31.10.06

De um manual para as noites gélidas

Penhor de um gesto,
todo o afecto compulsado num afago.
O pijama de flanela,
como as cortinas de veludo
que abraçam a quietude do quarto
ou a límpida natureza balsâmica
da sintonia de sentimentos que se entrelaçam.


pelo alto da noite
há-de um embruxado fantasma
atemorizar o sono dolente.
Desenganado artífice da maldade
esbarra na vigorosa harmonia
dos amantes sitiados no refúgio só seu.

Vigilantes
espíritos coloridos
dançam e assustam os impiedosos vultos.
Apazigua-se o sono,
de portadas bem abertas aos sonhos fantasiosos.
Não que eles sejam émulos
da vida que se leva;
apenas a charneira entre a parcimónia
dos sentimentos preenchidos
e a ternura recolhida nos olhos cerrados
pelo sono pueril.

É pela noite
(quando a insónia empurra as pálpebras para cima)
que se revelam os segredos
encerrados na luz do dia.
Transfigura-se o corpo
nas formas traçadas pelas sombras
da luz mediana.
Repousam os corpos cansados
na planura dos poros suados,
um aluvião tão fértil
onde nem os mais apertados nós persistem
na atadura de marinheiros obstinados.

Há-de a noite não ter fim
no idealizado exílio dos amantes.
Há-de a noite sem fim
limpar a névoa diurna
enxugar as lágrimas
e a revolta dos sobressaltos
da vida levada todos os dias.
À noite,
pela escura,
nem de candeias carecem
os amantes apossados pela paixão febril.
Apenas a luz intensa deles exalada
o marejado chão que vidra os olhos
os dedos percorrendo a pele macia e quente
ou as palavras ciciadas
que só têm lugar em sussurros.

A noite eterna
sem as cortinas baças do fumo
nem as lágrimas que marejam olhos impacientes;
apenas um terreiro imenso
onde os corpos se despem de si
na fusão que os cinde num promontório sibilino.

Na noite masculina
só altares pincelados com as pétalas perfumadas
e o champanhe vertido nos corpos extasiados;
só a entrega recíproca
ao remar num uníssono movimento.
Um vórtice:
afectos
palavras adornadas de magia
olhos aquecidos pela fervente alquimia dos corpos.

Um diamante por lapidar;
na sua indomável força
um farol que alcança tão longe

onde o âmago já deixou de o ser.

24.10.06

A quimera

Os montes traçam o sinal do degredo
um porto balsâmico onde os refúgios se descobrem.
Não é de ouro que partes em demanda
nem de vento apenas bonançoso
ou uma magistral correria atrás da luz quimérica.
A quimera está algures
lugar que não se procura
lugar que te encontra entre veredas virgens
caminhos idos só porque nunca dantes travados.
É a alquimia dos sonhos
que te fornece a bússola.
Deixas-te guiar por ela,
sintas,
ou não,
a navegação por estima,
uma bolina que vai e vem
arqueada nas curvas que o vento tece.

Empenhas o corpo cansado
sabes que o destino oferece a recompensa maior:
o tributo ao que tanto procuravas
um corpo então repousado no desígnio cumprido.
É essa a quimera
desafios com os salpicos do mar tão longínquo
e ainda assim perene,
presente na maresia que acama a ossatura.

Partes
com o fito bem traçado
(mas sem rumo ordenado):
encontrarás a quimera, de tanto porfiar.
Não interessa
quanta parafina queimada
na candeia que espalha a luz na noite escura
ou as feridas que laceram os pés gastos
nem o andar cambaleante ao cabo da busca perseverante;
não interessa
os montes escalados
as colinas travadas
os rios caudalosos atravessados
as cidades que te desconfiavam como mendigo
os choupos onde dormitavas ao relento.
Nada interessa
ao fitares o desafio
que te fez erguer na procissão solitária
ainda que haja uma imagem desfocada
um escurecimento da beleza da paragem tão ansiada.

Quando chegas
os corpos amontoados nas camionetas imundas
as ruas que escorrem esgotos nauseabundos
as paredes sujas das casas escalavradas
as almas indigentes que cobiçam os andrajos que levas
– tudo semeia a dúvida:
para quê ter partido
se o destino é a imagem desfocada
antítese da quimera espiolhada?
Para quê ter partido
se à chegada encontraste
apenas
uma miragem?

17.10.06

Segredos

Nas veias
a seiva que segredamos.
Um sussurro quente
sílabas todas soletradas
a batida seca das teclas compassadas
de um piano a preto e branco.
No esconderijo
é o lugar dos segredos.
Um couraçado blindado
onde nem as andorinhas pousam.
Um lugar sempre escuro
desconhecido do sol.
Não que os segredos
sejam masmorras dilacerantes;
ou uma apneia dos sentidos
o martírio hipnótico que desorienta;
apenas um refúgio
que só os amantes sabem,
onde as coisas planam na sua intemporalidade.
É lá que os segredos pertencem à cumplicidade.
Descerram a intimidade
e deixam de ser segredos
– menos para os que deles continuam longe.
As palavras balbuciadas a custo
defenestram os torniquetes da alma,
esconjurados os fantasmas de outrora
malévolos vultos que semeavam flagício.
Dos segredos
pelos segredos,
a emancipação altiva
ou a exorcização do passado desconfortável.
Fantasmas já não fantasmas
através do alívio da partilha dos segredos.
O limbo encerrado
com as janelas abertas na comunhão
dos segredos.

10.10.06

Corpo ausente

Havia um corpo com as velas acesas
um perfume incensado colorindo o ar
uma cascata de sons a ocupar os lugares.
Às vezes diluía os suores nocturnos,
a necessária diálise do espírito acometido.
Outras vezes pegava no corpo
e redesenhava-o
(como gostaria que ele fosse:
um santuário adónico
onde se demorassem ninfas várias
que nele se vinham saciar).
De repente, reparou:
esse era o corpo desenganado
um esboço de desejos inúteis.
Nem músculos
nem quadris esbeltos
olhos azuis
ou um escalpe impecavelmente louro.
Apenas aquele corpo,
banal,
habitual,
o corpo que todos os dias vestia a existência.
Corpo adormecido
Pastor fiel de segredos incontáveis
e mapa dedilhado por dentro e por fora.
Um lugar
que de tanto ser familiar
entrara no roteiro do desconhecido.
Cada poro, cada pêlo, cada gota de suor,
as melenas soltas, as olheiras enegrecidas,
os músculos fatigados, as mãos tão gastas
– cansativos sinais do torpor que exauria as forças
traçava a rota da rotina cansativa.
À noite,
escondia o corpo nos lençóis
(fosse o abafo um vitral de transfiguração).
Rondava os cobertores o esboço do corpo desejado
um fantasma, apenas,
delírio da imaginação sempre pesarosa.
À noite,
despedia-se do corpo
abria os lençóis aos sonhos
que materializavam o corpo escondido nos cantos recônditos.
Naqueles lugares secretos
que só os sonhos podem revelar.