31.1.07

E de repente, tudo estranho

Os dias de cansaço descobrem os espinhos da alma.
Os sentidos perdem o norte
espezinhada a bússola por um passo desastrado.
Desagradável sensação de estranheza
que toma conta das veias
do sangue volátil que parece estagnar
à espera
que regresse a banal normalidade.
Nesses dias
do triunfo da estranheza das coisas e das almas
as cores esbatem-se.
Regressa um antiquado filme a preto e branco.
Um solfejo frio;
mas não é o frio que vinga
nem a dolorosa tempestade que corrói os ossos.
Apenas o abúlico despertar
para as caras desconhecidas
a começar pela própria.


As frases dos livros parecem desarticuladas.
Os animais, comportamentos erráticos.
Os óculos embaciados iludem a seca imagem
que desliza diante da vista.
Havia também chuva,
sem nuvens carregadas que pressagiam precipitação.
Ignoram-se as pessoas queridas
– a abismal rotina muda a condição:
já são de há muito queridas e não carecem afectos.
Sabe-se o errado
mas um poderoso turbilhão empurra
para onde não queremos ir.
Fazemos o que não queremos,
compungida laceração da carne.
Os dedos apertam-se e não se sente nada.
As mãos enrugam-se nos cabelos frios
compondo a melena desgrenhada.
Ao olhar no espelho
a melena teima, descomposta.
Os dedos passearam pelos cabelos em vão.
Os alimentos perderam o sabor.
A água já não mata a sede.
As águas dos rios,
dos lagos,
dos mares
adormeceram num protesto
pelo absurdo que grita a cada instante.
Os olhos percorrem o mapa da estranheza
e não querem perder-se no sono,
nem na contemplação dos sonhos de outrora.

O cansaço consome até a vontade de dormir.
De todos os lados
pessoas que erram sem destino
autómatos em personalidade esvaída.
Dão passos maquinais,
trazem rostos inexpressivos
os lábios cerrados
a respiração meticulosamente compassada.
Comandados por uma pulsão guerreira
evitam o contacto com os demais
que envergam roupas negras
e prosseguem um caminho interminável,
rumo ao vazio.

Em toda esta estranheza as ruas estavam desertas.
Entregues só às pessoas que persistiam
numa romaria insólita,
na indiferenciação do vestuário.
Quem sabe,
na indiferenciação dos vultos anódinos
que perseguiam as suas sombras.
Perdidos os limites das coisas,
desapossados do saber,
cognatos de uma lúcida loucura.
Teriam perdido tudo:
as memórias
o passado
as pertenças
afectos.
Vagueavam
na insolência dos monstros emparelhados
com a ensandecida janela.
Alguns de cigarro na mão,
levando-o à boca e simulando tufos de fumo,
coreografia espúria pelo cigarro apagado.
Tudo encenado
nos passos trocados pelos eternos transeuntes.
Eles também desconhecedores do descanso,
dantes balsâmico.

Um enxame de gente apinhava as grandes cidades.
Vinham dos campos,
das vilas
e cidades pequenas,
dos dormitórios
onde já não havia sono a cumprir.
Amontoados na cidade,
demorando-se nas avenidas largas
onde ainda não se atropelavam.
Alguns metiam-se pelas ruelas perdidas
por becos de onde a turba havia furtado
o sinal de rua sem saída.
Ao verem que a rua terminava num alto muro
estancavam a marcha e ali ficavam,
horas e dias,
a olhar para o alto.
Sabiam
que o porvir era do lado de lá do muro,
nem que fosse um estéril baldio.
Tomados por uma doentia inércia,
não conseguiam
(ou não queriam?)
sair do estagnante dilema.

Os dias corriam o seu sentido
com os ponteiros do relógio acertados
para a marcha convencionada.
Os dias seguiam-se às horas acumuladas.
No entanto,
os corpos pareciam ter hibernado.
As unhas não cresciam
os cabelos dispensavam escanhoamento
a pele permanecia fresca,
não se ressentia do banho ausente.
Era um tempo traiçoeiro.
O condão de decepar os conflitos,
no inexistente relacionamento.
Um tempo traiçoeiro:
na ilusão dos corpos em agnosia,
a crença que a velhice jamais chegaria.

