21.9.05

Queria

Queria:
um punhal cravado
tragando o fel que se contorce nas veias;
um doce lábio
pousando na face,
aspergindo a magia de uma ternura incandescente;
uma mão sedosa
navegando nos poros da minha pele
na ciente, poderosa aura de um momento mágico;
um sopro exalando todo o teu eu,
transe interminável,
beco de onde temos saída
– de mão dada.

Queria:
perpetuar o que tem fim;
caminhar por onde andas
na leveza da tua alma;
tecer as teias de uma fantasia sem fim,
leito de uma desgovernada, descompassada
– e, porém, docemente louca –
lava onde cavalga a palavra que nos guia;
e queria,
sempre acesa a centelha
que derrete o gelo teimoso
que vem com a traição do frio
que se apodera.

Sabes?
queria,
muito,
estender a mão do outro lado do mundo
e ter-te ali, mesmo à mão,
como se o mundo fosse um pequeno quarto
onde só nós dois habitamos.

Queria:
desentediar-me das vulgares almas que passam,
olhar-te bem fundo,
demoradamente,
e balbuciar palavras sem sentido,
apenas palavras instantâneas,
frutos de uma torrente imparável.
E não interessa dizer
“não quero que tenha fim”:
pensar num fim com data incerta
tolda o todo belo dos momentos
que deixamos fugir entre os dedos.

Sim, queria
saber que somos imortais almas gémeas
tecendo-se nos seus caminhos pares.
Das profundezas do nada,
para nós exultam os pequenos demónios
de que nos rimos.
Para que no final da estrada sinuosa,
só haja mel,
nozes,
framboesas,
o que quisermos para
cultivar a nossa uníssona sementeira.

E queria,
ainda,
abraçar-te
quando os ossos do corpo
sentem a estranheza da largura
de quem não é abraçado
há tanto tempo.
Abraço extasiado,
prolongado,
feitor da cumplicidade
que soube trazer de volta
o outrora desencontrado ânimo.

Queria:
deixar que o tempo que foge
se emoldurasse no frémito de um instante.
Ou de uma sucessão infindável
de pequenos instantes,
feitos imortalidade,
na voracidade de um sentimento que repousa
sem espumar as cinzas da intranquilidade.

Queria:
um mundo nosso
altivo,
fervente,
uma planura com montanhas ao longe,
para visitar;
nuvens acasteladas, sopradas por um vento
ora frio, ora quente;
árvores de fruto por descerrar,
o mistério das flores a desabotoar
o odor colorido dos frutos nascentes;
e um rio
onde vogam as águas do invernal degelo
aí, onde nos haveríamos de banhar nus.

Queria:
que a teimosia da razão
se intimidasse,
refugiada num canto esconso de mim.
Para poder soletrar a palavra ausente,
soltar as amarras que agrilhoam o calor
que me transcende
ao ver-te.

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