são as interrogações?
Bater as asas para bem longe
da perene, asfixiante convicção.

Labirinto mental
que se tece por entre as esquinas
da vida.
Da complexa desrazão imperadora.