Desengano.
Os ponteiros do relógio só pareciam imortalizados,
só então uma ilusão do olhar.
Quando dessem conta,
e voltassem a passear no espelho,
notariam todas as rugas marcadas,
os cabelos brancos ou as calvícies fátuas,
os olhos cansados que já não viam com nitidez.
Só então
os corpos se desprendiam da letargia,
do tempo amordaçado.
Todo o tempo,
entregues nos traiçoeiros braços
de um fariseu da eternidade.
A estranheza era tanta
que nem as promessas de perenidade
hasteavam as metódicas tergiversações.

Ao despertar da maresia abúlica
a dolorosa visão do fim
do outro lado da rua que pendia,
atravessada.

23.1.07

Coreografia dos desalinhados

Espartilhos tortuosos
deixam-te agrilhoado aos teus antípodas.
Espinhos que dilaceram os pés
por todas as pedras pontiagudas que calcorreias.
Uma mordaça que cala espontaneidade
fabrica os artifícios que te exigem.
Deixas de ser o que és por dentro
transformas-te em volátil matéria
apenas uma capa sedosa (mas inerte)
a que te habituas.

Olharás sempre em teu redor:
estuda comportamentos
discursos
hábitos
costumes;
e gestos, muitos gestos.
Há sempre um trilho fácil
a acomodação ao sentir geral
embarcar na maré fluente;
ou a teimosa de seres o que és
matéria genuína
cabeça pensante
a flamante força que pulsa nas tuas veias
pernas desimpedidas para irem por onde queres
gestos não estudados
e os dedos que tocam no incandescente incómodo.

A alternativa
entre o caminho linear,
ainda que contrário à tua natureza;
e as estradas sinuosas
tão ásperas de percorrer
e, contudo, balsâmicas:
hão-de ser caminhos que descobres
caminhos feitos por ti
ou os atalhos esparsamente frequentados.

De nada vale a consciência
quando a maré dominante a aquieta.
Cabe-te estar vigilante
conter os subtis atentados à indisponibilidade
que te prostram
manietado
perante o espírito domesticado.
Resta o passo firme
irromper contra o furioso vento que sopra de frente
voltar por sentidos proibidos
dizer as palavras incómodas.
Sem a ousadia
de querer mudar os outros
ou as coisas que nos destoam.
Só tens um mister:
fiel ao que quiseste ser.

O dilema há-de rondar, fantasma ameaçador:
será a teimosia
irreflectida banalização da diferença?
O que teimas ser
é o que sempre aspiraste ser?
À medida que adormeces
atormentado pela dúvida
ao menos vinga o discernimento
de haver lugar à dúvida.

18.1.07

Da paradoxal dor

Coreografia incindível,
os corpos que buscam na dor
alívio da tranquilidade perene.
Receiam a dor
como a alterosa vaga que se anuncia ao longe
e vem embater,
com fragor,
no céu-da-boca que se lamenta.

A dor é carpida em silêncio
no recolhimento dos altos mastros
que semeiam lancinantes farpas;
percorrem o corpo todo
são a sua manta coberta de espinhos
onde o corpo recrudesce sofrimento.
Espalham-se chamas demoníacas
espetam archotes de uma dor arguida, intensa
gemidos que força nenhuma consegue reprimir.

A dor
antítese do corpo de bem consigo;
e, contudo,
há quem a venere em segredo
a ambivalente espera que ela tarde
e o secreto desejo que espreite à janela.
Aquelas horas de agonia
corpo contorcido pela temerária dor
são também santuário de regeneração:
a emboscada do suave instante da dor repelida.

Então a dor atinge o auge:
quando vai em debandada em visita de outro corpo.
A recompensa da torturante dor
é a maresia exaltante da sua ausência.
Só pelas dores da dor
fermentam os amores pela antítese da dor.
A ciência dos sentidos vem em demanda:
só há aprumo no sagrado
quando o seu oposto derramou agruras ideais.

Alguns entregam-se
na viciante dependência da dor,
droga anti-morfina.
Sensações que se misturam
e um novo equinócio de valores.
Dizem os sapientes:
as dependências são doentias;
por fácil ser ajuizar outrem
fazem cátedra
quando mergulham no interior dos outros.
Talvez a sua dor
– a maior das lancinantes dores –
seja essa:
não poderem viver dentro de outros corpos
não poderem viver as vidas alheias,
em vez das suas desinteressantes, triviais vidas.

10.1.07

Caleidoscópio

Há cores
que fingem a alegria dos dias fugidios.
Amores
que só valem por não serem vividos.
Pessoas que se cruzam,
rostos alegres
outros sofridos
outros apenas indiferentes.
As mãos esculpem o vento.
Há passos apressados
outros embriagados pela voragem que passa na tela.
Prospecções de destinos impossíveis de distinguir
veredas cansadas por onde os pés se ausentam.
E palavras,
todas as palavras convocadas para a orgia dos sentidos.
Atropelam-se, as palavras,
num rumorejo ensandecido;
vêm as palavras
com a sua energia transbordante
batem nas pálpebras,
são como choques eléctricos de quem,
desprevenido,
deslizou os dedos para a tomada.
As cores tingem o céu e as árvores
bafejam o ar que se respira.
Todas as cores,
as boas e as perturbantes,
sinfonia exaltante do lídimo existir.
Herméticas, numa paleta sedutora
ou misturadas no torpor de fantasias inquietas.
As cores casam-se com as palavras
arquitectam a estátua onde nos deitamos.
A estátua particular
a cara inigualável
os sentidos que diferem como frequências de rádio
uma variedade caleidoscópica
– a imensa riqueza, património genético da humanidade.
Descontam-se atropelos
ignoram-se dissimuladas personagens
e nem os vorazes precipícios perturbam
a serena dormência que apascenta
o mais alto que somos.
As palavras
na sua tremenda revoada
dançam ao vento
e contra o vento
como as pusermos à mercê dos desejos.
Afagam, acariciam, incomodam, violentam,
tragam os montes e vales que são a distância adversária;
as palavras compõem as cores
do caleidoscópio de nós mesmos
pasto onde esfaimados espíritos colhem nutriente.
Embatem no peito
e, pela dor que cimentam,
traduzem a beleza dos afogueados sentidos;
dos sentidos que se entregam à coreografia sublime:
abraços que falam mais alto
beijo singelo que colore dias tão plúmbeos.
No seu inquietante sossego
as cores e as palavras são um rio caudaloso
correndo rumo à foz.
Quem pode recusar
ser figurante deste fremente caleidoscópio?

3.1.07

Viagem numa estrela

O silvo do ar gélido sussurra-me aos ouvidos
como sou sentinela dos teus sonhos.
Prossigo
alado no vértice mais alto da estrela
fugindo das tormentas ao longe
onde vogam as nuvens acasteladas
– negras e assustadoras.

É nos braços da estrela que me entrego:
sabedora dos pontos cardeais
candeia por onde entram as coloridas avenidas.
Pela noite e pelo dia
(que o sono tarda em visitar-me)
vigio dos braços da estrela
os que erram sem destino
os que sobem ao alto do cavalo alado
e tragam águas desconhecidas
os que apenas querem o sossego de quatro paredes
e ainda
os que levitam a sofreguidão
e combatem o tempo inquieto
mais arrebatados que o tempo em si.

Cruzo os braços
na contemplação do espectáculo do mundo.
Nem o ar gélido
enregela a vontade de aspirar o zénite
trazer às minhas mãos o mundo
feito em minúscula bola.
Não é deus que me sinto
ou alucinação que aferroa o sono destemperado.
As palavras amontoadas em todos os idiomas,
uma amálgama inconfessável
inaudível.
Um pequeno ponto cintila na vastidão do mundo
que se espraia diante dos meus olhos:
uma pequena ilha onde me detenho
valiosa por todas as restantes ilhas que se passeiam.

É em ti que apetece demorar
reter a alvura da lua a resplandecer na tua face
dobrar os lençóis no teu sono destapado.
Quando cavalgo a estrela:
mil imagens de todos os quadrantes
perante uns olhos que se alimentam
dos teus olhos enormes e insaciáveis;
repouso nas melenas aloiradas que esvoaçam,
selvagens,
perfumadas pelo vento invernal;
não as imagens
mas os teus olhos,
as tuas mãos,
os lábios que beijam,
as gargalhadas musicais
a doçura da tua voz que brinca com as palavras
pastoreiam a tremenda posse de mim mesmo;
ao passear os meus dedos
pela tua pele acetinada
e tão imaculadamente branca.

Com as rédeas da estrela
sei-me sentinela do teu sossego.
No inverosímil,
mas verdadeiro,
tónico onde bebo as singelas gotas
que saciam a sede de existir.